Flor a Flora - Capítulo 6

 Felipe Caprini 

FLOR A FLORA 

Segundo conto da Série Urdidura das Feiticeiras 


Capítulo 6

"A Afronta"





Como imagino que todos saibam, Oxum é uma deusa original da Nigéria, África, sendo senhora das águas doces governamente de um rio de mesmo nome, deusa da maternidade, do amor, da beleza, poderosa entre as Feiticeiras e... rainha do ouro.

Oxum não é louca, tudo o que faz tem razão, tem causa, motivo e circunstância. 

Mas para explicar o que alavancou o ódio de Oxum pelas Rosas devemos voltar no tempo, voltar vinte anos antes.



🌹- I

Dezembro de 1908

Morro da Favela, Morro Providencia, Gamboa Rio de Janeiro.


Era um terreno recentemente aplainado bem no alto do morro, cerca de sessenta pessoas ali vestidas de branco, no fundo quase encostados no muro de arrimo estavam três homems de paletó cinza claro tocando os tambores, atabaques, o povo todo cantando a plenos pulmões, batiam palmas ritmadas enquanto elevavam o louvor:



"Oxum de Karê! Karê ijexá!Oxum de Karê! Karê ijexá!"


E uma jovem mulher em transe dançava no meio deles, no espaço circular que haviam deixado para o rum ela bailava em passos ritmados.

O corpo da médium se movimentava nos passos da dança e logo atrás dela vinha o espírito da deusa Oxum imperceptível a olhos humanos, ela vinha também dançando. O corpo daquela médium reproduzia todos os movimentos da deusa, e a contrário da médium que se vestia com aquela tradicional saia de baiana, Oxum vinha alguns passos atrás com uma saia longa de tecido diáfano branco e dourado, um lenço de seda branca amarrado no busto e os braços tomados por pulseiras e braceletes do mais fino ouro, seus cabelos trançados caíam pelas costas e no topo de sua cabeça uma grande coroa com uma pedra citrino lapidada em forma de coração e circundada por dois peixes cujo os olhos eram da mais verde Jade.

Enquanto dançava ela percebeu uma movimentação que vinha do lado de fora do terreiro, a deusa que possuia olhos cor de âmbar tão ávidos quanto o de suas corujas enxergou através das pessoas e até mesmo do concreto da parede, continuava dançando mas os seus olhos agora se mantinham fixos direcionados para um local fora dos limites daquele terreno onde era festejada, ela sentia que havia magia acontecendo, então os seus olhos encontraram um grupo de espíritos femininos que estavam juntos dentro de uma casa um quarteirão abaixo, havia muita gente naquela casa e aqueles espíritos e estavam incorporados em homens e mulheres dando consultas espirituais para o povo.

Orixás são africanos e em África não é costume que espíritos humanos se manifestem próximo aos grandes Deuses, lá a hierarquia espiritual é rígida, então Oxum simplesmente continuo dançando atrás de sua médium mais uma segunda versão de si mesma se manifestou alguns metros à frente no meio da rua e com passos leves caminhou até aquela casa. O motivo de ir até lá não era simplesmente por despeito de haver uma celebração espiritual simultânea a sua, o motivo de ir até lá era devido as pessoas, aos humanos que estavam dentro daquela casa incorporados pelas entidades.

Com passos leves ela desceu pela rua de terra e chegou diante da casa onde som de palmas e cantigas com palavras diabólicas podiam ser ouvidas desde o lado de fora. Ela entrou sem cerimônia, imediatamente odiou o lugar, uma casa escura iluminada por parcas velas vermelhas em castiçais presos as paredes, fumaça de cigarro e cheiro de bebida como se aquilo fosse um bar, mas ficou mais horrorizada ainda ao ver que três de seus filhos, aqueles que anos Antes haviam prometido através do ritual de iniciação pertencerem a ela por toda a vida  estavam lá incorporados pelas entidades rindo e bebendo, cantando, dançando e fumando enfiados em vestidos volumosos em tons de vermelho negro e lilás.

Todas as pombagiras continuavam na gira normalmente mas todas elas se entre olhavam com frequência percebendo que aquele espírito dourado que estava no meio na sala não era uma alma desencarnada e sim uma divindade. Rosa Caveira foi a única que teve coragem de se aproximar dela, naquele momento ela não estava incorporada em nenhum de seus médiuns e sim apenas zanzando entre os espíritos manifestados, então se aproximou de Oxum e com seu rosto meio descarnado sorriu para deusa.

