RODA DAS PRINCESAS 2021 - CAPITULO 20

 Felipe Caprini
RODA DAS PRINCESAS 


Capítulo 20
"Tem Cheiro de Bruxa"







❤ - I 

Tranca Ruas era um homem bonito.

Devido à dificuldade da vida e o sofrimento da Morte ele mesmo esqueceu a beleza que tinha, quando as pessoas sofrem demais elas não se lembram de seu reflexo no espelho, elas pensam apenas na dor e na mágoa.

Ele estava deitado na grama, belas mãos de dedos quadrados, mãos masculinas de pele clara e pelos quase transparentes de tão aloirados cobrindo as parte das costas delas, ele tinha sua camisa negra com as mangas dobradas, suas mãos cobriram os olhos enquanto ele contava de um a dez. Era algo muito ingênuo aquilo, o menino morto que agora era um fantasma, o menino morto que era seu filho, morreu muito antes de ter criado malícia, assim ele sempre acreditava nas coisas que Tranca Ruas falava, acreditou por exemplo que se Tranca Ruas cobrisse os olhos com as mãos não poderia vê-lo enquanto se escondia na brincadeira do esconde-esconde, mas é claro que isso não era verdade, um espírito poderoso com Tranca Ruas jamais deixaria de enxergar mesmo com os olhos fechados, porém a brincadeira tinha de prosseguir então ele estava ali deitado com os olhos cobertos e dizendo em voz alta:

— 1... 2... 3... 4... 5... — ele parou de contar um instante ouvindo a risada do garoto que procurava entre as árvores daquela clareira uma boa o suficiente para servir de abrigo — 6... 7... 8... 8 e meio... 9... 9 e meio... 9 e três quartos... pronto ou não aqui vou eu!


Ele descobriu os olhos e ficou em pé, começou a olhar em volta para todas as árvores já sabendo que o pequeno Filipe estava escondido atrás do tronco de uma Sibipiruna que na época estava bem Florida com sua copa totalmente púrpura de flores abertas, era uma noite muito agradável aquela, tranca-ruas às vezes gostava de levar o filho para passear, sabia que ficar sempre aos cuidados da velha rezadeira Dona Miá era bom pois ela era uma senhora muito cuidadosa com os espíritos das crianças, mas nada substitui a companhia do pai, assim sempre que podia ele buscava Filipe eu levava para conhecer algo bonito nas redondezas.

— Mas que menino arteiro, onde será que ele está? Ah se eu o encontrar vou fazer tantas cócegas... — ele pronunciou em voz alta em resposta ouviu o riso animado do garoto.


Começou a olhar atrás de cada um dos troncos, foi rodeando as árvores que cercavam a clareira, quando se aproximava de cada uma ele gritava:

— Ah te achei!

Mas fazia isso só para fazer o garoto rir pois sabia que ele gostava do suspense. Após ter procurado atrás de cinco ou seis árvores ele finalmente se aproximou da que Filipe estava, com.velocidade extrema ele arremessou o braço por trás do tronco e agarrou o colarinho na camisa no menino e o puxou para junto de si, Filipe ria sem parar achando muita graça da brincadeira, Tranca Ruas o pegou no colo e começou a fazer cócegas em suas costelas, após o menino muito rir eles pararam e deitaram no chão gramado para descansar.

— Papá, por quê Toinha disse que o senhor é um homem mau? — perguntou o menino com a cabeça apoiada no peito do pai.

— Quem é Toinha?

— É uma menina, "esprito" feito eu que também fica na casa de vó  Miá junto com todos nós. Ela disse que de onde ela vem você tem fama de homem mau.


Tranca Ruas ficou um pouco em silêncio pensando no que ia dizer, era bem verdade que no nordeste ele havia depois de morto e já em forma de espírito ajudado algumas Bruxas perversas a fazer coisas ruins, havia contribuído com sua força espiritual para atitudes negativas e para mais magias perversas, a fama de mau era justificada. Respirou fundo então respondeu ao filho:

— Não existe coisa alguma no mundo que seja de um jeito só, todo mundo tem duas caras. As pessoas usam esse termo "duas caras" como se fosse algo extremamente negativo mas elas esquecem de que todas elas têm, para as pessoas que nós amamos nós sempre mostramos um lado bom mas para os outros nem sempre. Essa sua amiga Toinha com certeza ouviu falar de coisas ruins que o pai fez, mas isso não significa que o pai seja mal e sim que às vezes... comete erros.

