RODA DAS PRINCESAS 2021 - CAPITULO 23
Felipe Caprini
RODA DAS PRINCESAS
Capítulo 23
"Hora de Intervir"
❤ - I
Cigana Sarah e Maria Quitéria não perderam tempo, assim que a reunião acabou elas saíram pelos fundos e caminharam pela serra indo para longe. Havia pressa ali.
Elas iam passando entre as árvores e arbustos, os feiches de luz da lua atravessam os galhos e desenhavam figuras no chão, Quitéria reparou em como os quadris de Sarah se moviam tal qual os de um gato, o lanço cravejado de moedas que trazia na cintura tilintava a cada passo. No meio do caminho elas começaram a conversar.
— Então Cigana, quem afinal é essa Bruxa? Me conte sobre ela.
— Bom, ela não é mais uma Bruxa, mas já foi.
— Isso não existe, uma serpente venenosa pode parar de produzir veneno? Não pode, bruxas sao sempre bruxas.
— Sim eu concordo, — Sarah suspirou — Mas ela rejeita a própria linhagem.
— Como assim?
— A mãe era uma feiticeira muito poderosa, mas... fez coisas ruins no passado e então ela acabou por morrer podre, doente, ela se putrefou ainda viva.
— Lei do retorno?
— Exato, foi castigo, lei do retorno mesmo sabe. Depois disso a filha não quis mais fazer magia, ela se tornou uma rezadeira apenas. O nome dela é Doralice, a família dela veio da Itália, mas isso faz muito tempo. Ela ainda é muito forte e tem muita informação, mas é um tanto desmotivada.
— Eu entendo. As vezes não é fácil arcar com a herança das nossas antepassadas.
❤ - II
Maria Padilha e Sete Saias foram juntas para a mata atrás da casa de Dama de Noite, elas ainda não tinham conversado sobre o ocorrido na ilha. Sete Saias estava com sua costumeira saia vermelha de sete barrados e um bustier da mesma cor com pequenos penduricalhos pendurados na barra. Elas duas desceram entre os grandes pinheiros ate chegar em um tronco tombado no chão e se sentaram nele.
Sete Saias começou:
— O que você sentiu quando aconteceu aquilo?
— Eu não sei, senti como se fosse eu mesma mas um pouco diferente, tinha emoções diferentes.
— Senti o mesmo, como se fosse eu mesma em uma situação nova. E senti coragem.
— Eu também, como se fosse invulnerável. Será que nos vamos conseguir nos fundir novamente?
— Não sei...
❤ - III
Maria Navalha estava sentada solitária em dentro de um circulo desenhado com sangue no piso. O assoalho de madeira absorveu bem o líquido vermelho, ela de cabeça baixa abraçava os próprios joelhos.
Menina estava próxima sentada em uma cadeira estofada, uma antiga cadeira de cónego, atrás dela Sete Encruzilhadas estava em pé de costas olhando para o lado de fora através de um grande vitral onde a imagem de Cristo crucificado havia sido desenhada. A bruxa Sarana também estava perto, no andar de cima ela moia sementes de erva-doce em um pequeno pilão de porcelana branca. O piso superior era o sótão da antiga igreja catolica que há muito estava abandonada, as vigas do telhado estavam podres e algumas telhas faltavam.
Menina bocejou deixando claro seu desânimo.
— Feiticeira, onde estão as criança? — ergueu a voz.
O som dos passos de Sarana ecoaram nos degraus da escada caracol de madeira lascada, desceu enquanto movia o pulso em círculos movendo o pilão e moendo o máximo que podia as sementes, sem tirar os olhos do pilão ela respondeu:
— Estão brincando no andar de baixo, no porão. Trouxe algumas bonecas para ela se distrair, comprei alguns bombons também para ele, ambos está lá se empanturrando.
— Bonecas? Você trata aquela garota como se fosse sua filha.
Sarana sorriu. Ela tinha uma longa cabeleira loira encaracolada que ia até abaixo da cintura, seus olhos verdes e sua pele branca sardenta a faziam ter um aspecto angelical. Usava óculos de aro redondo e uma túnica azul clara com estampas de nuvens, do pescoço pendia um colar de ouro com um enorme pingente em forma de sol.
— Não existe motivo para tratar mau ou causar medo na pequenina. Até o dia do sacrifício ela é melhor que ela esteja feliz, não quero uma criança chorona me aborrecendo, deixe ela com as bonecas, os doces e os livros de contos de fada, assim ela fica mais maleável. Também não me custa nada dar esses confortos a ela. Quanto mais eu mimar, mais ela confiará em mim.
— E o menino? — perguntou Sete Encruzilhadas.
