Flor a Flora - Capítulo 2

 

FLOR A FLORA

Segundo conto da Série Urdidura das Feiticeiras






Capítulo 2
"Ataque ao Casarão"

🌹- I
Sábado, 14 de Abril de 1928

Os pescadores costumavam Navegar pelos Rios no entorno daquela Ilha no litoral do Espírito Santo, quando passavam por ali não sentiam vontade alguma de ir até aquele local, o que todos viam era uma ilha minúscula, seca e arenosa e que sempre tinha cobras, serpentes venenosas zanzando pela areia amarela. Não haviam peixes naquelas aguas, apenas arraias eletricas, e isso tornava o local ainda menos desejável. Um e outro pescador até contavam umas lendas de que seus tios ou seus avôs tinha ido até aquela Ilha gerações passadas e tinham sido picados por uma grande Cascavel e até mesmo costumavam falar de cobras naja, mesmo que claramente as najas nem sequer existissem no Brasil, mas quem espalhou esse tanto de histórias macabras sobre a ilha da areia foram justamente as moradoras de lá.
Os humanos viam ali um local inóspito e absurdamente indesejável devido ao feitiço colocado ao redor do lugar, aqueles dotados de dons espirituais, Principalmente as bruxas e feiticeiros, quando passavam por ali contemplavam uma Ilha verde e Florida com altas palmeiras, um oásis como nos contos de fada, e no centro da Ilha um enorme Casarão de dois pavimentos construído em madeira vermelha, madeira essa que foi retirada de navios naufragados nas águas quentes daquele lugar.
Mesmo as almas precisam de repouso quando estão em terra, alguns crentes acreditam que a alma é apenas uma luz que vaga por aí sem parada, de fato talvez existam algumas almas bizarras que seguem essa descrição, mas as entidades não, a única diferença de uma identidade para uma pessoa vida é ausência do corpo humano físico porém elas ainda são indivíduos e todo indivíduo precisa de um lugar para chamar de lar.
No centro daquela Ilha estava o casarão conhecido como Flor a Flora, um joguete de palavras como uma brincadeira para indicar que suas oito ocupantes eram espíritos todos com nomes de flor. A casa era construída de maneira circular, no centro um amplo salão de convivência iluminado pela luz da lua através de uma abóbada de vidro que durante o dia se tornava escura para ocultar o sol mas que durante a noite era transparente para que as moças pudessem contemplar o luar.
O Casarão não possuia cozinha ou banheiros, espíritos não possuem essas necessidades, era um local grande mas muito simples, rodeando este grande salão central estavam 9 portas, uma de cada cor sendo a porta de entrada que dava para a varanda e as oito outras portas cada uma referente a um quarto ocupado por uma das moças.
Todas eram extremamente ocupadas por isso usavam aquele Casarão como local onde podiam guardar seus tesouros, confraternizar entre si, fazer reuniões mas principalmente as oito tinham seus quartos para poder por alguns momentos ficarem sozinhas.
É terrivelmente perturbador ser uma entidade, ser chamada a todo momento, levada a centros espíritas, incorporar em médiuns, estar constantemente em festas ao som de altos tambores. Existem momentos onde as entidades querem fazer apenas uma coisa: simplesmente não fazer nada. O Casarão era feito para descansar.
Naquela noite apenas duas moças estavam ali, Monique, a Rosa de Fogo e Simone, a Rosa dos Ventos.

Rosa dos Ventos estava em pé simplesmente parada com a cabeça erguida olhando para o céu, posicionada no centro do salão mirava com atenção a abóbada de vidro vendo as estrelas se movimentarem no azul escuro noturno, ao lado dela Rosa de Fogo sentada em uma poltrona de veludo negro folheava um livro antigo.
— Saturno está retrógrado hoje, fazendo oposição a Marte. Veja só, tem grande influência de escorpião nestes Astros, isso me preocupa um pouco...

Rosa de fogo olhou para a amiga ali em pé em seu vestido branco de cetim reluzente, rosa dos ventos tinha cabelo negro encaracolado que caia pelas costas até abaixo da cintura e a cor da sua pele era algo muito diferente da cor da pele de qualquer ser humano pois parecia ser meio acinzentada como a de um cadáver, contudo a maquiagem forte em tons de prata em torno dos olhos a deixava deslumbrante.
— É o quê? — Rosa de Fogo olhou para ela.