—  Boa Noite, nós podemos ajudar a senhora e alguma coisa?


O rosto de Oxum se virou lentamente para olhar Rosa Caveira, uma expressão de nojo foi estampada em sua face ao contemplar a feição de crânio exposto na aparência daquela que lhe cumprimentava.


— O quê?

— Eu perguntei se nós podemos ajudá-la em algo.

— Perdeu o juízo garota? espíritos humanos não devem se dirigir aos Deuses, e se for uma urgência ou situação extraordinária houver a necessidade de se dirigir a nós vocês devem se curvar, se ajoelhar e colocar a cabeça no chão para nos saudar. Quem é você pensa que é para falar comigo de queixo erguido?

— Quem é você?

— Você? E ainda tem a petulância de se dirigir diretamente a mim sem me chamar pelos títulos de honra que eu tenho?— Oxum ergueu as sobrancelhas Assombrada com a ousadia no espírito e jamais havia testemunhado antes.


Rosa caveira dêu um passo à frente aproximando o seu corpo a cerca de um palmo do de Oxum, as duas mulheres tinha uma mesma altura então os olhos de ambas estavam se encarando diretamente.

— Já que não vai falar quem é, mesmo que eu saiba quem você é, vou me apresentar, meu nome é Rosário mas popularmente pelas pessoas vivas sou conhecida como Rosa caveira, e eu sou um espírito, uma alma humana que desencarnou nesta terra, neste país.

— E eu, mesmo sabendo que já sabe quem sou, me chamo Oxum estou a divindade das Águas Doces.

— De onde?— Rosa Caveira colocou as mãos na cintura dando um passo para trás mas mantendo o queixo erguido.

— Como assim de onde?

— Cada lugar tem suas divindades, e pelo que eu saiba aqui nesta terra só existe apenas uma única divindade das Águas Doces e ela se chama Iara. Então já que você se auto-intitula a deusa do mesmo elemento, de onde veio?

— Eu venho da África.

— E o que quer aqui?

— eu vim atrás de meus filhos, esses que esses espíritos imundos estão incorporados. Meus filhos tem de estar junto a mim e não aqui sendo usados como cavalos por... Umas desgarradas almas de mulheres mortas.

— Nesta casa ninguém faz nada contra a própria vontade, se seus filhos escolheram estar conosco invés de estar contigo, aqui eles serão bem-vindos.

— Não fale asneiras, irei levá-los já!


Oxum ergueu a mão direita então uma onda de choque que só poderia ser sentida pelas almas foi espalhada pelo ambiente fazendo com que todos humanos vivos que estavam incorporados caíssem desmaiados enquanto as pomba giras que antes ocupavam seus corpos foram arremessados para o teto e em seguida caíram no chão também inertes, a casa entrou em polvorosa com o povo correndo para socorrer os mediuns desacordados tombados no chão.

Apenas duas entidades ficaram íntegras sem serem expurgadas pelo poder da deusa, Rosa Caveira que se Manteve firme em pé diante dela e uma outra mulher de vermelho ao fundo da sala que olhava a cena com atenção e que lentamente caminhou até onde as duas estavam mas ficou em silêncio observando a conversa.

— Nós geralmente somos pacíficas, mas ninguém entra na nossa casa e nos ataca tem levar o troco.

— Levar o troco? Mas o que é que você meras garotas tolas poderiam fazer contra mim?


Rosa vermelha imitando gesto que Oxum havia feito a pouco, a mulher atrás dela deu dois passos a frente e se colocou ao seu lado erguendo a mão e igualmente.

— Então Rosa Vermelha , vamos mostrar para esta coisinha amarela o que ela ganha mexendo conosco?

— Adoraria colocar esta Senhora no lugar dela.— disse Rosa Cermelha com um largo sorriso no rosto.



Oxum as olhava com ar de zombaria, mas sua expressão mudou quando de repente um forte empurrão a arremessou pela porta aberta fazendo a deusa cair sentada na varanda da casa, a coroa voou para longe batendo no chão fazendo som de metal vibrando. As duas entidades ali haviam usado a mesma magia que a própria Oxum havia usado na expurgação naquela casa.


— Mas como vocês ousam?! Como ousam atacar a mim?— Oxum disse ficando em pé e fazendo surgir em sua mão direita seu famoso espelho de ouro o qual vibrou no ar emitindo uma onda de choque contra as duas moças que simplesmente colocaram as mãos na cintura e estufaram o peito recebendo o choque sem sentir nada.