— Eu não acho o senhor um homem mau eu acho o senhor muito... kakana. — Filipe pronunciou sem muita certeza da palavra.

— Kakana? Você quer dizer bacana?

— isso isso isso, ouvi um menino falar isso na rua esses dias, ele disse que o pai dele era bacana, eu acho que isso é uma coisa boa.

— É sim, é uma coisa boa. — Tranca Ruas permaneceu ali acariciando os cabelos do filho e ficou ali na clareira até o sol deu pequenos indícios que ia raiar.



❤ - II

Ali diante do portão do casarão caiado Rosa Caveira girou rapidamente o corpo e então sua feição mudou, sua aparência foi mudando, a pele extremamente pálida escurecendo até se tornar bronzeada e depois avermelhada como a dos indígenas, os seios sumindo, o cabelo alisando, a estatura aumentando... em poucos segundos ela havia se transformado em Rudá, o Deus Indígena do Amor, ela era agora um belo homem enorme de pele cor de canela e com diversos símbolos pintados pelo corpo com pigmentos negros e vermelhos.

Com a voz grossa como a dele ela falou:

— Sim agora minha aparência é idêntica a dele, a voz também. Mas seus trejeitos e suas memórias eu não possuo. Eu convivi com Rudá por um tempo muito curto, não sei muito dele.

— Entre lá, fale pouco, tente por a carta logo no Aquáriano. — Cigana a apressou — Agora, Rosa se não der certo nos vamos fugir. Você entendeu? Não deixe que o seu "outro eu" tome conta. Eu tenho visto você muito calma, muito calada e imagino que você esteja assim se forçando a segurar o seu lado selvagem. Não vá se exceder agora. Pegue a carta, ao encostar nele eu ativarei as suas forças, seja rapida.


Rosa Caveira assentiu com a cabeça. As moças se esconderam atrás do portão, Rosa abriu o portão e entrou lentamente. Ela pisava pé ante pé, tentava ser sorrateira como os índios são.

Padilha, Quitéria, Cigana e Dama da Noite ainda espiavam pelas frestas. Rosa Caveira se aproximava lentamente do Aquáriano.


Ganimedes estava deitado com as pernas abertas de um modo vulgar. Parecia bêbado ou ja um tanto alto. Ele olhou de relance e viu aquele homem enorme entrando, nisto esbravejou:

— Den thélo na diatarachtheí! (Eu não desejo ser perturbado!)


Rosa Caveira se lembrou da grande simpatia e paciência de Rudá e respondeu em grego, a língua do Aquariano:

— Zitó syngnómi... Aplá skéftika óti den tha ítan enochlitikó gia sas. (Eu peço desculpas. Apenas pensei que eu não seria estorvo para ti.)


O Aquáriano abriu um sorriso, e falando em um português com sutaque forte grego ele respondeu:

— Rudá! Não creio! Rudá é você mesmo?  


Rosa Caveira assentiu acenando com a cabeça.

O Aquáriano com certa dificuldade se levantou do divã cambaleando, correu até ela e a abraçou. Quando os corpo de Ganimedes encontrou o de Rosa ela de imediato sacou a carta que cigana lhe dera e encostou na bochecha do rapaz.

Cigana do lado de fora observava aquilo pelas frestas do portão estalou os dedos para que a carta fizesse efeito... porém o efeito não foi o esperado.


A carta não encostou no Aquáriano, um milésimo de milímetro antes dela encostar ele empurrou Rosa Caveira com enorme violência a fazendo cair sentada no chão.

Ele berrou a plenos pulmões:

— Você tem cheiro de mulher! VOCÊ NÃO É RUDÁ! VOCÊ É UMA MULHER!


Rosa Caveira caida no chão tentou argumentar:

— Você está bêbado, pare com essa besteira.

— Besteira? Pois bem, eu bebi sim um pouco mas não o suficiente para confundir o cheiro dos seres. Se você é Rudá me diga o nome que me chamava quando éramos íntimos?