Rosa dos Ventos arregalou os olhos e falou em tom sombrio:
— Os Astros nunca mentem.
— Simone você sabe que eu não entendo nada dessas coisas de céu.— Rosa de Fogo ergueu o queixo para olhar as estrelas mas confirmou que realmente não entendia nada daqueles pontinhos brilhantes.
— Não é só no tarot ou na borra de café que se prever o futuro minha amiga...— disse Rosa dos Ventos com ar amalucado.
— Toda vez que você fala essas coisas eu desconfio que você está ou bêbada muito chapada.— Roda de Fogo abaixou o olhar e voltou a ler seu livro.
— O que é isso que está lendo?
— Bom, encontrei isso por aí, é um livro que você ia gostar pois tem uma teoria muito doida, aqui diz que existem duas dimensões, você acredita nisso? Que tem dois mundos idênticos paralelos um ao outro? Aqui tem uma história toda doida dizendo que o universo foi criado por um Deus muito antigo e Supremo ele que ele foi atacado por Deuses menores e...
— Quando você diz quem encontrou por aí significa que você roubou?
— Ah não seja moralista, uma das poucas vantagens de estar morta e de ser uma entidade é conseguir ser invisível e ainda assim tocar nas coisas materiais, do que me adiantaria ser Invisível e poder carregar objetos se eu não pudesse roubar uns badulaques?
— Você não toma jeito mesmo.— Rosa dos Ventos voltou seu olhar para o céu novamente — Roubando das suas próprias mediuns...

Rosa de Fogo continuou a leitura por alguns instantes até que ouviu um som estranho, um tom de voz engasgada, ergueu o queixo novamente e olhou para Rosa dos Ventos que estava com os braços muito abertos, os olhos revirando nas órbitas e o corpo inteiro tremendo.
— E lá vamos nós para outra previsão não é? — Ela ficou em pé e segurou Rosa dos ventos pela cintura até que aquela situação terminasse.— Você teve outra visão? Algo importante?

Rosa dos ventos se virou abruptamente e encarou a amiga:
— Nós temos que sair daqui imediatamente! Tem alguém vindo, perigo vindo, nós vamos ser atacadas!

🌹- II
Estava amanhecendo, Henrique repousava ainda adormecido em uma confortável cama no quarto que havia sido reservado a ele no segundo andar da casa de Magnólia, ela morava sozinha naquele convento desativado de mais de  trinta quartos e pelo menos vinte e cinco deles nunca havia sido sequer tocado,
mas sabe como são as bruxas, sempre muito esquisitas e apaixonadas por possuir o desnecessário.
Por mais que Salaí também fosse um feiticeiro ele conhecia magias para diversos fins porem nenhuma para carregar uma pessoa desmaiada escada acima , então teve que levar Henrique no colo até o quarto e quase morreu fazendo, por mais que Salaí fosse mais alto e nitidamente mais corpulento que Henrique que pesava tanto quanto uma pluma, ele não era acostumado a carregar marmanjos no colo.
O cansaço era grande mas fala Salaí assim que acomodou o Henrique saiu do quarto, desceu as escadas indo até a sala principal da residência onde ficava o aparelho de telefone, chegando próximo ele tirou do bolso o cartão onde Doralice havia escrito um número a lápis, então com cuidado retirou o fone do gancho e girou o disco do aparelho até que os seis números fossem digitados, a chamada entrou em espera e como era comum na Itália imediatamente foi redirecionada a recepção do hotel.
— Hotel Donna Charlotte, buongiorno.—  disse a voz azeda da recepcionista.
— Buongiorno, per favore parli portoghese?
— Sim, eu sou portuguesa, o que é surpreendente sendo este um hotel para portugueses não é? Me chamo Nicole, no que posso ajudar? — ela respondeu com sotaque quadrado do português de Portugal e cheia da costumeira grosseria europeia.
— Eu gostaria de entrar em contato com a senhora que está hospedado no quarto 172, estou tentando ligar para o ramal do quarto mas ninguém atende.
— 172? Sim, a senhora Belladonna pediu que o ramal fosse desativado pois não quer ser incomodada. Em caso de emergências ela pediu que a ligação fosse direcionada para o quarto 174 onde está hospedada a sua secretária.
— Essa secretária no caso é Dona Isaura?