— Acha mesmo que vai nos derrubar? Achar mesmo, estrangeira?— disse Rosa Vermelha com os lábios apertados cheios de raiva.

— Você não é daqui, mas nós duas somos daqui, nossa carne e nossos ossos foram consumidos por essa terra, temos autoridade aqui e você não tem.

— Do que está falando? Como acha que tem mais autoridade do que eu?— a voz de Oxum falhou por temor, uma situação daquela jamais havia acontecido antes em seus milênios de existência.

— Se nós estivéssemos no outro lado do oceano na terra de sua origem Dona Senhora das Águas Doces, provavelmente os seus poderes teriam nos reduzido a pó, mas aqui não é sua casa.— disse Rosa caveira.

— A minha casa é onde o meu povo está!

— Pode ser na teoria, mas na prática não é verdade. Nós sabemos a tragédia que trouxe o seu povo para cá, nós duas mesmo temos um pouco de miscigenação com seu povo, atualmente a grande maioria dos brasileiros têm, mas o seu povo como foi trazido para cá contra a vontade tem direito a ssta terra Assim como nós temos, mas você não tem. Se eles erguerem templos em sua homenagem, dentro destes templos você pode fazer o que bem quiser, mas nas ruas... a rua é o nosso domínio.— disse Rosa Vermelha.


Oxum ergueu novamente o seu espelho e dessa vez com gesto violento atingiu com uma onda de energia tão forte que as duas moças foram empurrados para trás, porém apenas empurradas pois não caíram e rapidamente deram três passos para frente e posicionando as mãos na direção da deusa enviaram uma rajada de energia tão forte que Oxum foi arremessada para longe rolando pelo quintal da casa e caindo na rua com suas pulseiras arrebentando e se perdendo pela terra.

— Não havia a menor necessidade disso...— disse Rosa Caveira.

— Mas bem se ve e toda a sua glória e nobreza e tornou uma mulher mimada Dona deusa, e aqui neste lugar chamado Brasil as pessoas mimadas sempre sofrem muito.— disse Rosa Vermelha.


Oxum se levantou de forma torta, não estava preparada para aquilo que estava acontecendo, então murmurou algo em sua língua original e imediatamente ao seu lado trazido pela Luz de um relâmpago apareceu um homem enorme com músculos tão grandes que pareciam um blocos, vinha trajado tem um saiote vermelho vivo e com um enorme machado de madeira talhada na mão, os olhos do homem eram brancos sem íris e seu queixo quadrado se apertou quando viu a situação da deusa a seu lado.

— Xangô essas mulheres mortas me atacaram, levaram meus filhos de mim e em seguida me desrespeitaram e me feriram. Use o seu dom de Justiça Xangô e as castigue por essa afronta! Acorrente essas almas e lance no poço dos esquecidos!


O rosto de Xangô se virou para as duas mulheres que não demonstraram nenhum medo e de forma ritmada caminharam juntas até ele, então ele levantou o seu Machado e apontou para a direção delas e em seguida... nada aconteceu.

— o que esta esperando? — Oxum tinha a voz aguda.

— Não haverá punição. — Xangô abaixou a mão que empunhava o machado.

— O que? Eu pedi para castigá-las! — disse Oxum raivosa.

— Não, o que você pediu foi Justiça.— a voz de Xangô era tão grave que fazia o corpo das moças tremerem enquanto ele falava— meu Machado foi criado para separar o justo do injusto, e disso você sabe pois estava lá quando o meu machado foi criado. Se elas fossem consideradas injustas, neste momento meus Raios as teriam fustigado, mas não foi encontrado crime nelas.

— Mas... Mas elas me atacaram! Almas desencarnadas não podem atacar os deuses!

— podemos falar?— perguntou Rosa avermelha.

— Que falem.— disse Xangô.

— Essa é a nossa terra, esta é a nossa casa, e se vocês em seu local de origem possuem regras para como coisas devem funcionar, essas regras se aplicam lá e não aqui. Se vocês quiserem entrar neste domínio e habitar entre nós serão bem-vindos é claro, todos sabem que o Brasil é uma terra mãe, mas que fique claro que nenhuma de nós se dobrará perante leis estrangeiras, o que vocês conhecem serve para suas Aldeias, cidades, reinos e impérios, mas para cá as leis já foram criadas e nesta terra nós somos livres e dignas Independente se somos espíritos de mulheres humanas desencarnadas ou não.— disse Rosa Caveira com a voz firme.

