Flor a Flora - Capítulo 8

 Nota:

Meus queridos peço perdão pela demora em postar o capítulo, devido a alta inflação tenho trabalhado em ritmo mais intenso para garantir o dia a dia e por isso me faltou o tempo para agilizar a história. A falta de tempo culmina também em uma dificuldade em fazer revisão de texto Por isso caso encontrem erros de português ou mesmo palavras trocadas (se vendo que escrevo com digitação por voz) peço que tenham paciência pois estou fazendo o melhor que posso no momento.




Felipe Caprini 

FLOR A FLORA 

Segundo conto da Série Urdidura das Feiticeiras 


Capítulo 8

"Cavalo de Troia"






🌹- I

Tudo estava nublado como se houvesse uma fina camada de névoa cobrindo todas as coisas, o frio nos pés era tanto que fazia os dedos doerem.

Depois de tantos anos Salaí já não se confundia, quando a névoa e chão frio apareciam era porque ele não estava no mundo real e sim sonhando.

O dom da Niromancia é algo muito complicado, é o dom de ter revelações através de mensagens vindas durante o sono, é sonhar com as verdades do mundo, porém o mais complicado é que diferente dos videntes, das cartomantes e dos Médiuns de transe, o sonho do niromante não podia ser controlado, o sonho vinha sem prévio aviso então o portador deste dom jamais sabia quando poderia realizar uma profecia ou quando passaria meses sem sonhar com absolutamente nada.

Mas naquela noite Salaí sonhou.

Estava então diante de um grande casarão, visto da rua as paredes do lado de fora eram cobertas de tábuas de madeira vermelha encaixadas com precisão de um modo que só se via na época da colônia. Salaí ficou confuso Pois aquele Casarão de dois andares e telhado que dava espaço para um sótão era exatamente como o antigo cabaré de Fogo, e ele sabia disto pois já havia sonhado com aquele lugar em tempos de outrora, já havia antes dos sonhos com aquelas moças que hoje eram chamadas de Pombagira, nesse sonhos antigos ele as viu dentro do cabaré na época do auge quando eram vivas séculos atrás. Mas agora estava tudo diferente, o cabaré parecia o mesmo mas a região não, ele deu alguns passos para o lado e viu que por trás do Casarão surgia um morro repleto de alfazemas púrpura, reparando que o céu estava escuro mas que ainda assim havia luz ele virou a cabeça e se viu debaixo de um poste onde uma lâmpada amarela iluminava a rua, mas isso não tinha nenhum sentido pois na época das pombagiras não existia energia elétrica no Brasil...

Ele abriu o portão e caminhou pelo jardim Florido de roseiras de todas as cores possíveis, subiu a varanda e abriu a pesada porta de folha dupla, atravessou o salão que estava extremamente limpo e com todas as mesas enfeitadas com arranjos feitos com pequenas Margaridas e violetas em vasinhos de porcelana azul celeste, então ouviu o barulho vindo de cima, subiu grande escada de dois lances até chegaram no corredor do piso superior, lá percorreu todo o comprimento naquele espaço olhando todos os quartos que estavam com suas portas abertas, tudo arrumado como na época colonial porém em cada mesinha-de-cabeceira se encontrava um abajur elétrico aceso e em uma delas chegou a ver uma máquina de escrever. 

Ele chegou na última porta na ponta do corredor que sabia que nos tempos antigos dava para o quarto da dona da casa e que antigamente havia sido ocupado por Maria Quitéria, depois por Maria Padilha, Maria Mulambo e por fim por Rosa Vermelha.

Ouviu o som de objetos sendo remexidas como se alguém abrisse uma gaveta, então Salaí empurrou a porta de leve e viu o grande quarto enfeitado com os móveis de mogno mais luxuosos que o dinheiro poderia comprar, e ali sentada diante da penteadeira estava uma mulher de cabelos loiros muito longos que caíam pelas costas em ondas volumosas. A mulher tinha os ombros largos e usava uma camisola negra de cetim brilhante, parecia ia estar se maquiando, Salaí se aproximou e ali próximo à ela viu no reflexo do espelho o rosto da mulher que com total atenção passava sobre os lábios um batom vermelho cor de sangue. Salaí abaixou o rosto para se aproximar mais então um arrepio tomou conta de sua espinha quando através do reflexo do espelho os olhos da mulher se encontraram com os dele, e ele percebeu que aqueles olhos eram os de Henrique.