Salaí ouviu o som de papel sendo remexido como ser recepcionista estivesse procurando algo em um caderno.
— Sim correto, o quarto 174 está hospedado Dona Isaura Esteves. Gostaria de deixar recado ou quer que eu direcione a ligação para o quarto?
— Desculpe, sei que é muito cedo mas aconteceu um problema na família e é necessário avisar com certa urgência então por favor redirecione a ligação para o quarto de Dona Isaura.

Salaí ouviu a recepcionista colocar o telefone no gancho então o som de chamada voltou a ser ouvido na linha, não demorou muito e Isaura atendeu o com a voz grogue de sono.
— Buongiorno, posso aiutare?
— Isaura sou eu, Salaí.
— Salaí? Meu Deus Menino como você conseguiu fazer uma ligação aí do Brasil? A companhia telefônica só abre depois das oito horas e aposto que aí ainda é de madrugada.
— eu estou em Roma, vim atrás de Henrique, e ele por sua vez acabou vindo para cá atrás da Belladonna.  Porque ela não está atendendo o telefone?
— Ela anda muito deprimida, quer ficar sozinha. — Isaura sempre usava um tom maternal ao falar de sua protegida.
— Por Deus Isaura, o velho morreu já faz um ano ela ainda está nessa?
— Ela era muito apegada ao pai meu querido, é natural que tenha um período de luto alongado.
— Tudo bem, mas você vai ter que ir falar com ela, desculpa incomodar o seu sono Isaura mas você precisa acordar Belladonna imediatamente.
— Não é uma boa ideia, ontem à noite ela estava muito enfezada e acredito que ainda está, sem contar que deve estar de ressaca.
— Isaura escute bem, Henrique sofreu um grave acidente ontem no início da noite, Estamos na casa da tia Mag, ele está desacordado e quase morreu, passei a noite inteira fazendo magia de cura mas ainda assim não estou certo se não restará sequelas. Mande a Belladonna vir imediatamente porque se ela está triste porque perdeu o pai pode aumentar um pouco a tristeza se acaso vier a perder o irmão.
— Nossa! Não se preocupe eu vou acordar ela imediatamente E chegamos aí em menos de uma hora.

Salaí colocou o telefone no gancho e atravessou um longo corredor cheio de portas abertas com quartos vazios até chegar no antigo refeitório do convento que agora era a oficina de trabalho de Magnólia, ela trabalhava confeccionando artesanalmente Matertuas, que são os amuletos mágicos usados por feiticeiros para ampliar seus poderes.
Por mais que o refeitório fosse enorme Salaí teve que passar por um minúsculo vão até chegar à mesa que Magnólia trabalhava, isso porque todo o espaço estava tomado por caixas de madeira, engradados contendo metais preciosos, cristais e pedras e todo o material exótico o qual ela usava em suas obras. Magnólia estava sentada com um grande óculos de lentes fundo de garrafa no rosto examinando um anel de Esmeralda Sob a Luz intensa de uma lanterna de luz amarelada.
— Tia Mag Tenho uma má notícia, tive de abusar um pouco da sua hospitalidade.

Magnólia bufou sem tirar o foco do anel que examinava.
— A minha hospitalidade é enorme Salaí, você poderia trazer todos os seus amigos do Brasil e os hospedar aqui de uma vez só, poderia dar um baile nesta casa ou mesmo fazer um show de rock cheio de transviados que eu jamais iria me importar e iria até ajudar pois adoro receber boas visitas, mas eu detesto aquela mulher.
— Mas... eu precisei avisar a ela, ela é irmã do Henrique, ela é da Fami...
— Não, ela não é da família, ela se recusa a usar o nosso sobrenome mesmo que o pai adotivo dela, e que os deuses tenham Jorn em um bom lugar, tenha dito mais de uma vez que ela podia adotar o nosso nome se quisesse, mas Belladonna sempre rejeitou o nome Salvaterra com aquele estúpido medo de ficar parecida com a mãe, e você que conheceu o sarana sabe muito bem que Belladonna é a cópia fidedigna dela então usar o nome ou não, não adiantou nada e a única coisa que aquela ingrata fez foi causar mal-estar por rejeitar o nosso nome e principalmente por maltratar Doralice. Jamais engoli jeito que ela trata Doralice, ela não tem um pingo de respeito.
— A senhora está coberta de razão, mas ainda assim foi necessário avisar. Vai ficar chateada comigo?— Salaí se inclinou e deu um beijo na bochecha de Magnólia.
— Se eu tenho que aturar aquela  porca dentro da minha casa você vai ter que me fazer um favor, vai até a cozinha arregace as mangas e e lave aquela louça para sua tia querida, eu não nasci para o serviço doméstico.