— Em nenhum momento temos a intenção de lutar contra vocês, a não ser que aconteça novamente o que aconteceu aqui hoje, que foi o fato desta mulher que está ao seu lado, e sim irei chamar ela de mulher mesmo sendo deusa e não adianta fazer essa cara feia, essa mulher entrou em nossa casa e usou de magia contra nós reivindicando coisas que nós nem sabemos do que se trata e tão pouco nos importa. Ela nos afrontou então nós a castigamos e castigaremos mais se elas nos afrontar, mas só faremos isso se ela voltar a nos perturbar.


Xangô apertou o queixo e franziu as sobrancelhas claramente detestando o tom que aquela conversa estava tendo, mas sendo um homem de poucas palavras ele abaixou o olhar para o próprio Machado e percebendo que seu instrumento sagrado não imitia a reação percebeu que as palavras que as moças proferiram eram justas e que portanto ele não poderia fazer nada a respeito mesmo que a contragosto.

— Que cada um cuide de seus próprios caminhos e que tudo fique em paz.— disse o Deus da Justiça ainda como expressão de desgosto e desaparecendo com o som de um trovão.

— Então está tudo Claro?— perguntou o rosa caveira.


Oxum ergueu o queixo de maneira altiva e arrogante

— Não tem nada claro aqui, entendi cada palavra que vocês disseram e entendo também que cada terra tem suas leis, mas ao contrário de Xangô eu não sou deusa da justiça, eu sou a deusa da vaidade, independente se foi certo ou se foi errado não dou a mínima, o que importa é que vocês me humilharam hoje e irão pagar um preço muito alto por isso, não será agora, mas quando eu bater em vocês vai doer muito. — Então Oxum sorriu e sua presença desvaneceu no ar até que desapareceu.




🌹- II

20 Setembro de 1927, equinócio de primavera, festival das Deusas na ilha Xainã (litoral baiano).


Em toda a terra todos os anos haviam dois festivais que celebravam a energia da primavera sendo a renovação da natureza, no hemisfério norte em vinte de Março as deusas relacionadas a fertilidade se reunião na ilha de Louloúdi no mar tirreno, no Hemisfério Sul a reunião acontecia na ilha Xainã sempre em vinte de setembro, a união das deusas tanto no norte quanto no sul é o que fazia a natureza prosseguir seu ritmo de Florescer sobre a terra.


Xainã era uma ilha minúscula porém contava com um Campo Florido e um pomar com as mais doces frutas que a terra produzia, no centro dele em um espaço aberto estavam as deusas todas Reunidas dentro de uma enorme tenda construída com bambu e seda branca, ali dentro as mais de cinquenta divindades confraternizavam entre si rindo mas ao mesmo tempo tendo conversas que formariam alianças políticas muito necessárias para a continuidade de seu poderio sobre o planeta.


Em cada ano as festas eram organizadas por uma deusa em específico havendo rodízio entre elas, naquele ano era Jaci a deusa da Lua, senhora do brilho prata, uma divindade que deu origem a flora de grande parte da América do Sul,e ela estava belíssima recebendo as suas iguais parada diante da tenda exuberante com sua pele cor de canela característica dos índios mas com seu cabelo comprido liso e totalmente branco como o Brilho da Lua. 

Todas as deusas foram tratadas com regalias, taças de ponche de frutas batizados com cauim eram servidas a todas as convidadas por pequenos meninos indígenas com cabelo em corte tigelinha e trajados com aenas saiotes de palha tingida de muitas cores, aqueles eram os sorridentes curumins, espíritos infantis da floresta brasileira.


As orixás femininas conhecidas por Yagbas chegaram em um grupo coeso, Iemanjá, Nanã, Yewá, Obá, Otin, Iansã e Oxum se destacavam entre as deusas outras pelas suas belas roupas coloridas, cada uma delas trajando belos vestidos em seus tons característicos.