Sarana ficou em silêncio um momento, pensativa, depois voltou a falar:
— Bizarro. Calado, arregalando aqueles olhos verdes para todo lado. Ele é um médium, vê as sombras de meus feitiços, também consegue ver vocês. Sinceramente não gosto nada nada dele.
— Mas está saudável? — Sete Encruzilhadas perguntou.
— Forte como um bezerro. Onde você arranjou aquela criança?
— Por ai... — Sete Encruzilhadas sorriu, se virou e acariciou levemente o ombro de Menina, saiu de trás da cadeira e caminhou até onde Sarana estava. Ele usava uma capa vermelha de tecido grosso com uma gola alta e botas de couro velho amarronzado. O cabelo era negro e curto, penteado para trás. Ele tamborilou os dedos sobre o corrimão da escada.
— Os dois não deram falta das outras crianças?
A feiticeira deu as costas e subiu a escada, foi até um pequeno fogareiro onde uma penelinha de ferro estava cheia de água fervendo e jogou dentro dela todo o conteúdo do pilão. Percebendo que o espírito a havia seguido, disse:
— Eu lhes falei que havia enviado as outras crianças de volta aos pais. A garota na verdade pareceu bem animada em ter os brinquedos e dos doces só para ela, a coitadinha crê que será adotada por mim.
— E o menino?
— Quando disse isso ele apenas me olhou d balançou a cabeça de um lado para o outro em reprovação, ele sabia que eu estava mentindo. Criança pavorosa.
— Entendo. Você está preparando ele para mim corretamente, não está?
Sarana sorriu e respondeu cochichando:
— Sim mas isso demora, o caso da Ellen é um e o seu é outro, mas... você não tem que se preocupar comigo, a verdade é que a sua atenção devia estar em fazer Ellen não suspeitar de nada. Agora, sobre o meu pagamento?
Sete Encruzilhadas mostrou um sorriso sedutor:
— Sim meu bem eu já disse, vou te dar quantos anos de vida puder, beleza e juventude. Aliás essas suas magias de juventude funcionam bem, você não parece ter a idade que tem.
Sarana suspirou fundo, apanhou um espelho de mão que estava em uma prateleira próxima a uma janelinha e com uma expressão de tristeza ela se olhou, tirou os óculos e examinou a testa para ver se as rugas estavam aparecendo, ela respondeu:
— Eu tenho oitenta e seis anos, a vida passou muito rápido. Os meus feitiços de juventude me deixam bela por fora mas eu estou morrendo por dentro, fraca, reumatica, infértil. Eu preciso viver mais, muito mais.
— Creio que posso conseguir mais trezentos anos de vida a você, é impressionante o que um fio de cabelo de Samyaza pode fazer, e eu tenho comigo sete deles.
— Mais trezentos anos, bela, vivaz e sem sentir cansaço... parece o paraíso... — Sarana pareceu divagar em pensamento.
Sorriu se olhando para o espelho. De repente a panela com a erva doce fez um barulho estranho e ela se virou para averiguar, apanhou sua colher de pau e enfiou na enfusão retirando a colher cheia de chá soltando vapor, ela assoprou e olhou avidamente para o líquido quente.
— O que foi? Viu alguma coisa? — Sete Encruzilhadas olhou para a colher curioso.
— Hum... sim, em um futuro breve outra bruxa aparecerá... E ela se oporá a mim. Que estranho, nunca tinha previsto isso antes.
— Só existe uma bruxa na região além de você, e ela está caindo aos pedaços.
Sarana ainda olhava a colher de pau:
— Doralice? Sem chance, ela é uma bundona, nunca teve coragem de me peitar, mas a bruxa que estou vendo aqui sim, e ela não virá sozinha. Por precaução vou reativar aquelas bestas, ainda tenho algumas para usar.
— Que bestas? Esta falando dos espíritos que usamos no início para reunir as moças?
— Sim, nao se faz macumba sem Kiumba.
— Mas eles não eram somente para assustar? Pensei que eram inofensivos.
— A maioria é, mas eu guardei sete que foram grandes assassinos durante a vida, agora que estão mortos e sem inteligência eles so sabem fazer malignidades, como cães raivosos.
❤ - IV
Quitéria e Sarah chegaram até a casa de Doralice, que era um casebre no meio de um terreno muito arborizadao. Doralice estava bem no meio do jardim vestida com uma camisa branca com estampa de bolinhas vermelhas. uma saia rosada e e por cima de tudo um avental lilás, na cabeça usava um chapelão de palha com abas largas para se proteger do sol que estava raiando, mas o mais gritante eram suas botas de jardineiro estampadas com desenhos florais. Doralice tinha em uma mão um grande regador de cobre com o qual aguava os pés de couve de sua horta e na outra uma pequena pá de afofar a terra. Assim que avistou Sarah ela gritou:
— Ciganinha! Pensei que tivesse se esquecido de mim! Venha! Venha!