Salaí estava morto de cansaço mas magnolia era tão boa para ele e o tratava como se fosse da família mesmo não sendo que ele nunca dizia não para ela.
Assim que acabou de colocar a última panela no escorredor de louça ouviu o som da campainha, então Magnólia gritou:
— Diga a Isaura que estou aqui se ela quiser falar comigo, mas avisa garota para não encher o saco.

Salaí correu para a porta e quando abriu viu Isaura sorridente, baixinha com aquele penteado cheio de laque exuberante com fios grisalhos, estava fofissima vestindo aquele seu casaco de lã cor-de-rosa preferido e ao lado dela Belladonna com seu sapatos de salto exageradamente altos, saia godê preta até os pés, um casaco de pele exageradamente bufante em pelo de mink branco, óculos escuros de lentes enormes cobrindo a metade do rosto, a boca de lábios carnudos com um batom vermelho tomate, o visual termimava com o longo cabelo negro de franja reta na testa. Beladona Com certeza se vestia de maneira não condizente com a época.

— Bom dia Salaí, que que aconteceu com aquele destrambelhado?— Belladonna entrou na casa e imediatamente abaixou um pouco os óculos e olhou para todos os lados do ambiente fazendo cara de nojo.
— Você esta vestida de viúva ou de prostituta? — Salaí sorriu.
— Uma combinação de ambas as coisas.
— Como está querido?— Isaura foi até Salaí e o beijou duas vezes, um beijo em cada bochecha, Isaura era sempre muito doce.
— Estou ótimo Isaura, só um pouco cansado.
— Sim, está abatido, e está muito magro, veja só o que eu trouxe— ela ergueu o braço mostrando uma cesta de vime que trazia — trouxe aqueles pasteizinhos de Belém que você gosta tanto, estamos hospedados em um hotel português e eles vendem muito disso lá e a qualidade é muito boa, trouxe o suficiente para você, para Henrique e para a Mag, inclusive onde ela está? Quero muito dar um abraço nela.
— Tia Mag está te esperando na oficina, mas no caso... só você.
— Vai lá ver a maldita velha amarga Isaura, eu vou ver Henrique e depois vou lá alfinetar um pouco aquela sapatona safada.— disse Beladona sorrindo.

A todo tempo Belladonna mantinha aquele ar de superioridade, não era de hoje que se comportava assim, sendo filha de Feiticeira, sendo também filha adotiva de um bruxo financeiramente bem sucedido e ainda tendo grandes dons espirituais, Belladonna era uma mulher extremamente arrogante. Porém havia apenas poucos momentos onde aquela arrogância desvanecia, esses momentos eram quando estava em contato com duas pessoas, Henrique e Isaura.
Isaura havia sido contratada para ser governanta da casa de Jorn antes mesmo de Belladonna ter sido adotada ainda recém-nascida, então Isaura logo assumiu o papel de babá e depois de cuidadora e depois de Companheira e depois de secretária mas de um modo geral Isaura era o que mantinha Belladonna em pé e por incrível que pareça Belladonna jamais trator Isaura como uma funcionária, na realidade Isaura era para ela como uma mãe. A relação com Henrique era também muito positiva pois o menino lembrava muito dela mesma então Belladonna simpatizava até mesmo com as falhas do rapaz, agora ela era uma mulher de trinta anos de idade e Henrique apenas um rapazinho dia vinte e um e ainda assim ela o tratava com grande afeto, e a maior prova disso é que Salaí percebeu a mudança nítida de expressão no rosto de Belladonna pois enquanto caminhavam pelo corredor casarão ela ia com o nariz em pé e com aqueles lábios franzidos para baixo como quem constantemente está sentindo cheiro de bosta, mas assim que abriu a porta do quarto e viu o Henrique ali adormecido toda aquela figura antipática desapareceu e ela rapidamente sentou na cama e acariciou o rosto do irmão com grande afetividade.

— Não precisa explicar o que aconteceu, Salaí — ela se dirigiu a ele agora com voz baixa para não acordar o irmão — nitidamente o acontecido entre meu irmão e a Cigana Sarah é um segredo absoluto, e você sabe o que isso significa não é?
— Significa que absolutamente todo mundo já sabe?
— Sim exatamente isso, antes mesmo que Isaura fosse me chamar após a sua
ligação quem entrou no meu quarto e me passou toda a história foi Sete Saias, ela contou que Sarah explodiu aquela casa com Henrique dentro.
— Sim.
— por mais que eu ame meu irmão e esteja muito compadecida da situação dele, não tenho como defendê-lo, o errado era ele.
— E você diz isso para mim como se eu não soubesse?