Após alguns minutos de conversa com Benzaiten que tentava negociar com Oxum uma aliança pois era previsto que a população descendente de japoneses no Brasil aumentasse muito nas próximas décadas e que assim como Oxum conseguiu se estabelecer como uma deusa de origem africana mas de estadia brasileira, considerado então afro-brasileira, benzaiten tentava pedir conselhos e até mesmo uma certa ajuda para tentar se estabelecer da mesma forma, Oxum ouviu com atenção todas as palavras da bela Dama trajada em um kimono azul claro e sorria a cada palavra que ouvia porém Oxum demonstrou com seu silêncio que um acordo não era vantajoso deixando então benzaiten frustrada. Se desvencilhando dela Oxum avistou do lado de fora da Tenda a bela Afrodite sentada em uma confortável cadeira de palha trançada que mais Parecia um Trono, dirigiu-se então até ela para cumprimentar a sua velha amiga.

Afrodite estava deitada meio esparramada na cadeira fazendo sua cabeça pender para o lado, de modo preguiçoso abria e fechava a boca enquanto um curumim carregando uma gamela cheia de fatias de bolo coberto de glacê enfiava na boca da deusa pedacinhos de bolo besuntados com cobertura de doce de leite. Belíssima Afrodite, seus cabelos loiros cacheados eram armados, ela usava uma túnica branca de tecido tão fino e a transparência revelava a cor rosada de seus mamilos, a túnica comprida não servia para ocultar nada pois a fenda na lateral subia até a parte mais longínqua de sua coxa Deixando as pernas inteiramente à mostra, calçava uma belíssima sandália de salto alto com solado Dourado e uma tirinha Branca feita de linha furta cor finíssima, e normalmente As deusas usando de boa educação teriam se levantado para cumprimentar qualquer outra divindade que se aproximasse, porém Afrodite não se levantou quando Oxum se aproximou, mas não foi por falta de respeito ou consideração, na verdade o Oxum é Afrodite eram amigas de tão longa data que os cerimoniais e re reverências há muito tempo já não eram necessários entre elas.


— Mentula! Oxum, suas curvas estão me assustando de tão bem feitas...— disse Afrodite falando de boca cheia. 

— Muito obrigada, me esforço para manter tudo no lugar. Adorei o seu cabelo, fez luzes platinadas?

— só algumas na parte externa para dar um brilho sabe, eu ando querendo pintar de ruivo mas meu filho fica dizendo que se eu deixava de ser loira as pessoas não vão mais me reconhecer pois todo mundo sabe que Afrodite é loira.

— Mas você vem dizendo que quer mudar de cor faz... uns quatrocentos anos, não é?

— Sim, desde que aquele rapaz, aquele pinguço... como é o nome dele? O que pintou aquele quadro meu toda ruivona...

— Sandro Botticelli.— disse Oxum contendo o riso, sempre achava engraçado a falta de traquejo de Afrodite e se lembrar das pessoas.

— Esse cara mesmo, desde que ele me pintou com cabelo vermelho naquele quadro belíssimo eu tenho vontade de ficar ruiva, mas todo mundo me diz que eu não posso porque preciso continuar atendendo as expectativas dos outros.

— Uns tempos atrás eu trancei meu cabelo com fios de ouro, e o meu pessoal não gostou nada pois disseram que eu estava tentando fingir que era loira.

— A cada dia que passa eu vejo que nossa coleguinhas divinos não entendem nada de estética, precisamos inovar um pouco... você acredita que Hekate ainda insiste em usar aquelas sandálias gladiadoras? Aquilo saiu de moda faz mil e quinhentos anos, mas ficam nessa onda de tradição pela tradição...

— Meu bem, vou aproveitar esse momento que estamos aqui juntas para lhe fazer um pedido, pedir uma ajudinha.

— Você pode pedir o que quiser, se lembra que estou te devendo uma desde que eu... desde que eu fiz aquilo com Ogum. — disse Afrodite cochichando o nome do deus do metal.

— Pois é, até hoje existe um certo mal-estar por você tê-lo enfeitiçado e seduzido, meu pessoal não gostou nada de você ter se enfiado no Orun, ainda mais com esses propósitos...

— E Graças aos céus que você me ajudou a sair de lá viva, aquela tal de Iansã me deu um soco tão forte e até hoje quando eu toco o lado direito do meu rosto ele lateja. Mas ninguém pode me culpar, você já viu Ogum sem roupa?


— algumas vezes...— Oxum abriu um sorriso malicioso enquanto se sentava em uma cadeira de palha Idêntica de Afrodite que acabara de ser trazida por quatro curumins que carregaram o móvel com grande dificuldade.

— Pois é, o tamanho da bravura daquele Guerreiro corresponde ao tamanho de outras coisas... Até hoje tenho saudade...