🌹- II

Abriu os olhos imediatamente, estava deitado na cama com Henrique dormindo sobre seu peito, mas o sonho havia sido tão forte que ele sentia ainda uma energia estranha percorrendo todo o seu corpo. Os sonhos de um niromante nem sempre são literais, às vezes carecem de interpretação, mas até então aquilo não tinha nenhum significado aparente.

— Kishi kaisei, Kishi kaisei, Kishi kaisei... — murmurou baixinho as palavras para libertar a alma de quaisquer opressão espiritual.


Henrique se remexeu, Salaí com delicadeza o afastou e conseguiu se levantar, saiu do quarto pisando miúdo para não fazer barulho, atravessou o corredor e foi ao banheiro, sempre gostava de lavar o rosto após um sonho daqueles pois sentia que a água tinha o poder de lavar a alma. Assim que saiu do banheiro percebeu que havia uma presença no corredor.

— Quem está aí?

— O Diabo. Sou eu meu caro rapaz, Já devia reconhecer a minha presença toda vez que me aproximo.— a voz Suave e ao mesmo tempo máscula se aproximou revelando a figura de um homem de beleza rara, pele dourada e os cabelos negros penteados para trás, vinha usando um sobretudo aberto o qual deixava transparecer a pele do peito já que sob o casaco não usava a camisa, o homem sorriu de modo torto e galanteador.

— Me desculpe Meia Noite, é que acabei de ter um sonho e sabe como eu fico perturbado quando isso acontece.

— Sonhou comigo sem roupa eu aposto.

— Quem me dera... — Salaí sorriu.

— Bom, não vou fazer rodeios pois hoje infelizmente meu querido amigo não vim para tratar contigo. Maria Padilha quer ver o seu amiguinho, se for possível leve-o até a casa de Dona Doralice no início da próxima à noite pois ela tem algo muito importante para falar.



🌹- III

O dia passou lento mas quando dezoito horas se anunciaram o sol começou a desvanecer, Salaí e Henrique tomaram um carro de aluguel e foram até a casa de Doralice.

A velha senhora estava lá, ninguém sabia quantos anos tinha, talvez oitenta, talvez noventa, talvez trezentos, as bruxas costumam viver muito porém Doralice ao contrário das outras não fazia nada para conservar a beleza, assim e os rapazes entraram na casa ela veio correndo tirando as luvas de couro que usava para manejar o forno e deu um beijo no rosto de cada um,

Doralice estava tão velha que até suas costas já se encurva vão fazendo aparecer uma mulher mais baixinha do que naturalmente era e a pele do rosto realmente lembrava a textura de uma uva passa. 

— Fiz bolo de coco e suco de goiaba, sei que você adora o suco — ela apontou para Salaí — e você adora o bolo — apontou para Henrique.

— obrigado Tia Doralice, eu estou ansioso então não vou comer.— disse Salaí em tom gentil

— Eu também estou ansioso e no caso ansiedade me faz querer comer tudo...— disse Henrique com um sorriso.


Os três sentaram a mesa da cozinha e logo eram quatro pois Kainana juntara-se à eles.

— Kainana você sabe o que Padilha quer comigo?— pergunta Henrique para a serpente depositada sobre o assento da cadeira mais próxima da porta.

— paciência meu caro, é melhor que ouça da boca dela.


Assim que o céu se tornou completamente negro Henrique sentiu a presença das moças se aproximando, por mais que soubesse através de Kainana que muitas moças estavam reunidas já alguns dias decidindo o que fazer, naquela noite apenas três vieram.

Entraram na sala uma de cada vez, primeiro Rosa Caveira com seu ar Sombrio mas ao mesmo tempo simpático para aqueles que já a conheciam, depois Rosa Vermelha com ar de impaciência e por fim Maria Padilha com deslumbrante expressão de satisfação.