Belladonna removeu os óculos dobrando as hastes da Armação e guardando no bolso interno de seu casaco, então finalmente olhou nos olhos de Salaí:
— Me desculpe, ando tão atrapalhada com os meus próprios sentimentos que acabei não levando em consideração os seus. Aliás eu tenho muito que te agradecer por que mesmo com toda a situação você ainda veio socorrer Henrique.
— Não foi como se ele tivesse me traído Belladonna, nós estávamos separados já há algum tempo.
— Estavam separados há duas semanas e isso não é tempo suficiente por um amor deixar de existir, ainda mais o amor de vocês que vem durante a vida inteira. Nós temos idades aproximadas, e você sabe que a maturidade é algo que não acontece com todo mundo. Henrique é jovem e ainda e comete muitos erros assim como eu e você cometemos quando tínhamos 20 anos, Então pense muito bem no que vai fazer.
— Está dizendo isso porque? Acha que ele vai pedir para reatar o nosso relacionamento?
— Sem sombra de dúvida.
— E acha mesmo que eu iria querer voltar com ele após descobrir que ele estava transando com o maldito Caboclo?
— Por Deus Salaí, Henrique nunca fez sexo com Rudá. — Belladonna segurou o riso.
— Como pode ter certeza?
— Rudá está muito enfraquecido e mesmo que o histórico dele de séculos atrás tenha sido de uma divindade que conseguiu engravidar diversas humanas, atualmente o poder dele decaiu muito e dificilmente ele conseguiria se materializar de forma a conseguir fazer isso. Pelo que Sete Saias me contou Cigana apenas presenciou os dois se beijando.
— Ainda assim...
— Ainda assim você o ama. O amor é difícil Salaí, você já perdeu Letícia, não perca também meu irmão.
— Não fale dela, por favor.
— Falo sim, acha que eu não sei que você, Doralice, Magnólia, Henrique e todos os outros do nosso meio ficam zombando de mim porque até agora eu não consegui superar a partida do meu pai? A questão é que eu assumo o que sinto e não tenho vergonha de demonstrar que estou arrasada, e eu não entendo porque você gosta tanto de ignorar o que sente pela morte da Letícia.

Salaí fechou os olhos um segundo se concentrando, não gostava que ninguém tocasse no nome daquela menina, Letícia havia sido a segunda criança sobrevivente da Roda das Princesas, uma menina sequestrada por Sarana e que deveria ter servido de abrigo para espírito de Ellen, a pombagira Menina, tanto ele quanto Letícia seriam usados naquele dia como corpos para abrigar almas tanto de Menina quanto de Sete Encruzilhadas porém graças a intervenção das outras moças os planos de Sarana foram frustrados e ele e Letícia puderam sobreviver.
A família de Salaí havia sido morta, exterminada pois resistiram a tentativa de sequestro feita por Sete Encruzilhadas, a família de Letícia não, os parentes dela estavam todos vivos mas quando a menina voltou para casa foi abruptamente rejeitada pois não era mais uma criança normal, após ter estado naquele dia na presença daqueles espíritos, na presença de Satanás em pessoa, Letícia automaticamente desenvolveu dons espirituais, e automaticamente e sua família passou a considerá-la uma aberração. Salaí foi acolhido na casa de Doralice e criado lá junto com Henrique, e assim que a família de Letícia a colocou na rua com apenas sete anos de idade Doralice também a acolheu, porém por mais que Salaí estivesse totalmente aberto a usufruir de seus próprios dons espirituais e se tornaram Feiticeiro, Letícia não tinha está índole, ela abominava a magia. Com a idade de vinte anos Letícia utilizando um caco de vidro cortou os próprios pulsos. Salaí encontrou o corpo dela já sem vida caída no piso do banheiro. Letícia para ele era uma verdadeira irmã, ela para ele era uma verdadeira amiga, e por mais que Doralice o tratasse com muito amor ele sabia que existia um elo entre Henrique e Doralice que não existia entre Doralice e ele, mas existia este mesmo elo entre Salaí e Letícia e no momento em que ele teve de sepulta-la sentiu como se a sua verdadeira família estivesse extinta.