As deusas gargalharam enquanto bebericavam em suas taças de ponche e comiam pedacinhos de bolo de tapioca extremamente macio e gelado, o que era muito agradável naquela tarde quente.

Oxum muito polida tocou de leve o guardanapo nos cantos da boca sem deixar que seu batom cor de cereja sujasse o tecido, então começou a desenrolar o verdadeiro motivo daquela conversa.

— Tem uma questão que está me incomodando há anos.

— Caramba, você ja fez a mulher perder a orelha, já não bastou?

— Hã? Oh não, não é sobre Obá que quero falar.

— O que é então?

— Você sabe que agora eu também sou considerada uma ancentral no Brasil pois grande parte do meu povo foi trazido para cá depois da questão da escravidão.

— Pois é garota, essa parada de escravidão com o seu povo foi bem pesado hein? Meu povo também se escravizou entre si durante alguns milênios mas nunca ocorreu entre eles esse tipo de barbarie como o que aqueles descendentes de Celtas fizeram com seus.

— De fato um crime sem precedentes. Mas a questão que eu quero falar com você é o problema que estou tendo em me adaptar no Brasil, eu como você sabe sou original da África mas o Brasil é extremamente diferente na minha terra natal, tem costumes... incompreensíveis.

— Garota eu te entendo, quando os romanos invadiram os meus territórios na Grécia e me levaram para Roma para ser a deusa do amor deles, aquela parada lá de me chamar de Vênus e tal, nessa época eu sofri muito com adaptação pois os romanos eram totalmente malucos! No meu território Natal na Grécia eu era cultuado com muito respeito e muito amor, de repente e me levaram para Roma e construíram um templo para mim, até aí tudo bem mas quando eu entrei lá o povo estava transando na frente do altar! Homem com mulher, mulher com mulher e homem com homem e tinha até uma coisa bizarra de um cara sozinho com um pepino e um pote de manteiga, e na hora eu me senti horrorizada pois eu nunca tinha visto aquilo dentro de um Templo Sagrado, tive vontade de jogar uma praga neles, inclusive acabei jogando né... criei a sífilis, mas a minha intenção era castigá-los ainda mais só que Poseidon veio e me disse que eu deveria compreender que eram os hábitos da nova terra, que o povo dali tinha aquele costume e que eu deveria ser tolerante e me adaptar a forma deles me cultuarem.

— E o que você fez?

— Tinha de ficar ali olhando aquele povo engatado como cães no cio e no fim eu ainda tinha que dizer "muito obrigada" pelo espetáculo sexual deles como se eu tivesse gostado daquela merda. Mas no fim quando eles pediram a minha ajuda para manter o império romano em pé eu me finge de surda, não ia ajudar aquele bando de depravados. Confundiram o fato de eu ser a deusa do amor com a deusa da sacanagem.


Oxum não conseguiu evitar de rir um pouco.

— A questão comigo é um pouco diferente, aqui no Brasil espíritos humanos estão sendo reverenciados com tanta pompa e circunstância quanto nós Deuses.

— Eu fiquei sabendo disso, que Lúcifer veio até Esta terra e... Essas mulheres desencarnada deram a ele poder sobre o lugar e tal e se tornaram princesas naquela coisa que ela chamaram de... dança das princesas, a tal Maria pandeiro agora vive la no inferno e tudo mais.

— O nome era roda das princesas e a mulher no inferno é Maria Padilha. Mas sim foi exatamente isso que aconteceu e o pior de tudo é que alguns anos atrás membros do meu culto, meus filhos, migraram para o culto delas e passaram a ser médiuns delas e quando eu fui tirar satisfação elas me enfrentaram e chegaram a me agredir você acredita?

— Mas que vadias ousadas! E o que você fez?

— Não pude fazer nada pois Xangô, meu ex-marido sabe? Deus a justiça e blá blá blá, ele ponderou sobre a situação e viu que segundo os costumes desta Terra elas estavam agindo certo.

— Por que que vocês não mandam esse Xangô para o espaço? Nós fizemos isso com a nossa deusa da justiça, o nome dela era astréia, mulher chata do caramba, tudo ela ficava regulando e falando sobre ideais do certo e errado então simplesmente nós nos juntamos e metemos um pé na bunda dela.

— No carro dos Orixás nós não temos o hábito de atacar uns aos outros mas agradeço o conselho. Porém o que eu gostaria de te pedir é um método de eu agir sem que os meus companheiros saibam que estou agindo.