— N-nome? — Rosa Caveira gaguejou.

— Sim, o nome que sussurrava no meu ouvido quando faziamos sexo.

— Eu... eu não lembro, não lembro desses detalhes.

— Mas se lembra de como faziamos sexo dentro das águas do rio Paraíba?

— Claro que eu lembro! — Rosa simulou revolta.

— Vagabunda... eu nunca fiz sexo com Rudá e principalmente eu nunca estive nas terras dele, nunca nem vi esse rio. Te peguei...



Rosa lentamente abandonou a forma de Rudá e assumiu então a sua aparência real.


Ganimedes arregalou os olhos e berrou novamente com a voz aguda:

— Além de Mulher você é horrível!

— Homem se controle, eu não sou de ter paciência, não me tente. Você não está interessado em saber quem eu sou?


Ganimedes olhou para Rosa de cima, seus olhos apertados com ódio:

— Eu sei quem você é.

— Sabe?

— Sim é óbvio, você é escória, tem cheiro de Bruxa, essas almas nojentas de mulheres tolas que brincaram de Magia mais do que deviam. Tenho nojo da sua raça... — eçe franziu os lábios e cuspiu no rosto de Rosa.


Cigana olhava pela fresta do portão.

— Pessoal, a coisa não vai ficar boa, Rosa vai mostrar a sua face real e isso não é bom.


Rosa ali caida no chão limpou o rosto sujo com a saliva do rapaz. Ela olhou bem para a mão suja com aquela gosma transparente.

Ali a sanidade dela se foi.

Freneticamente ela passou a gargalhar, se levantou do chão e então começou a se tornar quem de fato é.

Rosa Caveira é um Demônio.



❤ - III

Sete Saias e Maria Mulambo estavam em uma festa em um terreiro, as duas incorporadas em suas médiuns.

A festa estava agitada, ao som de palmas e tambores elas dançavam as cantigas entoadas pelos devotos rodopiando com suas saias de sete metros. A luz da lua era forte, o sereno caia pois ja passava da meia noite. O terreiro era pobre, chão de cimento queimado vermelho, as paredes sem reboco com tijolos a mostra. A iluminação era por conta da luz velas espalhadas pelo salão e pela luz da lua que invadia as janelas.

Sete Saias gostava muito de dançar, ela havia sido uma dançarina de cabaré quando viva, com um leque nas mãos ela dançava passos de flamenco, o povo aplaudia cada movimento seu.

Mulambo ao longe também dançava, mas de modo displicente, ela apenas rebolava os quadris sem se mexer demais pois não queria derrubar a bebida, o conhaque que sorvia de um caneco de alumínio.

Sete Saias dançava com muita alegria, girava na ponta dos pés e saltitava no compasso do tambor, mas de repente ficou tonta, ela teve uma sensação parecida de quando era viva e bebia demais, era como se estivesse bêbada.

Ela se desequilibrou e procurou uma parede para se apoiar sendo que não conseguia controlar o corpo da médium em que estava incorporada. Sentía como se fosse cair em um buraco, como se estivesse alucinando, e em um grito estrondoso ela saiu de dentro da mulher, desincorporou em um tranco que fez a coitada da medium cair no chão desmaiada como um saco de batatas.

Mulambo parou de beber e fixou os olhos na cena, viu a médium caída no chão e Sete Saias em pé bem ao lado dela com as duas mãos cobrindo o rosto e ofegante.

Mulambo se despediu dos presentes e após algumas cantigas de subida ela também deixou o corpo de seu cavalo. Agora que as duas estavam apenas em espírito, Mulambo foi até Sete Saias e perguntou:

— Soraya o que aconteceu? As pesssoas ficaram assustadas quando o seu cavalo gritou daquela forma, o que há?


Sete saias mantinha as mãos cobrindo o rosto.

— Tive uma visão, vi uma coisa horrível!

— Nossa como você é dramática... Agora esta tendo visões? O que você viu de tão ruim?


Sete Saias descobriu o rosto e olhou para o Mulambo com os olhos arregalados e a voz trêmula, ela disse:

— Padilha vai ser destruída, ela vai deixar de existir, eu vi ela sendo esmagada, ela virando poeira!