— As pessoas são diferentes Beladona, você consegue chorar a perda de Jorn mas eu não quero me lembrar de Letícia, eu não quero reviver essa dor então por favor não fale mais dela.

🌹- III
Roda de Fogo ficou em pé em um salto quando ouviu o estrondo do trovão próximo da casa.
— Que som estranho, pareceu... apareceu um trovão mas... estranho.
— Monique nós temos que sair daqui agora!— Rosa dos ventos agarrou o braço da amiga e começou a tentar arrastá-la até o seu quarto onde havia um método de fugir com agilidade.
— Espera!— Rosa de fogo desvencilhou o braço do aperto da mão da amiga — Não estou entendendo porque você tá falando tanto em fugir, nós estamos mortas minha filha, você acha que vai acontecer o quê com nosso?
— Na minha visão... na minha visão alguma coisa muito ruim acontecia, eu vi você explodindo!
— Explodindo? Simone você sabe que as suas visões às vezes carecem de interpretação, você sabe que nós duas somos espíritos, Espíritos não explodem pois o que explode é... é sei lá, dinamite eu acho, e nós não somos mais feitas de matéria, me chamo Rosa de Fogo mas não sou feita de dinamite não.
— Eu sei mas...
— Tudo bem, nós podemos sair daqui mas antes eu preciso ver que o barulho foi esse.
— Porque?
— Pode ser de novo aquelas mirins nojentos, eles amam fazer vandalismo na ilha.

Rosa de Fogo caminhou até a porta de entrada, abriu as duas folhas de madeira vermelha saiu para a varanda, se apoiou no balaústre e ficou olhando atentamente para o entorno da Ilha, ali da varanda era possível ver basicamente tudo e até mesmo era possível vislumbrar um pouco do mar devido à ilha ser minúscula, ela ficou em silêncio com seus olhos perscrutando tudo ao redor então seus olhos de iris fulgurantes encontraram aquela figura.

Narciso havia usado uma magia de transporte, saiu da terra dos Deuses diretamente para as areias da praia da pequena ilhota, por falta de prática o feitiço de transporte ecoou um estrondo tão grande que fez um som similar ao de um trovão. Ele ficou alguns segundos abaixado na posição que havia caído na terra mas logo se levantou e apertando o cabo da espada com o punho cerrado começou a caminhar na direção daquele único casarão visível no lugar.
Se aproximou a passos rápidos e assim que estava perto viu uma mulher com vestido vermelho alaranjado, com a saia bem armada e um coque alto ornado por flores cor de salmão o encarando da varanda.
Narciso ergueu a lâmina da espada diante dos olhos e ali no metal a imagem daquela mulher que encarava da varanda foi reproduzida, e ele teve certeza que ela era um dos alvos.

— Aquilo é humano?— perguntou o Rosa de Fogo.
— Eu acho que é quase, não sinto vida completa nele e o corpo também não é inteiramente de carne, sinto cheiro de terra nele... e ele está caminhando diretamente para cá como se pudesse ver o casarão.
— Então é um bruxo? Os bruxos podem ver as nossas coisas.
— Não tem cheiro de bruxo.— Rosa dos Ventos olhava ressabiada para a figura de Narciso se aproximando.

— Me léne Nárkisso, kai írtha edó gia na tous antimetopíso. Katéva kai pálepse gia ti zoí sou. — Disse Narciso de queixo erguido.
— O quê? — gritou Rosa de Fogo.

Narciso percebeu que suas adversárias não falavam grego arcaico, então respirou fundo e levou a mão esquerda na frente da boca e fez um símbolo com os dedos com grande agilidade invocando o feitiço de compreensão.
— Eu disse que me chamo Narciso, e vim aqui para enfrenta-las. Desçam e lutem por suas vidas.