— E como você faria isso?

— É muito simples, se você me permitir eu gostaria de ser você por alguns dias.

— Mistificação?— Afrodite se aprumou na cadeira interessada no assunto — dessa forma se os orixás pensarem que sou eu ali não irão culpar você mas eu não quero que eles venham para cima de mim hein... 

— Não se preocupe ninguém vai saber, mas se você me permitir eu gostaria sim de assumir a sua identidade e também gostaria de saber se existe alguma ferramenta grega que eu posso usar.

— Entendo, Se você usar alguma ferramenta sua própria todos vão desconfiar não é?

— exatamente, se eu usar uma arma grega nunca irão suspeitar de mim.


Afrodite ficou alguns segundos batendo o dedo indicador no queixo mostrando que estava pensando.

— Tem uma que vai servir muito bem, um rapaz muito bonito e muito burro mas que sabe bater forte. Com arma certa ele pode dar um efeito muito positivo no seus planos.

— E qual é o nome desse rapaz?

— Narciso.



🌹- III

Sexta-feira, 25 de maio de 1928

Roma, 9 da manhã.


Belladonna vatendeu a porta de seu quarto no hotel, ali parada diante dela tava Marlúcia a portuguesa a recepcionista e camareira que trazia um carrinho com os pratos para o desjejum.

— Olá senhoras, trouxe tudo que pediram.

— Obrigada... ah adoro esse bolo de nozes, mas faltou o Chandon.— Belladonna sorriu gentilmente.

— Trouxe tudo exceto o champanhe.— falou a mulher com ar sisudo parada na porta do quarto vestindo um terninho cinza extremamente cafona com ombreiras largas demais.

— Porque não trouxe champanhe? Não vai me dizer que já acabou? Aquele velho bigodudo tinha dito que vocês iriam trazer um carregamento novo essa semana.— disse Belladona enrolada  em seu robe acolchoado puxando o carrinho de guloseimas para dentro do quarto.


— O velho bigodudo é meu marido senhora, e o nome dele é Antônio — Marlúcia tinha o sotaque português extremamente carregado.


— Sorte para você, pelas feições dele imagina que uns quarenta anos atrás devia ter sido um homem bem afeiçoado. Então eu peço que por favor busca champanhe.

— Tem certeza?

— Ora, porque a pergunta? Se eu pedi é porque quero.

— Mas... mas a senhora não pode beber álcool, ainda mais essa hora da manhã e... e no seu estado.


Belladona estava apanhando uma bandeja no carrinho mas parou e lentamente virou a cabeça para mulher em pé ali no batente da porta, Isaura que estava sentada na cama rapidamente se ergueu e veio em passos rápidos já temendo o pior.


— O que quis dizer com "no meu estado"? — Belladonna perguntou falando entre os dentes.

— Desculpe a indiscrição mas sem querer acabei ouvindo que a senhora está grávida.

— Acabou ouvindo?

— Exato. E por acaso eu também gostaria de saber se haverá necessidade de reservar um quarto maior caso o seu marido também queira se hospedar aqui, pois suponho que é casada, não é?

— Ai meu Deus...— murmurou Isaura olhando de uma para outra.

— Gosta de piadas Dona Marlúcia?— disse Belladona sorrindo.

— Piadas?— a mulher franziu a testa sem entender.

— A portuguesa grávida de nove meses entrou na farmácia com aquela barriga enorme e pediu ao farmacêutico um remédio preventivo, ele olhou pra ela e disse "mas agora minha senhora? Agora não adianta mais..." e ela disse "é que o Manuel me inchou o bucho usando o buraco da frente, agora ele anda usando o buraco de traz e eu tenho medo de ficar corcunda...".— Belladonna manteve a uma expressão séria no rosto.

— Mas que horror! Que ausência de modos! Que falta de respeito falar essas coisas!

— O respeito do cu é uma rola grossa do tamanho de uma berinjela dona Marlúcia, foi uma assim que me engravidou, sabia?

— Sua rebaixada! Eu não gosto desse tipo de gente hospedado neste hotel, isso aqui é lugar de respeito! De família!