Sarah foi até ela e lhe deu dois beijos, um de cada lado do rosto.
— Dona Doralice, eu também estava cheia de saudades!
Quitéria também se aproximou, mas quando deu o primeiro passo para dentro do jardim ela ouviu um estralo e do nada foi empurrada com muita violência para trás, deu tres passos recuando mas não caiu.
Doralice olhou de soslaio para Quitéria.
— Se você não conseguiu passar a barreira é sinal que é uma Bruxa, e esse tipo de gente não é bem vinda na minha casa. Vá embora espírito ruim!
Quitéria olhou para o chão e viu pedras de seixo enfileiradas, e ao reparar melhor ela percebeu que as pequenas pedras formavam um círculo em volta da casa e que havia uma espécie de véu muito fino que saia delas e envolvia todo o terreno.
— Você enterrou pedras rezadas em volta de casa inteira não é? Feitiço "Nimuro ki main" se eu não me engano.
Doralice pôs o regador e a pá no chão, desamarrou o avental e respondeu de má vontade:
— Não, eu não uso língua de anjo nas minhas magias, mas é um feitiço parecido que aprendi com minha tia, ninguém que seja ou que tenha sido feiticeiro pode passar pelo círculo de pedras.
Quitéria olhou para a casa que ficava no meio do terreno e viu presa em uma pequena luminária uma fita de tecido branco onde estava bordado em linha vermelha a inscrição "चरम संरक्षण" e então deduziu que a fonte do feitiço viesse dali.
— Charam sanrakshan, em sânscrito significa proteção extrema. Parabéns, você é muito ávida. Mas se nenhum feiticero pode passar, como aquela serpente ali entrou?
Doralice se virou e olhou para a varanda onde Kainana estava enrolado na viga de sustentação.
— Não vê que ele não é um feiticero? E também não é morto, a cobra é de verdade.
— Como de verdade? — Sarah inclinou o corpo para ver a serpente — Kainana não é um espírito?
— Não falem de mim como se eu não estivesse presente, isso é falta de educação. — disse Kainana com a voz rouca.
— Deixe Quitéria passar, temos um assunto sério para tratar contigo. — Sarah pediu a Doralice.
Doralice assentiu com a cabeça, tirou o chapéu e passou os dedos por entre os cabelos grisalhos, olhou para Quitéria e franziu a testa:
— Vou deixar você entrar, mas sem gracinhas, sou velha mas não sou tola.
Ela se proximou de onde Quitéria estava e cobriu uma das pedras com o pé direito dizendo as palavras "daravaaja khula", Quitéria viu o véu se abrir em uma pequena fenda e pôde passar.
— Obrigada.
— Disponha. Agora entrem dentro da casa, eu vou tomar meu café da manhã e enquanto isso vocês podem me contar o motivo da visita. — disse Doralice batendo as mãos pela roupa para tirar o pó.
Sarah e Quitéria entraram, passaram por Kainana que olhou para elas com desconfiança.
Quitéria entrou na sala e a primeira coisa que lhe chamou atenção foi uma foto em preto e branco de quatro mulheres vestidas de preto, a primeira com uma pá e um espanador nas mãos, a segunda com uma coruja no colo, a quarta acalentando a coruja e a quinta com uma vassoura de palha, a foto emana uma aura tão forte que ela nem percebeu o bebê gorducho dormindo em um moisés de palha no centro do cómodo.
Doralice entrou, ajeitou o mosquiteiro que cobria o moisés percebeu que Quitéria olhava fixamente para o retrato.
— Você conhece alguma delas?
— Sim, a primeira com a pá e o espanador nas mãos é Betina Salvaterra não é?
Doralice caminhou até a cozinha estava estendendo a toalha xadrez sobre a mesa da onde tomaria seu café.
— Sim, era minha mãe, tiramos a foto aqui mesmo no quintal de trás no dia em que nos mudamos para essa casa. Da esquerda pra direita está mamãe, eu, e as minhas primas Arlete e Sarana, e eu já sei que Sarana é o motivo da visita, muitas pessoas ja vieram atrás de mim por causa dela, me pedindo para...
— Para parar ela?
— Sim.
— Incrível ela ser sua parente. Doralice eu não sei as queixas que os outros lhe fizeram mas a que eu tenho a fazer é... compreensível. Eu conheci sua mãe e sei das coisas odiosas que ela fazia, porém Sarana superou em muito Betina.