Rosa de Fogo encarou com ar de deboche e principalmente incredulidade.
— mas que caralho você pensa que está fazendo? Me chamando para lutar pela minha vida? Homem eu morri há mais de cem anos, está muito tarde para começar a tentar e lutar pela minha vida não acha?
— Não estou atrás de palavras vazias, eu fui enviado aqui para exterminar você e sua raça, me foi entregue essa espada — ele ergueu a lâmina Eudora acima da cabeça — destinada a pôr um fim na sua existência.
— eu não acredito em papagaiada de espada mágica rapaz, você é quem? O rei Arthur? Vá tomar no cu seu doido!
— Estou ficando decepcionado...— Narciso abaixou a espada— pela ênfase que me foi informado acreditava que ao chegar aqui iria encontrar verdadeiras Amazonas, mulheres corajosas, mas de repente venho de espada em punho somente o que encontro é uma falastrona medrosa.
— Eu não tenho medo de você.— Rosa de fogo franziu os lábios com raiva pela Ofensa.
— Não quero mais saber de suas palavras, venha aqui e me mostre existem coragem em seu ser. Lute mulher.

— Não vá, você já viu que tinha que ver, agora vamos embora.— pediu Rosa dos Ventos temerosa.
— Calma, eu vou chutar a bunda desse moleque e depois nós vamos para onde você quiser.— Rosa de fogo respondeu sorrindo.
— Não deixe que aquela espada tocar em você, sinto cheiro de magia antiga nela.

Rosa de fogo desceu os degraus da varanda até chegar no terreno arenoso, caminhou até estar a menos de quatro metros de Narciso.
— Então você veio aqui para lutar comigo? Pois venha com tudo que tem.

Narciso inclinou o corpo, posicionou a perna esquerda a diante e a perna direita para trás dando apoio, segurou o cabo da espada com ambas as mãos e deu um impulso para frente atacando a adversária.
Rosa de fogo desviou, correu para o lado em passos largos, sua saia se agitando enquanto ela corria, Narciso foi em seu encalço acreditando que seria uma perseguição, mas de repente Rosa de Fogo voltou para trás girando e com salto atingiu o rosto de Narciso com o peito do pé em um chute certeiro, o contato da pele sedosa do pé da moça com a do rosto do rapaz emitiu um som similar ao estralar de um chicote.
Narciso cambaleou e caiu sentado.
— Não fiquei fazendo manha bebezinho, venha cá vamos brincar um pouco.— disse Rosa de fogo rindo.

Narciso ficou em pé, assumiu novamente posição de combate e investiu contra Rosa de Fogo, ele já imaginava que ela iria novamente desviar ou fugir mas para sua surpresa o que ela fez foi investir no rumo dele, ele estava com espada em riste mas ela se abaixou por um segundo e quando ergueu o corpo Segurou o pulso de Narciso com a mão o puxando para o lado e fazendo cair de joelhos desequilibrado.

— O que é isso garoto? Veio aqui para ficar caindo de um lado para o outro feito um João Bobo?

Narciso engoliu em seco envergonhado por ter sido derrubado duas vezes seguidas, ficou em pé novamente então virou as costas e começou a correr na direção da praia, fugia desesperado. Rosa de fogo achando muita graça correu atrás dele rindo e gargalhando, mas então Narciso girou o corpo com extrema agilidade e mesmo estando a vários metros distância arremessou a espada como se fosse um dardo, Rosa de fogo gemeu e quando olhou para baixo viu a lâmina cravada em sua barriga.
— O quê? Como você fez? Como...— imediatamente ela caiu de joelhos sentindo uma fraqueza descomunal, não  sentia dor na perfuração mas sim a sensação de formigamento no corpo inteiro.

Narciso foi até ela, se abaixou e segurou no cabo da espada a puxando e fazendo Rosa de fogo gritar, e ela gritou não de dor e sim de medo pois a sensação que estava tendo era similar a da primeira vez que havia morrido.

Ele sorriu vitorioso, mas a sua distração foi tempo suficiente para quê Rosa dos Ventos aterrissa se bem diante dele, ela com seus dons de Ventania conseguia flutuar com leveza e assim ser imperceptível ao se mover pelo ar, Narciso olhou para ela e tentou erguer a espada mais rosa dos ventos já tinha as bochechas inflamadas e quando sobrou na direção dele uma lufada de Vento violenta o empurrou para trás, a força do vento foi tamanha que ele rolou pelo chão arenoso por vários metros incapaz de se manter em pé.

— Simone, Simone eu acho que tem alguma coisa errada comigo...— disse Rosa de Fogo enquanto Rosa dos Ventos ajudava a ficar em pé.
— Vamos sair daqui rápido e vai ficar tudo bem, você vai ver, venha deixe-me passar o braço por sua cintura.