— Sejam bem-vindas — disse Doralice ficando em pé e fazendo uma vênia delicada.


— Ah por favor não precisa disso, ainda mais vindo de você Doralice, você que já se dispôs a lutar do nosso lado mais de uma vez, aqui não tem ninguém melhor do que ninguém então não faça reverências para uma amiga. — disse Maria Padilha sentando-se em uma cadeira de espaldar Alto colocada do outro lado da sala.

— Já eu gostaria de uma reverência por favor— disse Rosa Vermelha sorrindo enquanto se aproximava de Doralice e abraçava dando-lhe dois beijos estalados um em cada bochecha.

— Vocês duas faz tanto tempo que não lhes vejo...— respondeu Doralice sorrindo.

— tem sido Dias muito agitados, temos tido noites nebulosas.— respondeu Rosa caveira com ar de assombro enquanto inclinava a cabeça em saudação.


Pombagiras de um modo geral adoram fazer rodeios, amam ficar de papo furado mas naquela noite não era possível pois o assunto é ser tratado era do mais importante então após Maria Padilha explicar tudo o que havia conversado com a deusa Jaci ela deu a palavra a Rosa Vermelha que se dirigiu diretamente a Henrique.

— Jaci nos revelou que as nossas amigas não estão mortas e nem sequer destruídas.

— Então Sarah... — Henrique empertigou-se ja com os olhos marejados.

— Me deixe terminar. — Rosa Vermelha acenou indicado que ele devia fazer silêncio — a espada Eudora que o rapaz Narciso usou para nos atacar não tinha o poder de destruir espíritos pois isso é plenamente impossível, a espada tinha o poder de transportar uma alma para um outro lugar, sabemos que as almas das nossas amigas foram levadas para um lugar Chamado "ayanmọ ti awọn omi", um lugar onde Oxum tem uma morada Secreta. 

— Não me parece tão secreta já que a deusa Jaci lhe revelou isso a troco de nada.— respondeu Salaí.

— Secreto não é referente a sua existência ou a sua localização, todas as deusas pelo visto sabem onde fica, a parte secreta é que ninguém jamais entrou lá dentro, Jaci disse que provavelmente é um local onde Oxum purifica as águas que usa em seus prodígios, todos os orixás moram em um local chamado Orun mas cada um deles tem fora do Orun um espaço de trabalho, acreditamos que é o espaço de Oxum.— disse Rosa caveira.

— Foi por isso que a radiestesia que você fez com os ossos das costelas não deram resultado? — Doralice perguntou.

— Justamente.— Rosa Caveira passou a mão sobre a lateral do tronco com expressão de alívio.

— Entendi, mas no que é que podemos ajudar?— Henrique perguntou ansioso.

— Isso é algo que apenas você poderá intervir para ajudar-nos, para ajudar Cigana Sarah.— Rosa vermelha falou em tom sério.


— Menino,— Maria Padilha se levantou de sua cadeira e caminhou até Henrique se ajoelhando diante dele, ela ainda sabia muito bem usar os gestos para convencer as pessoas,— O que acontece é que estes lugares sagrados não podem ser adentrados por outros Deuses senão o dono do local, também não podem ser adentrados por espíritos desencarnados, existe ali uma barreira que impede qualquer um que não seja Oxum ou alguém de Oxum de entrar.

— Volto a perguntar, como posso ajudar?


Padilha apoiou as mãos no joelhos de Henrique e olhou em seus olhos rapaz piscando as pestanas de modo encantador.

— Assim que Jaci me disse aquelas coisas ela me revelou que apenas Oxum e seus filhos poderiam entrar naquele local, então eu corria até uma velha conhecida, velha mesmo pois ela é um tanto quanto passada do tempo, já deve ter ouvido falar de Maria Conga?

— A preta Velha?

— Ai está uma expressão que a descreve bem, ela é alguém que tem sangue africano mesmo sendo uma entidade como nós, mesmo tendo desencarnado há muito tempo ela ainda conhece o segredos africanos que nós não conhecemos, então fui a ela e perguntei se ela poderia me dizer quais eram as filhas de Oxum próximas a nós com os quais poderíamos contar para nos ajudar a atravessar aquela barreira. Alguns nomes foram citados mas o único válido, o único nome possível foi o de um filho de Oxum, no caso o nome citado foi o seu. 

— Eu sou filho de Oxum? Eu não sabia disso...— Henrique arregalou os olhos.

— Pelo visto de fato é.— Rosa Caveira murmurou — a velha Conga nunca diz inverdades.

— Mas como o Henrique Poderia ajudar vocês? Agora sou eu que estou curiosa.— disse Doralice com a ruga entre as sobrancelhas mais marcada que o habitual.


As três moças se entre olharam então 

Kainana riu baixinho:

— Doralice eu acho que essas moças querem usar o menino como um cavalo de tróia.


Doralice olhou para a serpente Kainana e depois para Maria Padilha, lentamente a expressão de seu rosto mudou pois a velha senhora percebeu do que se tratava.

— De forma alguma, isso está fora de cogitação, isso é algo impensável minhas amigas, entendo o desespero de vocês pois eu mesmo aprecio cigana Sarah como uma grande entre aqueles que tenho carinho, mas eu não permitirei que façam isso com ele.

— Que façam o quê comigo?— Henrique perguntou olhando para Doralice.


Salaí suspirou.

— O que eu entendi, e espero que eu tenha entendido errado, é que vocês três querem entrar nas terras de Oxum mas que precisam fazer isso através de um filho de Oxum, então às três moças iriam incorporar simultaneamente Henrique para que utilizando o corpo dele pudessem atravessar a barreira.

— Você está equivocado— disse que Maria Padilha rindo— jamais iria pedir para o garoto levar três de nós dentro de si.

— Menos mal...— disse Doralice passando uma mão pelo rosto aliviada.

— O que nós queremos é que ele leve sete de nós.— disse Maria Padilha abrindo um sorriso de orelha a orelha.



🌹- IV

Doralice andava em círculos no meio da sala pisando duro e resmungando.

— Vocês sabem muito bem sobre a história de Mônica, vocês se lembram muito bem do que aconteceu com ela!

— Aquilo foi outra coisa, não dá para comparar as situações...— disse Rosa Caveira.

— Quem é Mônica?— perguntou o Henrique.


Doralice ele ergueu a cabeça e começou a falar enquanto andava

— Mônica era neta de dona Miá, uma conhecida minha lá de Minas Gerais, assim como nós ela sempre teve o dom de ver os espíritos e em vez de escolher trabalhar com uma única entidade ela escolheu duas, trabalhava com uma pomba gira chamada Maria do Bagaço e uma outra chamada Cigana Puerê, até aí não tinha problema pois Mônica Algumas Noites trabalhava com uma entidade e outras noites trabalhava com outra, porém essas duas pombagiras não se davam bem e uma acabou incorporando em Mônica na noite que era reservada para a outra, se eu não me engano foi Maria do Bagaço que incorporou na noite que era reservado para a Cigana Puerê incorporar, então você sabe o que aconteceu?

— Não...— disse Henrique já assustado.

— A cigana da estrada tentou tirar a outra a outra pomba gira de dentro da médium, mas no momento em que colocou as mãos da médium ela também acabou sendo sugada para dentro dela, então Mônica incorporou com as duas simultaneamente. Se você quiser perguntar a Mônica como foi eu tranquilamente oosso te passar o endereço do sanatório pois no final daquela noite Mônica estava completamente fora de si, a mente dela se rachou, não falava coisa com coisa e babava pelo canto da boca, metade da cara totalmente torta e ela já não sabia dizer nem o próprio nome. A incorporação é algo sagrado e precisa ser bem realizado pois se for mal feito pode destruir o médium!


— Meu rapaz, Como pode constatar no relato de Doralice O que aconteceu com Mônica Foi algo acidental, quando acidente acontece as pessoas se machucam, mas no nosso caso seria tudo muito bem planejado então eu não acredito que haveria um risco muito forte, Na minha opinião o máximo que pode acontecer é você ficar muito cansado e dormir por alguns dias depois.— disse Maria Padilha usando de falsa serenidade na voz.

— Tudo bem eu já entendi, e eu aceito.— disse Henrique resoluto.

— Não aceita não! — gritou Doralice.

— Tarde demais, eu já aceitei.

— Não antes de você ouvir a respeito de um sonho que eu tive esta noite.— disse Salaí se virando repentinamente para encarar Henrique.


Após relatar o sonho Maria Padilha interveio:

— Mas você acha o quê? Que após uma incorporação múltipla o rapaz vai ficar impregnado da nossa energia a ponto de se tornar algo similar a nós? É totalmente improvável.

— É provável e é justamente isso que eu acho, no meu sonho eu vi Henrique dentro de um cabaré muito similar ao de Maria Quitéria, e quando eu o vi ele parecia ser exatamente como uma pombagira, sem tirar nem por, então o risco que existe aqui é muito alto.

— Discordo.— disse Henrique ficando em pé e caminhando até o outro lado da sala onde havia uma janela aberta por onde entrava a brisa da noite — que você viu em seu sonho não foi algo ruim, você me viu com uma vida e uma aparência similar a dessas moças, e sinceramente olhando para elas eu não acho que me parecer com elas seja algo pejorativo.


Maria Padilha olhou para Henrique e inclinou a cabeça de um modo amistoso e orgulhoso pelas palavras que ele acabara de dizer porém Rosa Caveira preferiu expressar sentimentos contrários:

— Rapaz, se o sonho do niromante estava correto é sinal que você corre sim um grande risco. Entendo a sua admiração por nós afinal de contas externamente nós todos somos formidáveis, mas por dentro nós somos mulheres destruídas. Eu sempre confio nas minhas sensações e o que senti quando ouvi o relato do sonho foi de fato que você se acabar se expondo a uma incorporação com todas nós irá absorver parte de nós a ponto de se tornar algo muito semelhante, e isso significa não ser feliz. Ninguém escolhe ser Pombagira, nós nos tornarmos isto porque não tivemos outra escolha.

— Eu entendo perfeitamente toda a situação, sei que pela minha pouca idade pode parecer que eu não entendo da vida mas infelizmente já vi mais do que muitas pessoas mais velhas, e o que vocês estão se esquecendo é o motivo de eu precisar correr esse risco, e o motivo é salvar cigana Sarah. Não que eu esteja desmerecendo as outras moças da sua falange — Henrique acenou a cabeça para Rosa Vermelha em tom de desculpas — pois sei que elas são preciosas, mas o amor e o remorso que sinto por cigana Sarah são tão grandes que mesmo se vocês aqui me dissessem que o risco seria de meu corpo explodir como uma bomba eu ainda assim aceitaria correr o risco para salvá-la.


— Besteira! Isso é uma loucura sem tamanho.— comentou Doralice.

— Mas pode ser uma loucura mais fácil de ser superada se eu tiver a sua ajuda, e a de Salaí também, vocês dois podem me ajudar a passar por isso com mais facilidade, sei que podem.

— É claro que eu vou ajudar se é que você já tomou sua decisão, mas ainda assim gostaria que refletisse mais um pouco a respeito.— Doralice suspirou aborrecida.

— Não há  nada o que refletir, minha decisão já foi tomada. Agora estou à disposição de vocês— ele sorriu apertando os lábios por um momento e olhou para Maria Padilha — para que o plano comece.


Nos dias que se seguiram houveram grandes preparativos, o primeiro foi a fabricação de um boneco de cera de a abelhas em tamanho real feito a imagem e semelhança de Henrique e que fora fabricado por Doralice que moldou a figura sobre uma velha tábua que antigamente havia sido uma porta mas que agora colocada sobre cavaletes fazia a vez de mesa, o segundo foram as sete pomba giras escolhidas para estar dentro do rapaz se prepararem para aquele momento.

Rosa vermelha, Rosa caveira, Rosa Negra, Rosa dos Ventos e Rosa Menina haviam se reunido a Maria Quitéria e a Maria Padilha afim de se concentrar para a incorporação que aconteceria em breve.



🌹- V

Sábado, 2 de Junho de 1928


Salaí voltara do centro da cidade, havia ido ao edifício da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro onde um de seus amigos era funcionário e lhe permitiu usar um rádio VHF usado para comunicação marítima, através dele deixou um recado com o comandante do cruzeiro que Belladonna estava a viajar de retorno pedindo que não se demorasse pois Henrique precisava dela. Normalmente Sete Saias, que era a Pombagira de Belladonna, teria avisado mas ela se recusara a fazer isso com o pretexto de que a presença de Belladonna ali não iria ajudar.

Quando Salaí voltou viu Enrique parado em pé no quintal olhando para a mesa de madeira no centro do jardim de Doralice examinando aquela réplica sua feita de cera, em pensamento Henrique ficava imaginando se seria de fato tão gordo ou tão bochechudo quanto aquele boneco o fazia aparecer e de leve tocou a nuca sentindo a mecha de cabelo que lhe faltava que havia sido arrancada e colocada por entre a massa de cera do boneco.


— Tem certeza que não posso ir junto?— perguntou Salaí vindo por trás eu abraçando pela cintura.

— Adoraria que viesse mas Padilha já disse que você não é como eu, apenas um filho de Oxum pode fazer essa jornada.


A noite seguiu e quando estava próximo das onze horas da noite as moças começaram a chegar, eram muitas, batendo o olho Henrique imaginou  haver mais de 50 ali, reconheceu muitos rostos como o de Sete Saias, Pombagira da Praia, Maria Mulambo, Menina do Cruzeiro, umas cinco ou seis falangeiras de Maria Padilha, Figueira, Viúva Negra, Espalha Brasa, Pombagira Alteza e até mesmo aquela amalucada chamada Maria Zureta. Todas aquelas moças estavam ali pois o boneco de cera iria servir como um feitiço de vodu ao contrário.

Geralmente no vudu se espetam agulhas em um boneco para fazer mal a uma pessoa que sofrerá os danos, neste caso as moças todas juntas iriam colocar sua força no boneco para que Henrique onde estivesse recebesse aquele impulso de energia para conseguir aguentar a ardo a tarefa.

Maria Quitéria se aproximou e fez sinal para que ele viesse até ela, Henrique se encaminhou com passos lentos e um pouco receosos, Quitéria era uma mulher de olhos ávidos como os de uma águia e mesmo que fosse extremamente bela ainda assim era assustadora pela presença que conseguia impor no ambiente.

— Você está pronto rapaz?

— Sim estou.


Então duas Pombagiras miúdas enfiadas em um vestido rosa claro se aproximaram, uma segurava um bumbo e a outra um shamisen e se ajoelharam no chão diante da mesa do boneco.

— Prestem atenção todas! — Quitéria berrou — Menina da Kalunga e Menina das Sete Encruzilhadas vão começar a tocar, e assim que elas começarem vocês iniciam a ladainha.


As duas meninas tomaram fôlego e fecharam os olhos, então de modo sincronizado começaram a tocar, uma batia o bumbo no ritmo das batidas de um coração e a outra dedilhava o shamisen de forma agourenta.

Então Todas aquelas dezenas de entidades fizeram três círculos, um dentro do outro com a mesa no centro e começaram a dançar uma espécie de ciranda, murmuravam palavras de magia antiga, Doralice e Salaí foram até o boneco que estava no meio da roda e começaram a fazer rezas enquanto tocavam-lhe os pés e a cabeça, Henrique também estava no meio da roda e se aproximaram dele as sete pomba giras que iriam tomar posse de seu corpo.

Foi então que aquela mulher de roupas brancas chamada Sete Catacumbas ergueu a mão no ar mostrando que empunhava uma pequena faca, todas as outras moças imitaram gesto delas cada uma erguendo um objeto que parece era símbolo de poder e valor.

Henrique olhou em volta surpreso e viu na mão de Dama da Noite um medalhão com um diamante tão grande que parecia ser falso porém ele sabia que vindo dela com certeza era verdadeiro, viu na mão de sete saias um chicote enrolado que parecia gasto mas ainda assim algo que poderia ferir muito aqueles que ia enfrentassem, viu na mão da Rainha das Sete Encruzilhadas um Cetro de ouro com uma serpente enrolada, na mão de Zureta uma tesoura de feitio antiquado e amarronzada com sangue coagulado pois era uma tesoura de parteira, Maria navalha tinha na mão uma carta de baralho chamada Às de espadas e cada uma das outras moças também ostentava seus tesouros, e assim começaram a dançar com dois passos para frente e dois passos para trás um giro para o lado e repetindo os movimentos as rodas giravam Enquanto elas começavam a cantar:


"E a roda vai girando a roda vai girar,  a mulher na Encruzilhada a mulher sobre o altar, na luz da lua a magia vai mesmo se mostrar, quem gira nesta gira é não morreu nem morrerá"


Maria Quitéria se aproximou de Henrique e pousou as mãos em seus ombros, todas as outras seis pomba giras agarraram com firmeza os braços de Quitéria com tanta força que era possível ver a marca da pele sendo comprimida ao lado dos dedos delas.

— Henrique! — Todas as sete gritaram em uníssono — Deus dos céus te deu o livre arbítrio, o poder de opinar, eis a pergunta feita, aceita as sete que estão diante de ti? Aceita as sete dentro do teu corpo?

— Eu aceito! — Ele respondeu gritando!


Então Henrique fechou os olhos e sentiu o tranco.

Por muitas vezes ele já havia tido incorporações com Cigana Sarah, incorporações leves mas naquele momento o que ele sentiu foi como se tivesse engolido litros de óleo quente, como se seus órgãos internos estivessem fritando, abriu os olhos desesperados mas não conseguia ver nada além de borrões em vermelho e roxo, na mente dele Henrique acreditava que estava se debatendo e gritando porém todas que estavam ali dançando naquela roda olhavam o rapaz em pé com a cabeça erguida contemplando a luz da lua. A mudança aconteceu de modo repentino, a energia das sete entidades dentro dele o mudou por fora mesmo que isso nunca tenha sido um efeito planejado. O cabelo de Henrique que era curto de repente espichou se tornando uma longa cabeleira de fios castanhos Claros que rapidamente clarearam até o louro, a roupa que vestia pareceu desmanchar como se fosse corroída por ácido e no seu corpo surgiu um vestido longo com um espartilho extremamente apertado lhe dando cintura feminina e as barbatanas comprimiam tanto a gordura do abdômen que a jogavam para cima dando a impressão de que Henrique possuía volume similar a seios, tanto o espartilho quanto o tecido do vestido eram negros e quando o vento soprou sobre ele a fenda na saia apareceu deixando a perna do rapaz da mostra que agora estava revestida por uma meia arrastão que combinava em pé em sapatos de salto alto em negro brilhante. O pescoço adornado por uma gargantilha prata com pequenas rosas em pingente e as orelhas ou enormes brincos de argola, as unhas das mãos cresceram negras com as pontas pontiagudas avermelhadas o rosto tomou tons de maquiagem com os lábios vermelhos sangue e os olhos contornados de negro, então ele colocou as mãos na cintura e jogando a cabeça para trás gargalhou com a voz aguda.


Salaí olhava aquilo horrorizado pois aquela versão feminina de Henrique que ele estava vendo era justamente aquela que ele havia visto em seu sonho.




📚 Glossário:

 1. Kishi kaisei (起死回生): ditado popular japonês, significa "saia da morte e venha para a vida", se usa este ditado para animar alguém que está apático.

 2. ayanmọ ti awọn omi: Tradução "o destino das águas".

 3. Rádio Sociedade do Rio de Janeiro: Primeiro emissora de rádio do país fundada em 1923.

 4. Shamisen: tipo de violão asiático.

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