— Impossível, minha era insuperável. — Doralice sorriu com certa tristeza.
— Sarana matou três crianças e está nos dias de usar mais algumas em um ritual.
O som de louça quebrando ecoou na casa, a velha ao ouvir a palavra "criança" ficou atónita e deixou a xícara de café cair de sua mão. Ela se abaixou para recolher os cacos e murmurou:
— Não... Meu Deus não... crianças... crianças não...
— Você nos ajudará parar essa monstruosidade? — Sarah perguntou.
Doralice se ergueu e atirou os cacos dentro da pia, lavou as mãos e secou na saia, foi ate a sala e se aproximou de Quitéria, se virou para olhar a foto das quatro bruxas que estava na parede. Com um gesto terno ela passou a mão sobre a imagem e disse:
— Parece que chegou a hora de intervir... finalmente.
❤ - V
PUFF!
A nuvem de fumaça negra explodiu, Tetemburu pousou elegantemente no chão pisando seus pezinhos de criança no piso de mármore branco, logo em seguida se ouviu o som de borracha batendo contra pedra, um características som de couro umido e pesado, o menino olhou para trás e viu a gigantesca Jibóia de couro verde escuro, Kainana havia vindo junto naquela jornada.
— Ô seu cobra grande tem certeza que aqui já tava rainha disse que fica o negócio? Eu nunca andei por essas bandas. — O menino falava arfando de cansaço.
Kainana farejou o ar colocando a língua para fora.
— Tenho certeza absoluta, aqui é Buenos Aires, Argentina.
— Argentinha...
— Argentina. — corrigiu Kainana — Houve uma época em que essa terra era habitada pelos grandes Guerreiros da tribo Mapuche, mas hoje em dia só tem por aqui esses descendentes de espanhóis fazendo essas construções pavorosas.
Tetemburu ergueu os olhos, estavam em uma praça central da cidade, ele e viu diante de si a magnífica igreja, era uma catedral católica de construção exuberante, imensa como um palácio, toda sua fachada talhada com imagens de Santos e cenas bíblicas em puro mármore carrara, a torre mais alta possuia um sino de ouro tão dourado que mesmo à noite era possível haver a sua cor.
— Misericórdia... outra igreja? A velha Quitéria morava numa igreja, a bruxa lá mora em uma igreja, agora a Rainha dos mandou vir em uma igreja, daqui a pouco essas doidas vão querer que nós acabamos por se converter em padres.
— Ué, elas não são podres? — Kainana tinha um traço de humor na voz — Todas que você citou são podres, é natural que as coisas podres fiquem dentro das igrejas.
— Só não entendi porque mandaram você vir comigo, não era melhor ter mandado vir uma pessoa viva de carne e osso? Porque eu sou espírito eu posso descer pela terra mas nunca cavar ela.
— Primeiramente ninguém me mandou, Doralice me pediu esse favor justamente por isso, você pode ser espírito meu pequenino mas eu sou que se chama de mestiço, meu pai era uma coisa que os humanos chamam de divindade, já minha mãe era uma mulher humano comum, dessa forma eu sou as duas coisas, sou o espírito como meu pai mas também sou de carne e osso como a minha mãe.
— E isso existe? — Tetemburu se espantou.
— Observe. — a serpente Kainana se enrolou em si mesma até que se tornou uma massa negra e disforme, essa massa foi crescendo como uma coluna então em instantes a Massa se mudou na forma de um homem de bata negra, um homem calvo de pele tão branca que parecia um cadáver, no topo de sua careca estava um minúsculo solidéu negro, a batata que usava se assemelhava muito aos padres a única coisa que destoava em seu figurino era seus pés descalços em contato com o piso.
— Mas é um caramulhão mesmo... — Tetemburu se admirou.
Kainana piscou para ele então avançou em passos largos rumo à igreja, abriu a grande porta principal e foi caminhando pela nave, quando chegou próximo do altar um senhor muito idoso, magro e encurvado, provavelmente o sacerdote daquele templo, pareceuu por detrás de uma pilastra e perguntou:
— Quién eres tú? Es usted uno de los seminaristas? No debería estar aquí a esta hora, es casi medianoche.
Kainana virou a cabeça na direção do padre, seus olhos amarelos de iris fendidas encararam o ancião de forma gélida.
— Padre Anselmo, nadie le dijo que el lugar de los ancianos está por debajo de dos metros de tierra?
O padre estremeceu ao ouvir aquela voz rouca e sibilante.