Rosa dos ventos agarrou Rosa de fogo e com um salto planou no ar pousando levemente na varanda, entrou na casa e fechou a porta principal com feitiço, então com dificuldade apoio Rosa de fogo junto desse para entrarem em seu quarto.
O aposento de rosa dos ventos era enorme e basicamente tomado de estantes cheias de livros antigos, mas no fundo havia um grande espelho de moldura Dourada cujo o topo da moldura exibe a imagem de um anjo feminino com as asas abertas e segurando nas mãos um medalhão aonde era possível ler o nome "Samyaza".
Rosa dos ventos passou a unha do dedo indicador de cima a baixo no vidro do espelho imediatamente o vidro ondulou como se fosse feito de Mercúrio líquido, então Ela ouviu um estrondo vindo do outro lado do quarto e se virando viu Narciso ali em pé com a espada na mão.
Mas era tarde demais, ela agarrou Rosa de Fogo e as duas pularam para dentro do espelho.
Narciso correu até ela mas quando sua mão encostou naquele espelho ondulante ele voltou a ser de vidro maciço estourou em mil cacos que voaram para todos os lados.

🌹- IV
Dama da Noite ouviu o som de vozes agitadas, eram vozes femininas.
A casa de Dama da noite era chamada por todas as moças de "buraco de toupeira", isso porque agora ela morava em um conjunto de catacumbas subterrâneas secretas abandonadas em um cemitério para estrangeiros no Rio de Janeiro, a entrada na superfície era um túmulo muito discreto mas quando se removia a pedra de mármore da lápide o que se via era uma escadaria de Pedra Lisa que dava entrada para uma série de túneis subterrâneos que culminavam em salas e salões repletos de Tesouros escondidos na época da colônia, haviam baús e mais baús de ouro e joias desviadas pelos ingleses da rota oficial de extração de Minas Gerais, Provavelmente o proprietário de tantas riquezas havia morrido e a situação da tumba gigantesca oculta embaixo da terra havia se tornado algo completamente desconhecido para todas as demais pessoas, mas foi ali em um buraco profundo abarrotado das joias mais belas e das obras de artes mais ricas que Dama da Noite fez sua morada.
Naquela noite ela estava contemplando um quadro, uma tela pintada a óleo que retratava uma jovem mulher com vestido armado sentada em um balanço, abaixo dela um homem deitado na relva contempla o balançar da Moça, mas a sua atenção foi desviada pelo som e ela rapidamente correu por um corredor extenso, um túnel que dava em outra sala iluminada apenas por velas, e nesta outra sala esparramadas no chão estavam Rosa dos ventos e Roda de Fogo caídas diante de um enorme espelho fixo a parede.

— Simone? Monique? O que está acontecendo? Por que entraram aqui dessa forma?
— Helena me ajude!— Rosa de Fogo gritou com as mãos sobre o abdômen.
— Ela está ferida, fomos atacados e um homem com uma espada Dourada, ele feriu ela! Era... Era magia, magia antiga naquela espada!— Rosa dos Ventos conseguiu sentar e segurou a cabeça de rosa de fogo em seu colo.

Dama da noite se ajoelhou diante delas e observou o furo feito pela lâmina na barriga daquela que gritava de medo, levou suas mãos na direção da ferida para tentar examinar o que era mas antes que tocasse o corpo ela foi arremessada para trás com tamanha violência que bateu contra a parede de pedra na catacumba e caiu no chão com os cabelos emaranhados cobrindo o rosto. Quando conseguiu se ajeitar e tirou os cabelos da fronte olhou pela sala e viu rosa dos ventos do lado oposto pois ela também havia sido arremessada para o outro lado estava na mesma situação caída no chão, por toda a sala flutuavam pequenas pétalas de rosa de cor a laranjada, mas Rosa de fogo não estava mais lá, havia apenas uma marca enegrecido no chão formando os contornos de seu corpo no exato local onde ela estava deitada segundos antes.

— O que aconteceu? Para onde ela foi?— perguntou Dama da Noite atordoada.

— Ela... ela explodiu...— disse Rosa dos Ventos com ar de terror.
— Explodiu? Mas o que aconteceu com ela?

Rosa dos ventos olhou nos olhos de Dama da Noite e disse a frase que tanto temia ter de dizer:
— Ela foi destruída.




📚 Glossário:

1. Matertuas: ferramentas ou amuletos usados por Feiticeiras para aumentar ou canalizar o nível de seus poderes, podem ser diversos materiais o maior exemplo na história foi a Colher de Pau utilizada por Sarana em roda das princesas.

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