— Deus te ouça! — Mulambo deu uma gargalhada.

— Eu estou falando sério.

— Como assim ser destruída? Virando poeiram? Eu não compreendo, do que você esta falando? Ela já está morta, ele não pode morrer de novo.

— Não! Ela pode morrer sim! — Sete Saias gritou.

— Se acalme — Mucambo a tocou no ombro — Padilha é bem consciente de sua própria personalidade para deixar de existir, e o único que pode destruir um espírito é Deus, e você sabe que ele não pode fazer isso pelo acordo de livre arbítrio. Quem além de Deus pode destruir uma alma?


Sete Saias ergueu os braços e prendeu o seu longo cabelo em um coque frouxo na nuca. Ela pós as mãos nos ombros de Mulambo de modo que pudessem olhar uma nos olhos da outra:

— Não existe um Deus único, os Deuses são muitos. Pelo visto você não sabe muito sobre eles e sobre o livre arbítrio. Eu vi uma Deusa, uma Deusa indiana. Ela vai destruir Padilha. Nem todos os Deuses fizeram acordo de livre arbítrio. Eles são os únicos que podem destruir os espíritos.


Mulambo delicadamente tirou as mãos de Sete Saias de seus Ombros e falou:

— Certo dona moça, eu não sou a maior fã de Maria Padilha, haveria sim uma possibilidade de que eu fosse até ela para defende-la porque eu sou uma dessas que adora se meter na luta dos outros. Mas Padilha não está aqui, ela esta na ilha de Sham... aquela ilha dos diabos birutas. Agora eu te pergunto, o que vamos fazer?

— Hum... Vamos falar com a velha Catarina! Ela sempre sabe o que fazer!


Mulambo suspirou fundo em descontentamento:

— Nessa altura do campeonato vamos ter de pedir ajuda a uma preta velha... Onde vamos parar depois disso? Pedir ajuda e um Exú Mirim?

— Cavalo bom é o que cerca o boi na hora.

— O que quer dizer? — Mulambo apertou os olhos.

— Significa que não importa de onde a ajuda vem, toda a ajuda é bem vinda.



❤ - IV

Rosa Caveira estava ali com sua aparência de esqueleto completo, Ganímedes pasmo com a forma horrenda que ela havia tomado diante dele, apavorado ele ergueu a voz e gritou:

— Saia já da minha casa! DEMÔNIO! A casa de um dignatário do Zodíaco não é para coisas como você! Imunda!


Rosa Caveira foi lentamente dando passos para frente, cada movimento seu causava um som de estalos pois os ossos batiam uns contra os outros. Seu vestido branco caiu pelos braços de ossos secos e ela ficou um esqueleto completamente exposto com uma enorme cabeleira grisalha. O Aquáriano dava passos para trás com uma expressão de asco e pânico estampada no rosto, ela ergueu as mãos como se quisesse alcança-lo e ele berrou por não querer ser tocado pelas mãos ossudas dela.

Um som rouco saia de dentro do crânio como uma voz que resmunga, e em um salto ela pulou ficando próxima a ele, o braço se esticou e tocou o rosto do rapaz acariciando a sua face.

Ele paralizado pelo susto não se moveu.

A voz rouca que resmungava soltou uma curta frase:

— Você é tão bonito...

— E-eu se-se-sei, ago-ora v-vá embora co-coisa mandada! — ele tremia cheio de medo.

— Eu já fui tão linda quanto você... Mas perdi a minha beleza há muito tempo atrás. — a voz rouca se tornou maliciosa.

— É uma pe-pena, mas agora se retire!

— EU VOU TIRAR A SUA BELEZA ASSIM COMO TIRARAM A MINHA!


Ganímedes fez uma expressão de confusão e perguntou:

  - Vo-você vai fazer o quê?


Rosa Caveira deu um berro estridente:

  - EU QUERO OUVIR VOCÊ GRITAR! — a mão que ela tinha no rosto dele começou a se apertar de modo a segurar a carne bochecha direita com intensidade.

— Você está me machucando! Tire a mão de mim! Não me force a quebrar os seus ossos!


Rosa Caveira soltou um som de riso e dos buracos do crânio onde ficavam os olhos sairam labaredas de fogo. Ela apertou mais a bochecha até os ossos afundarem na carne, e empurrou o corpo dele dando um murro no peito com a outra mão, isso ARRANCOU A BOCHECHA do rosto rasgando carne e pele como se fossem feitos de pano, os dentes e parte do crânio ficaram aparentes.


Ele pós a mãos no rosto e sentiu o buraco, gritando de dor ele respondeu aquilo:

— O QUÊ VOCÊ FEZ?! VOCÊ ACHA MESMO QUE ISSO ME MACHUCA?! EU SOU UM SEMI DEUS! EU SOU IMORTAL! EU ME RECUPERO!

— Eu sei que a sua carne sempre se refaz, mas isso não significa que doa quando é ferida. Eu vou te esfolar, vou arrancar a sua pele e costurar uma roupa nova para mim com ela... e quando sua pele crescer eu vou arrancar ela de novo, e de novo... e de novo...

— Você... VOCÊ É DOENTE!

— Eu não nego. — Com agilidade ela passou a ponta afiada dos dedos de osso pela pele do braço dele abrindo quatro cortes profundos.

— PUTA! Pare com isso!

— Não... estou só começando...


Maria Quitéria, Maria Padilha, Cigana Sarah e Dama da Noite ainda estavam do lado de fora do portão olhando tudo.


O Aquáriano se afastou de Rosa e se concentrando em seus poderes a carne da bochecha se refez e os cortes no braço se fecharam, o rosto se recuperou totalmente ficando belo novamente. Ele foi até o final da sala e apanhou uma espada de prata que estava presa a um suporte na parede, apontou para o cranio de Rosa Caveira e disse as palavras:

— Lepída Harpe!


Uma luz saiu da ponta da espada e disparou me Rosa Caveira, mas ela desviou com extrema velocidade e correndo até o ele ela o atacou dando-lhe outro murro no peito.

O corpo dele bateu contra a parede e ele recuou o braço para trás e com toda a força deu outro murro no peito dele que desta vez fincou o punho ossudo dela e atravessou a caixa torácica.

O Aquáriano gritou de dor com a mão dela inteira dentro de seu peito.

— Eu disse que queria ouvir você gritar, que gentil de sua parte atender o meu pedido... — Ela riu soltando chamas da mandibula ossuda.


Ela se inclinou próximo ao rosto dele e mordeu a bochecha com força, puxando a o crânio para trás em um tranco ela arrancou novamente um pedaço do rosto do rapaz, ele berrou de dor, gritou tão alto que se ouviu ao longe.

Ela mastigou a carne que segurava na mandíbula até que os pedassos moidos caíssem por entre os valos do maxilar vazado.

— Eu estou só começando...


Ele falou com ódio enquanto sua carne se refazia e se recuperava de novo:

— Eu sou um Semideus, você não pode fazer isso comigo!

— Semideus? Ou semi homem? Se você é o que diz ser... Me mostre do que é capaz.


Maria Padilha espiava entre as frestas do portão de madeira toda a sessão de tortura que Rosa Caveira estava fazendo com Ganimedes, o Aquáriano. Ela cochichou uma pergunta para Maria Quitéria:

— Ele é mesmo um Semideus?

— Sim, ele é. — Quitéria cochichou de volta.

— Então ele deve ter fortes poderes, porque não reage? — Cigana cochichou.

— Ele é diferente, ele é um dignatário do zodíaco, fora da sua constelação o poder dele é diminuído, Aquário pega janeiro e fevereiro e nós estamos em dezembro, ele tem nesta época a força podada de modo drástico, deve estar com um centésimo da força que realmente tem, ainda mais que Shambala é uma ilha no fundo do mar, não tem céu nem estrelas aqui pra ele buscar poder. Porém esse centésimo pode causar algum estrago...

— Meu Deus... — Dama da Noite olhou para dentro da casa.


Rosa Caveira agarrou o cinturão que Ganímedes usava e com toda a força o atirou pra cima o arremessando alguns metros até o peito do rapaz bater nas vigas do teto causando um grande estrondo no telhado e fazendo muitas telhas sairem de posição e outras até caírem do lado de fora, Ganímedes quando caiu no chão desceu de mau jeito e a panturrilha da perna direita se dobrou quebrando a tíbia e a fíbula e expondo lascas de osso para fora da carne.

Ele berrou como louco de dor, mesmo que a perna tenha imediatamente começado a se restaurar, a dor era inevitável, era terrível.

Caído no chão agarrado a perna com ambas as mãos ele respirava ofegante. Com a voz embargada ele falou:

— O que quer de mim?

— Eu... eu nem cheguei a dizer meu propósito? — ela riu baixinho — Vim pela Ânfora de Segi.

— Puta maldita, é uma cadela morta do Brasil?

— Ah... eu achou que sou sim. — labaredas saíram dos buracos dos olhos da caveira.

—  Se é a ânfora que você veio buscar, leve ela embora! Me deixe em paz!

— A sua solicitude me encanta meu amado, mas... eu só vou embora quanto você estiver esfolado!


Ela se abaixou, agarrou o calcanhar da perna ferida e dando um tranco o puxou, o ergueu no ar o atirou contra uma parede, Ganímedes bateu o rosto em cheio do reboco  e caiu no chão com o nariz quebrado.

Rosa se enclinou, pendeu o corpo para trás até os cabelos grisalhos tocarem o chao, deu uma forte gargalhada, se indiretou e começou a caminhar na direção do Aquáriano de novo.


Ele suspirou fundo e murmurou:

— Den, den, den... eu não queria fazer isso mas você está me obrigando...

— Fazer o quê? O que vai fazer? — ela parou no meio da caminhada.

— Eu sou o detentor de um signo de vento... Eu sou o Aquáriano...

— Ah é? E?


Ganímedes abriu a boca o máximo que pôde, colocou o dedo indicador em baixo do queixo, do fundo de sua garganta saiu uma lufada de vento tão forte que em segundos se transformou em um redemoinho que girava sem parar. Os quadros presos as paredes despencavam e eram arrastados pelo vento, as taças que estavam sobre uma mesa do fundo cairam e quebraram, o esqueleto de Rosa Caveira tentou se agarrar em uma coluna mas foi arremessado para o portão onde do outro lado estavam as outras meninas, ela bateu nas chapas de madeira e caiu berrando pela força do impacto, e por um extremo azar a carta do Tarô de cigana veio trazida pelo vento e pousou entre os ossos da costela do esqueleto de Rosa a fazendo cair em sono profundo imediatamente.

O redemoinho ficou mais forte, o telhado da casa começou a estralar e as telhas de barro a voar para longe! O vento se intensificou ainda mais e o telhado inteiro foi empurrado para cima caindo mais de cem metros de distância e se espatifando contra estátuas de mármore de deuses gregos no jardim de uma mansão vizinha.

Ganímedes ainda deitado no chão fechou a boca e o vento cessou, parecia profundamente abatido, exaustão extrema por ter usado tanto poder.

Olhando para o esqueleto de Rosa ali desacordado ele murmurou:

— Serpente tola, eu não sou um passarinho para ser morto por ti...


As moças entraram na casa para socorrer Rosa Caveira, que à essa altura ja estava voltando a sua aparência normal de mulher.

O chão começou a tremer em estocadas, dentro da casa se ouvia vindo de fora os estrondos ritmados.

"BUM! BUM! BUM! BUM! BUM!"


Cigana removeu a carta de entre os ossos da amiga, Rosa despertou e estava tentando abrir o olho mais ainda estava desnorteada enquanto as moças a colocavam em pé, e nisto os estrondos ficavam mais fortes a casa segundo.

—  Oh essa não... — Sete Saias choramingou.

—  Oh essa sim, esses estrondos são os passos da dela se aproximando! — disse Quitéria já desesperada — O telhado da casa deve ter caído na praça e esse auê todo atraíu ela pra cá.

— A Deusa! Mas e agora? O que vamos fazer? Tem uma Deusa gigante vindo pra cá! — gritou Padilha.

—  Se preparem para fugir! Mirem na direção do barco e vamos fugir! — disse Quitéria.



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