Tetemburo observou abismado o padre sorrir abobado, dar meia volta e caminhar ate uma estátua de São Miguel Arcanjo, o Anjo com a lança nas mãos. A lança era de aço e facilmente removível, o padre a removeu e segurando a haste com ambas as mãos abriu a boca e abocanhou a ponta da lança, em seguida de um pulo e se jogou para frente, a extremidade da lança bateu contra o piso e a ponta vazou a nuca no padre. O ancião ficou ali, um cadáver morto mas em pé, a lança de apoio não o deixava cair.
— Mas... porque você fez isso com o velhinho? — Tetemburu perguntou olhando para a poça de sangue que se formava sob o cadáver em pé.
— Você é preto, se lembra o que os senhores de escravos faziam com as menininhas de noite? Quando pegavam as escravas jovens e as levavam para o celeiro?
— Sim...
— Aquele velho fazia a mesma coisa, mas no caso dele com os coroinhas e jovens seminaristas.
Tetemburu olhou novamente para o cadaver e dessa vez havia ódio em seu olhar.
— Então ele mereceu morrer assim.
— Sim, mas vamos logo atrás de nosso objetivo. — Kainana sorriu e prosseguiu igreja a dentro.
❤ - VI
Doralice parecia muito ansiosa sentada em sua cadeira de balanço na varanda, balançava muito mais rápido que o normal empurrando o pé contra o chão para dar impulso constante, ao lado dela bebê Henrique brincava no chão engatinhando sobre uma manta de tricô estirado pelo piso, junto a ele uma grande bolsa de de lona então azul bebê estufada de tão cheia. Estava quase batendo a meia-noite quando o carro parou diante da casa, assim que viu as luzes dos faróis Doralice prontamente se levantou da cadeira, se abaixou e agarrou menino com uma agilidade força dignas de uma moça, pegou a bolsa com outro braço e pôs no ombro então atravessou todo o quintal, que era na verdade uma propriedade bem extensa, e foi até o portão do terreno, Quitéria a seguia pé ante pé curiosa para ver o que aquilo significava.
— Isaura! A minha amiga você não sabe como eu sou grata, nossa se não fosse você eu não sabia o que fazer agora. — Doralice falou em voz alta demonstrando alegria e gratidão na voz.
Em pé ao lado do carro, um gracioso modelo Ford B, estava uma mulher de aproximadamente vinte oito ou trinta anos de idade, usava um terninho púrpura justo ao corpo com uma saia longa até os pés mas com drapeados que permitissem o movimento livre das pernas, cabelo preso em um coque baixo adornado por uma lacinho preto e una expressão muito meiga no rosto, na época qualquer pessoa olharia identificaria aquilo como as vestes de uma criada. Isaura era a governanta da casa de Jorn, o pai adotivo da priminha de Doralice e filha de Sarana, a jovem Belladonna.
— Eu vim assim que receber o seu recado, Me desculpe se demorei.
— Imagine você veio na hora exata, posso pôr a mala no banco de trás? — Doralice olhou receosa para o carro e principalmente para o motorista, um homem turco com bigode fato o qual ela não simpatiza nadinha.
— Coloque no banco da frente ao lado do motorista por favor, isso vai deixar mais espaço para que eu acomode o bebê no banco de trás. — Isaura apanhou o bebê Henrique no colo, porém Quando sentiu o peso do garoto gemeu surpresa com o meia Tonelada que ele era. — meu Deus Doralice, não me diga que você ainda dá engrossante para menino? Ele já não está mais na idade de tomar leite ou com farinha.
— Não está mesmo, por isso eu costumo dar a ele polenta com carne seca desfiada ou às vezes um pouco de feijão com linguiça refogada no meio, ele gosta muito de tomar chá de erva doce de manhã porém na mamadeira tem que por pelo menos quatro colheres de açúcar.
— Colheres de sobremesa?
— Colheres de sopa, se não estiver doce o suficiente ele abre o berreiro.
— Meu Deus... bom Quem sou eu para regular o açúcar do menino, então já que ele come tudo isso não vai se incomodar se eu lhe servir um bolo de chocolate quando chegarmos lá. — Isaura teve que segurar o menino com força pois quando ele ouviu a palavra chocolate se remexeu como um siri em seu colo.
— Será que Jorn não vai se importar de você ficar com menino na casa? Eu sei que ele Belladonna viajaram para Portugal não é? Você estará sozinha lá?
— Sim, não se preocupe, Henrique tem um quarto só para ele na casa, você sabe que ele mora aqui com porque você faz muita questão mas na verdade sabe que Jorn sempre esteve disposto a adotar o menino.
— Eu sei, mas não quero que Henrique sirva de um pajem a Beladona, sei que Jorn quero adotar o menino para fazer companhia a sua adorada filhinha e não é isso que eu quero para esse menino gorducho de vovó... — Doralice apertou as bochechas de Henrique fazendo o menino rir.
— Doralice, está tudo bem? — Isaura a olhou com preocupação.
— Só porque eu lhe chamei para pegar um bebê no meio da noite? Isso a faz achar que tem algum problema? — Doralice sorriu tentando fazer graça.
— É algo de saúde? Sempre me preocupo com você aqui sozinha.
— Minha saúde está perfeita, a questão é outra.
Isaura olhou por cima do ombro de Doralice, ela também era uma médium.
— Tem um vulto preto atrás de você.
— Vulto? Ah Isaura, você precisar desenvolver melhor sua visão espiritual, aquilo... aquela é uma nova amiga.
— Antes de viajar, Belladonna andou falando dormindo, tendo pesadelos com a mãe.
— Ah... Belladonna é surpreendente... Mas ela não terá mais esses pesadelos, vou cortar o mal pela raiz.
Ela ficou olhando o carro partir, sentia que podia ser a última vez que via Henrique, sentia que na noite seguinte podia ser à noite de sua morte, mas os velhos não temem o fim, a vida os ensina a não ter medo de morrer.
Tranquilamente voltou para dentro da casa, Quitéria estava lá sentada no gasto sofá de couro esperando por ela.
— É melhor mesmo que o menino tenha segurança.
— Isaura minha amiga desde que ela era criança, confio nela inteiramente, tanto que eu indiquei para Jorn a contratar como governanta, para ela ajudar a criar Beladona. Com ela Henrique estará seguro.
— Que assim seja.
— sobre sua família, ainda não entendi muito bem o que aconteceu, essa sua casa tem muitos quartos vagos, sinal que a família já morou aqui, então o que aconteceu para você estar aqui sozinha hoje?
Doralice olhou para Quitéria depois olhou para foto na parede, suspirou sentou em uma poltrona de vime ali mesmo na sala.
— Fiz mal em perguntar? — perguntou Quitéria.
— Não, mal nenhum, é que faz tantos anos que eu não conto essa história que parei até de pensar nela, mas vou te contar sim para que você entenda quem é Sarana e quem sou eu.
— Sim.
— Viemos para o Brasil quando eu era muito nova, tinha oito ou nove anos, nem lembro a data pois já faz quase 100 anos não é? Bom, viemos nós quatro para cá, minha mãe, eu e as minhas primas Arlete e Sarana. Já ouviu falar do Triângulo das bruxas?
— Claro, — Quitéria fez uma expressão de superioridade mostrando que era tudo menos leiga — o triângulo divide as bruxas em três grupos, as bruxas brancas são as famosas curandeiras, daquelas que trabalham sempre com magia benéfica, as bruxas negras são as que fazem as magias perversas e trabalham sempre voltadas para o mal, já as bruxas vermelhas são aquelas ambíguas, que podem fazer tanto bem quanto mal.
— Pois é. Em qual ponta você se enquadra?
— Eu? Eu sou classificada como uma bruxa vermelha. — Quitéria se mostrou orgulhosa de si mesma.
— Maravilha. O sobrenome da minha família é Salvaterra, uma família muito famosa na Itália Entre as feiticeiras, a família onde existem as maiores Bruxas negras e vermelhas de todos os tempos naquela região. Minha mãe veio para o Brasil justamente por ter se desentendido com suas parentes, uma família cheia de maldade não tem como permanecer unida. Minha mãe sempre foi muito mais poderosa do que suas parentas porém quando elas se juntavam cresciam em número e poderiam sim superar minha mãe até com certa facilidade, então ela eu e minhas primas viemos para cá com a promessa de uma vida nova, porém minha mãe era a famosa Betina Salvaterra, uma bruxa Negra experiente em trabalhar com demônios e fazer toda aquela sandice miserável e assim tinha expectativa na continuidade disto. Quando eu completei os meus quatorze anos de idade chegou o momento de descobrir qual era a minha natureza, e esse foi um extremo desgosto para ela, eu fui declarada como uma bruxa branca. Nossa relação mudou da água para o vinho, quando eu era criança minha mãe me tratava como um bibelô, me enchia de mimos e presentes e me ensinava tudo o que podia, mas a partir do momento em que eu me tornei uma bruxa branca ela passou a me olhar com nojo.
— E o que aconteceu?
— Depois que eu dei esse desgosto a ela, mamãe se voltou para Sarana, Sarana assim era o orgulho da família, era muito similar a minha própria mãe pois também havia sido declarada como uma bruxa Negra. Eu passei a ser praticamente ignorada, morava que com elas mas elas duas não se dirigiam a mim, minha única companhia e consolo era minha prima Arlete, ela sendo uma bruxa vermelha. Arlete eu éramos as melhores amigas, onde uma ia a outra seguia, e mesmo depois que minha mãe parou de me ensinar, Arlete repassava para mim todos os ensinamentos que minha mãe passava para ela e Sarana, assim a minha educação não ficou defasada.
— Então realmente era uma boa amiga... — Quitéria sorriu lembrando por um momento da época que viveu junto a Nubia.
— A melhor de todas. Então os anos passaram e quando eu estava por volta dos vinte e cinco mamãe morreu.
— E como ela morreu?
— Sarana tem um ponto que minha mãe não tinha, ela é extremamente sedutora, você sabe que nenhuma bruxa ensina tudo o que sabe, mas sempre ensinamos o superficial e a aluna que se vire para deduzir o resto, os nossos maiores segredos guardamos apenas para nós mesmas, mas Aarana enredou minha mãe de uma forma tão tremenda que conseguiu que ela a ensinasse absolutamente tudo o que sabia, e minha mãe realmente a ensinou.
— Ah... que erro...
— Um baita erro. Quando Sarana se tornou uma bruxa adulta quis testar a si mesma, quis mostrar que era forte, e adivinha só a maneira que ela encontrou para fazer isso?
— Não é o que estou pensando, é?
Doralice apertou os lábios por um momento, depois continuou a história:
— Sarana convocou a minha mãe para um desafio, um duelo, eu e a Arlete fomos testemunhas. minha mãe era muito poderosa mas entrou naquilo como se fosse uma brincadeira, amava tanto Sarana que jamais imaginou que sua pupila estava falando sério. A Colher de Pau é uma herança ancestral da minha família, uma bruxa só pode herdar aquela Colher de Pau quando vence a portadora em um combate de feitiçaria. no meio do Duelo minha mãe percebeu que Sarana não estava brincando e sim tentando matá-la, mas ali era tarde demais, Sarana havia se preparado por dias para aquela luta enquanto minha mãe já estava velha e enferrujada e não havia se preparado pois não imaginava a seriedade da questão. Eu tentei intervir mas a Arlete me segurou e me forçou a fugir dali, nós tivemos muito medo pois não sabíamos que Sarana era capaz das coisas que vimos ela fazer, viemos para cá antes mesmo da luta acabar, nos fechamos dentro dessa casa com aquela barreira que impediu você de entrar, aquela barreira serve para qualquer bruxa Independente de sua força. Mais tarde escutamos Sarana gritando do outro lado dela pedindo passagem, ela estava lá segurando em suas mãos a Colher de Pau que havia pertencido a minha mãe e naquela altura minha mãe...
— Estava morta.
— Sobrou dela apenas um fémur chamuscado e nada mais.
— E vocês deixaram Sarana entrar? — Quitéria se empolgou emocionada com uma história de Bruxas como fazia tempo não ouvia uma.
— Não. Eu e Arlete nos fechamos aqui dentro e nenhum momento deixamos que ela entrasse. Sarana imaginou que nós estávamos apenas assustadas com os prodígios que havíamos visto ela fazer durante o duelo, pensou que após o susto passar nós iríamos abrir as portas para ela e tudo ficaria bem... mas nós estávamos muito assustadas. Sarana se voltou contra mim e começou a gritar todas as vezes que vinha até a barreira que eu havia envenenado Arlete contra ela, que eu com as minhas besteiras de bruxa Branca havia influenciando a Arlete a virar as costas contra ela mas isso não é verdade, Inclusive eu algumas vezes quis abrir a barreira para poder conversar com Sarana e talvez fazer com que ela voltasse ao juízo, mesmo ela tendo matado a minha mãe eu ainda pensava em dar de uma nova chance, mas Arlete não, talvez por ela ser uma bruxa vermelha conseguia reconhecer a maldade em um nível maior do que eu mesma conseguia, assim se tornou irredutível.
— E o que aconteceu depois disso?
— Sarana é muito esperta, quando arma uma vingança ela faz sempre usando aquele ditado "a vingança é um prato que se come frio", passaram-se anos sem que nenhuma de nós tivesse visto ou tido notícias dela, mas a nossa barreira ainda estava ativa, ela não podia entrar nesta casa. Nós evitamos ao máximo sair daqui, quando saíamos levávamos juntos de nós pedras de seixo para armar uma barreira a nosso entorno a qualquer momento mesmo se estivéssemos na rua, então Sarana pôs em pratica um plano cruel, de certa forma genial mas absolutamente cruel, ela queria me matar.
— Mas com a barreria... como ela poderia?
— Ela colocou um feitiço em uma lagarta, colocou essa lagarta bem próxima a nossa barreira, aquele feitiço lançado na lagarta era um feitiço dormente, uma magia tão pequena e insignificante que a barreira não identificou, então a lagarta atravessou as pedras entrou no nosso jardim e entrou na nossa casa. Durante muitos dias a lagarta se escondeu entre os vãos dos tijolos das paredes, e aquilo que era para ser uma lagarta de mariposa através da magia em contida nela foi se tornando uma outra coisa, após passar pela barreira a magia começou a agir de forma mais expressiva e o feitiço de Sarana fez a transfiguração, uma lagarta de mariposa se transformou em um escorpião.
— Genial... — Quitéria se admirou.
— Sim, horrível mas sem dúvida genial. Uma noite eu me levantei para usar o banheiro e Arlete decidiu deitar na minha cama para se esquentar, era uma noite fria de julho e nós duas dormíamos no mesmo quarto, sempre gostamos de ler livros antes de dormir. Naquele momento em que eu não estava dentro do quarto o escorpião agiu, subiu na minha cama e picou a pessoa deitada lá achando que era eu. O escorpião picou Arlete. Aquilo não era um inseto comum, não era um escorpião normal e o veneno dele agiu em cerca de poucos segundos, quando eu retornei do banheiro entrei no quarto e o que encontrei foi Arlete dormindo tranquilamente na cama, mas na verdade ela já estava morta. Me livrei do Escorpião e fui atrás de Sarana pois sabia que aquilo era fruto da magia dela, e você não sabe a expressão de horror que houve em seu rosto quando eu disse que aquele escorpião mandado para me matar havia tirado a vida de sua amada irmã. Sarana chegou a erguer a Colher de Pau para me atacar, mas acabou abaixando sem fazer nada.
— Remorso?
— Acho que sim, ela amava Arlete, verdadeiramente amava. Desde então eu só a vi três vezes, no dia em que pediu que eu levasse um bebê até um endereço. É, ela veio até aqui e deixou o bebê deitado na Terra como se não fosse nada, um bebe recém nascido enrolado em uma fraudinha de pano, em cima da criança o papel com o endereço e com alguns dizeres, no bilhete dizia "ela se parece demais com minha irmã, não tenho condições nem de olha-lá quanto mais de lhe dar alguma criação, por favor leve a meu amigo Jorn para que ele seja para ela o pai que sei que pode ser", e aquele bebê hoje é a minha priminha belladonna. A segunda vez que a vi foi quando trouxe Henrique para cá, quando colocou o bebê na beira da barreira não havia bilhete, apenas o depositou ali colocando em mim a responsabilidade de dar aquela criança um Destino.
— Que horror... Ela deu as duas crianças que pariu? Os filhos de seu próprio ventre?
— Sim ela deu, Belladonna eu sei que é muito bem criada e Henrique eu tentarei fazer o máximo que puder para dar-lhe o melhor. Bem, isso se eu sobreviver a noite de amanhã.
— Mas você não me disse qual foi a terceira vez que encontrou Sarana.
— Sim, faz cerca de seis meses, foi quando começaram a sumir crianças aqui na cidade, e eu não sei te dizer o porquê mas desconfiei dela, então fui atrás dela para perguntar se realmente estava fazendo o que achava que estava, mas ela negou tudo e disse que eu estava louca. Porém você e Sarah me trouxeram a notícia de que na verdade as minhas desconfianças resultavam em uma triste realidade. Agora Cabe a mim por um ponto final nisso.
❤ - VII
CRACK!
O estalo do assoalho da varanda se ouviu tão alto que a madeira parecia ter rachado.
Doralice foi ver o que era e se deparou com a serpente Kainana enrolada em um baú de metal polido sujo de poeira e terra.
— Ah Kainana, nem sei como agradecer...
— Mas eu sei, — disse a serpente com a voz sibilante — Quero torta de jabuticabas com conhaque.
— Pode deixar, farei uma torna só para você, agora deixe-me ver isso.
Doralice se abaixou e com certa dificuldade conseguiu abrir as duas travas do baú, por sorte não havia chave que o surpreendesse, assim que levantou a tampa apanhou dentro algo em formato cilíndrico, cumprido e embrulhado por um tecido de veludo vermelho, ela brilhou aquilo e segurou nas mãos com grande espanto um cetro dourado na forma de um bastão circundado por uma serpente de olhos purpurios pelas grandes ametistas incrustradas, aquilo sim era uma arma de Bruxa de Verdade, e agora não havia mais desculpas, agora era hora de ir para a guerra.
Envolvente como sempre! Tão vívido, que sinto estar presente. Parabéns Felipe Caprini! 👏👏
ResponderExcluirMDS que impecável!!!
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