— Então escute bem o que eu vou te dizer sua cadela de xoxota seca, enquanto você está se matando de trabalhar o seu marido está na rua assobiando para as novinhas e gastando o dinheiro que você ganha com seu mísero salário com as prostitutas no porto, então se eu tenho marido ou não, não  é da sua conta pois todo o dinheiro que eu tenho para gastar é  meu, eu não sou uma estúpida velha nojenta que passa mais batom nos dentes do que nos lábios como você, não sou uma mulherzinha hipócrita que fala de moral quando na verdade tem um casamento fraco onde o marido não a toca a mais de dez anos, uma mulherzinha tola que se masturba no banheiro quando tomar banho já que essa é a única maneira de sentir prazer pois mesmo na época em que o seu homem que tocava você não sentia nada. — Belladona agarrou o colarinho da mulher EA empurrou contra a porta deixando Marlúcia aterrorizada.

— O que é isso?!

— E se você quer saber como eu sei  dessas coisas, sua piranha, a resposta é que eu sou como aquelas mulheres que ha duzentos anos atrás eram queimadas nas praças diante das igrejas, e você sabe do que eu estou falando! Quando eu olho nos seus olhos eu vejo quem você é Marlúcia e vejo que quando você está lá sozinha no banheiro enfiando a duchinha no meio das pernas fica pensando naquele garoto que trabalha na cozinha, aquele rapaz musculoso que te chama de vovó. Agora me dê um motivo Marlúcia de não acabar com a sua raça aqui e agora? Detesto gente fofoqueira que fica ouvindo atrás das portas, detesto gente moralista que por trás da fachada de boa cidadã não passa de uma vadia suja!


Belladonna sentir calor nos pés e quando olhou para baixo viu a poça de urina se formando em volta da mulher.


— Você se mijou? Há um segundo atrás não era você que estava toda altiva tentando me constranger na porta do meu quarto?— Belladona soltou o colarinho de Marlúcia e deu um passo para trás descalçando As pantufas com nojo do líquido amarelo que havia respingado em seus pés.

— Belladonna não precisa disso— disse Isaura.

— Ah Precisa sim, e você Marlúcia trate de vir aqui e limpar a merda que fez, e venha pessoalmente, porque você pode ter certeza que usando os dons que eu tenho posso saber de todos os seus podres e não vou ter problema nenhum em gritar aos quatro ventos para todos os seus colegas inclusive para o seu marido, posso contar para eles quem você é e o que você faz. Será que o dono do hotel sabe que o oorão vem sendo alugado para armazenar contrabando da China? Ou será que o dinheiro está indo só para o bolso da puta velha da recepção?


O peito de Marlúcia subia e descia em uma respiração pesada, assustada, então a mulher falou com a voz quebrada:

— E-eu vou buscar o champanhe e depois eu... eu venho limpar. Com licença.— ela deu as costas literalmente saiu correndo pelo corredor.

— não acredito que essa mulher mijou em mim! Droga, mijou tanto que eu estou sentindo o mijo dela nas minhas pernas!— disse Belladona com uma cara de nojo enquanto fechava a porta.

— Se acalme, ficar nervosa faz mal no... no seu estado.— Isaura soltou um risinho.

— Mas é serio, o mijo da velha molhou minhas pernas, que horror!

— Como você sentiu respingar nas suas pernas se você está de roupão meu bem?— disse Isaura ainda sorrindo.


Belladonna parou e percebeu que sentia líquido quente escorrendo por entre as pernas, e o calor subia até o meio de suas coxas, não era possível que o acidente de Marlúcia houvesse respingado ali, então ela desamarrou o cinturão do robe e quando olhou para as pernas viu que logo após a barra de sua camisola curta escorriam grossos filetes de sangue que desciam da sua virilha e já estavam chegando aos pés.


— Ai meu Deus! Bella você está...

— Isaura... — Belladonna levou as mãos a barriga — eu acho que eu estou perdendo meu bebê...





📚 Glossário:


 1. Rum: Forma afro-brasileira de mencionar o momento que pessoas em transe dançam tomadas por seus orixás. O termo vem de HON ou HOUN, palavra Fonge pertinente a culto de Vodun.

 2. Cauim: bebida alcoólica tradicional indígena feita à base de mandioca fermentada. 

 3. Benzaiten: Deusa do amor da cultura japonesa.

 4. Mentula: expressão chula em grego, é similar a "caralho".

 5. Descendentes de Celtas: Afrodite se refere aos portugueses.

Comentários

  1. Esplêndida estória! Parabéns Felipe Caprini! Ansiosa pela continuação. 👏👏⚘🤩

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas