RODA DAS PRINCESAS 2021 - CAPITULO 8

 Felipe Caprini
RODA DAS PRINCESAS 


Capítulo 8
"O Espírito do Camaleão"





❤ - I 

Rosa vermelha estava parada no salão, em pé no batente entre o salão e a cozinha ela observava os humanos.

Uma mulher gorducha passou com uma tina cheia de roupas sujas que iriam ser lavadas, no canto do salão um rapaz estava apertando as travas de um atabaque, sentada em uma das cadeiras uma garota estava costurando enfeites em uma saia de algodão  e no fundo se ouvia a risada de alguns senhores jogando dominó na área externa. Rosa Vermelha olhava para todos eles pausadamente e sua expressão revelava confusão. Figueira se aproximou curiosa com a expressão do seu rosto, Rosa Vermelha estava desgostosa.

— Oh Rainha das flores, o que te perturba? — Falou em tom de zombaria.

Rosa vermelha ergueu as sobrancelhas.

— Nós dizemos a eles que os ajudamos, mas você percebeu como agimos? Nos vivemos aqui ignorando que esse lugar foi construido por humanos vivos. Nós passamos por eles e vivemos a conversar e fazer nossas coisas como se eles não existissem. Mas eles estão aqui, e isso soa como desrespeito para mim.

— Não é desrespeito, é simplesmente a natureza.

— Natureza? Mas somos espíritos, o que temos com a natureza se não somos mais feitas de matéria?


Figueira tomou Rosa Vermelha pela mão.

— Vem comigo.

— Pra onde?

— Vamos para a praia.


Não era longe dali, pelo menos não para elas. Em questão de minutos estavam caminhando na faixa da areia diante do mar. 

Rosa Vermelha mirava o reflexo tremeluzente da lua na água. Ela estava linda em um vestido bordô com busto de camurça e saia em tecido liso e leve de modo que flutuava com o vento. Ostentava seu cabelo negro ondulado, entre os seios um broche de ouro em forma de um beija flor. 

Figueira se abaixou para observar a agua e com ternura na voz ela foi dizendo:

— Somos sim parte da natureza. A natureza é uma mãe muito cruel.

Rosa Vermelha se abaixou ao lado dela e disse:

— A natureza é a Deusa Mãe, a grande Gaya. Por que diz que ela é cruel?


Figueira apontou para um peixe na água.

— Com nossa visão apurada podemos ver tudo, inclusive aquele peixinho. Vamos usar ele como um exemplo, mas o que eu disser serve para todos os seres vivos. A natureza fez o peixe para a água, mas ele vive de oxigênio como nós. Se ele sair da água ele morre. Se ele receber pouco oxigênio ele morre. Se ele recebe muito oxigênio ele morre. Ele foi feito como predador de especies menores que ele, e ele serve de presa para espécies maiores. Tudo isso envolve dor. Se ele não comer ele sente dor, se ele comer demais ele sente dor e mesmo que ele se cuide... inevitavelmente ele morre. O ser humano é igual. As conquistas deles sempre são a custa de sofrimento de alguém. Para um sorrir outro tem chorar. A natureza é cruel e injusta pois ela fez isso, ela planejou tudo isso. Uma mulher para dar a luz sente tanta dor que as vezes algumas não aguentam e morrem, e isto segue os planos da natureza.

— Então você esta me dizendo que tudo que somos e tudo que ocorre no mundo é culpa da natureza? Como se ela fosse uma espécie de vilã?

— A natureza não sabe o que é culpa, ela só  conhece o desejo. E tudo que ocorre é desejo dela. O homem a mil anos começou a destruir o planeta, e a natureza não interveio e não intervirá, pois ela criou o homem e tudo o que vai dentro do coração deles, a mão do homem é a mão da natureza, e ele só faz o que ela quer que ele faça. Não existe o que ou quem barre ela. E nós somos obra dela também. Você sabe porque todas as outras almas desencarnam e vão para os mundos espírituais e nós ficamos aqui presas a terra?

— Porque nós praticamos magia quando éramos viva, eu sei.

— Os espíritos, os Deuses, a energias. Nada é sobrenatural, tudo é natural, tudo é natureza. Nós estamos aqui estagnadas porque aqueles que fazem magias afrontam a natureza e ela passa a ignora-los, mas até esss atitude dela é natural. A Roda das Princesas entre outras coisas nos ajudará a nós aproximar mais dela, da mãe, a grande Deusa Natureza. Mas eu entendo que você se sinta assim, afinal é a sua natureza.

— Como assim? 

— Rosa se lembra quando Padilha nos apresentou a biblioteca no porão? Os livros de Quitéria? 

— Me lembro sim de você fingindo surpresa com aquelas coisas, depois de anos descubrimos que você era de uma família de Bruxas. Você é uma falsa.

— Não nego isso, mas eu me referia a você. Se lembra que dentre nós você foi a que mais teve dificuldade em aprender magia?

— Sim.

— Mas não foi por falta de aptidão. Se lembra do motivo da sua dificuldade?

— Eu não acreditava. — Rosa Vermelha sorriu.

— Sim, não acreditava. Mas você agora é um espírito, já é hora de acreditar. A Roda das princesas que Dama da Noite fará sera algo sem dúvida Maravi...


E então Figueira continuou a falar sobre o benefício da Magia que iriam fazer, mas mente de Rosa Vermelha era veloz demais para não perceber que Figueira não estava jogando conversa fora, aquilo era uma doutrinação. De forma suave Figueira estava tentando convence-la a acreditar totalmente em Dama da Noite. Mas o tiro saiu pela culatra.



❤ - II

Quiteria estava sozinha, descalça na ponta dos pés, os braços abertos enquanto se equilibrava sobre uma cruz de pedra no topo da aboboda da catedral da cidade. 

Seu sexto sentido a avisou que estava sendo procurada por alguem, mas mesmo assim não se moveu ou tentou evitar. Quitéria estava calma, 

A plenos pulmões cantava uma de suas canções. 

Olhando para baixo do alto daquela cruz na Catedral, algo superior a vinte metros de altura, ela observou a moça que vinha caminhando pela praça de paralelepípedos em frente a igreja. O vestido negro dela era de um tecido pesado, ao longe foi possivel notar que possuía unhas compridas mas nenhuma jóia alem dos brincos que usava. Era simples mas muito bela. Era Rosa Caveira.

Rosa por sua vez caminhava pela praça olhando para cima enquanto ouvia a voz potente da mulher sobre a cruz ecoar:


"Ma il mio mistero è chiuso in meeee...

il nome mio nessun saprà! No! No! 

Sulla tua boooooocca lo diroooooò,

Quando la luce spleeeeeeenderà!"


Rosa ergueu a cabeça e mostrando que também possuía uma voz extraordinária cantou:


"Il nome suo nessun saprà…

E noi dovrem, ahimè, morir, moriiiir!

Il Dilegua, o noooooootte!

Tramontaaaaate, stelle!

Tramontaaaaate, stelle!

All'alba vincerooooooò!"


— Ah Rosário você nunca decepciona! Também é uma amante de Giacomo Puccini? — Quitéria gritou lá do alto.

— Turandot é coisa de Deus e todos sabem. — Rosa respondeu.

— Infelizmente nem todos sabem. 

— Minha Senhora, podes me dar um pouco de sua atenção?


Quitéria saltou do alto e flutuou como uma pluma até pousar diante da outra.

— O que deseja comigo moça Rosário?

— Agora eu me chamo Rosa Caveira. 

— Combina com seu rosto deformado. Porque você o mantém desta forma? Agora que estamos mortas podemos mudar nossa aparência como bem quisermos.

— Não é sobre meu rosto que vim falar, ele não é importante. 

— E o que é importante?

— Preciso de sua ajuda. Creio que todas nós estamos sendo levadas para uma armadilha.


De supetão Quitéria empurrou Rosa Caveira pelos ombros a afastando e olhando para o exato local onde ela estava bateu com a palma da mão no ar, e agarrou algo, assim ela o pegou. A invisibilidade se desfez, era uma criança, na verdade um espírito que se mostrava coml criança.

— Quem diabos é você?! E por que esta está seguindo ela?!


Rosa Caveira estava atônita, como era possível aquele espírito estar lhe seguindo e ela não ter se dado conta?

O menino aparentava ter cinco ou sete anos, era negro, cabelo curto, tinha os olhos vermelhos e usava uma lenço vermelho bordado amarrado a cintura, na mão um pequeno tridente de madeira de não mais que vinte centímetros. Era um tridente diferente, em uma ponta era um tridente quadrado e na outra era curvilíneo, feito de madeira de jaqueira. O menino se assustou e entortou o rosto em um esgar de choro.

— Olha dona moça, a senhora não me machuca não... eu não fiz nada de mal...


Quitéria ergueu a outra mão pronta para esbofetar o moleque.

— Quer um motivo pra chorar? Eu vou te dar um!

— Não! Não pelo amor de Deus não me bate! Eu só tava fazendo o que a mãezinha mandou fazer...

— Quem é sua mãe? E qual é o seu nome? — Rosa Caveira perguntou.

— Eu sou Tetembúru, o espírito do camaleão... Minha mãe me fez um feitiço no dia que eu nasci e com sete anos morri e por esse feitiço eu pro céu nunca subi. Mas a mãe que me mandou aqui não é a mãe que me pariu, mas é  mãe que cuida de mim. É a dona das jóias de ouro...

— Jóias de ouro? Espera ai, é da Dama da Noite que você está falando?

O menino ficou calado olhando para baixo.

— O que é você?  — Quitéria perguntou.

— Eu sou um menino, sou... sou Mirim!


Quitéria rapidamente colocou o pé no peito no menino e desprendendo uma enorme quantidade de energia ela o empurrou em uma velocidade tem como um tiro de canhão, só se ouviu o grito da criança sendo arremeçada para longe, um grito agudo que foi sumindo conforme ele tomava distância.

— Em nome de Deus! Quitéria, precisava disso? Era só uma criança! — Rosa Caveira se mostrou horrorizada.

— Criança? Provavelmente ele é mais velho que você. Esses pequeninos são sem limites, se mantenha longe deles. Bom, se quer falar comigo, me siga.


Quitéria entrou na ingreja seguida por Rosa Caveira. O vestido de Quitéria era decotado na parte de trás, ela prendeu o cabelo em um coque deixando as costas livres. Ela movimentava o corpo com elegância enquanto andava. A igreja era estilo barroco, imensa, o teto dourado em aplicações de folhas de ouro e na circunferência da aboboda afrescos, pinturas muito bem feitas retratando as muitas faces de Maria.

Quitéria indicou um banco para sentarem.

— A dona da saia de Ouro é Dama da Noite? Tem certeza.

— Com certeza é ela. — Rosa respondeu.

— Por que ela colocaria aquele diabinho atrás de você? Qual o intuito de querer te vigiar.

— Eu recentemente demonstrei desconfiança das palavras dela, das atitudes dela.


O altar da igreja era todo de ouro, havixam imagens de muitos santos e centralizada estava a imagem da padroeira da igreja, Nossa Senhora da Rosa Mistica, uma belíssima estátua com manto cor de pêssego e uma rosa sobre o peito. A igreja era iluminada por poucas velas. Rosa Caveira não parava de olhar o altar, a imagem de N.S. da Rosa Mistica prendia sua atenção.

— Gostou da Santa?

— Sim muito. Mas eu acho errado nos duas aqui dentro de uma igreja. É a casa de Deus.

— Esta não é a casa de Deus. É a casa de uma bruxa.

— Bruxa? Como assim? Isto é uma igreja não é?

— Sim e não. Veja bem, eu era uma bruxa, nasci na França mas vivi muito tempo na espanha. Na italia eu conheci outra bruxa, ela era mais poderosa do que eu, era velha. Ela que me ensinou a jogar cartas, isso a seculos atrás. — Ela apontou para a estátua — essa bruxa era ela. Nossa Senhora da Rosa Mistica era uma bruxa chamada Pierina Gilli, em Fontanelle, na Itália. Os milagres de Pierina eram tão grandes que a igreja para disfarçar atribuiu os feitos a Nossa Senhora, e ai surgiu o culto de Nossa Senhora da Rosa Mística. 

— Eu nem imaginava. 

— Depois que eu morri vocês usufruíram dos meus livros, mas o verdadeiro conhecimento estava no meu cérebro. 

— Toda mulher tem segredos. — Rosa concordou.

— O segredo é a alma do negócio.

— Sem dúvida você é uma mulher fascinante. Eu preciso de sua ajuda, preciso de conselhos. Isso que  Dama da Noite nos própos fazer, a tal Roda das Princesas, você disse que ja presenciou uma. O que é realmente?

— Primeiro me conte o que ela falou a respeito.

— Disse que é um feitiço que evitará nossa iminente transformação em kiumba.

— O quê? — Quitéria riu — Que baboseira...

— Então não é verdade?

— É claro que não, eu sei como funciona a Roda das Princesas, é um feitiço de absorção de poderes naturais. 

— Absorção? — Rosa estranhou.

— Sim, foi criado por uma bruxa chamada Erzsébet Báthory em meados de 1580, isso na Hungria. Erzsébet era necromante, fazia magia com sacrifícios humanos, acreditava que ao se banhar no sangue de moças virgens conseguiria obter juventude. 

— E ela conseguiu? 

— Externamente sim, mas internamente não. Erzsébet tinha mais de trezentos anos, por mais que os livros de história digam que morreu com cinquenta e quatro. Por fora era jovem, belíssima, mas por dentro os órgãos estavam quase que como pedras secas. Ela pediu ajuda a sete feiticeiras de sua confiança e montou um ritual, que segundo ela foi ensinado pelo próprio Satanás em pessoa, neste rito Erzsébet transferiu a alma de seu corpo para corpo de Anna, que era sua própria filha.

— Troca de corpos? — Rosa se espantou mais ainda.

— Sim, pelo que sei Erzsébet viveu dentro do corpo de Anna por mais duzentos anos ate que fez novembro uma Roda das Princesas. Até hoje ela repete o processo enganando jovens feiticeiras...

— As enganando?

— Sim, na Roda das Princesas as sete moças que são colocadas na roda como auxiliares do rito são usadas como fonte de energia, afinal o feitiço precisa de grande quantidade de energia para acontecer.

— E o que acontece com elas? Com as sete feiticeiras?

— Somem. Toda a energia delas é sugada. Nem mesmo a alma delas permanece. Elas são exauridas até sumirem. 

— Dama da Noite disse que precisa de Sete de Nós para fazer o feitiço dar certo.

— Pobres daquelas que entrarem neste roda... — Quitéria deu de ombros.

— Quitéria eu nem sei como te agradecer pelo esclarecimento, mas sem querer abusar eu preciso pedir outro favor.

— Peça.

— Vamos fingir que nós não sabemos de nada. 

 — Quer dar corda para Dama da Noite? Dar corda para ela se enforcar?

— Quero.

— Bom... eu nunca gostei dela mesmo... — Quitéria riu.



❤ - III

Na base do morro havia uma comunidade, algo que alguns já chamavam de favela. O fim da escravidão havia acontecido há pouquíssimo tempo, cerca de dezoito anos apenas, e a população escravizada não recebeu quaisquer benefícios da Coroa e agora também não recebia quaisquer benefícios da República, os negros foram todos empurrados para As margens da cidade e acabaram se estabelecendo nos morros. O nome veio da cidade de canudos na Bahia, palco daquela terrível guerra poucos anos antes, situava-se também entre morros sendo o principal dele não o da morro da Favela, pois foi assim que o povo passou a chamar todas as construções dos negros também, chamavam de favelados para equipará-los a derrotados, tal qual os de Canudos. 

Todas as construções eram de madeira, não se encontrava alvenaria em parte alguma, algumas parecia verdadeiras cabanas ou ocas indígenas de tão precárias, já outras eram bem organizadinhas, mas de alvenaria mesmo somente o casarão no topo do morro que havia sido comprado pela Mãe de Santo e que servia como terreiro de Dama da noite, já ali embaixo tijolo não existia, era tábua para tudo quanto é lado.

Mulambo caminhava a esmo entre as vielas escuras, quando viva ela sempre gostou de caminhar para desanuviar a mente. Mulambo estava totalmente perdido em seus pensamentos, não entendia por que havia acordado na morte, sabia muito bem de todas as explicações que todas haviam lhe dado sobre o Espírito das bruxas permanecer preso na terra, mas ainda assim não entendia o motivo, ela ainda era Maria Mulambo, durante toda a vida foi infeliz e agora na morte continuava sendo.


— É perigoso uma moça andar sozinha essa hora da noite.


Mulambo se virou e viu encostado em um dos barracos aquele homem tão belo, era Meia Noite, galante como sempre, vinha com sua camisa de seda com os botões abertos mostrando uma pele muito pálida no peito, a barba cerrada e os cabelos bagunçados propositalmente para aparecer ainda mais charmoso, calça de brim sapato de salto carrapeta, olhou para Mulambo com aqueles olhos apertados de quem quer seduzir e abriu um sorriso torto.

— Hoje em dia acredito que o perigo da noite sou eu Meia Noite, mas me diga, o que está fazendo aí parado?

— Eu? Eu estou esperando.

— Esperando o quê?

— As coisas acontecerem. Você sabe que eu nunca gostei de ser o pivô de nada, isso dá muito trabalho, eu fico apenas espreitando e quando vejo alguma brecha eu entro.

— Mas do que é que você está falando?

— Estou falando de vocês moças sempre arrumando confusão, tem coisas que nunca mudam não é? Mas me diga Mulambo por que essa cara tão triste?

— E que motivo eu tenho para ficar alegre? — ela continuou a caminhar e ele a seguiu — Estou aqui relegada ao nada.

— Pois eu discordo veementemente, você nunca foi delegada ao nada, na verdade acho que isso sempre foi o seu grande problema, se em alguns momentos você tivesse ficado de canto teria evitado muito aborrecimento mas sempre está metida nas coisas, sempre tem confusão na sua volta.

— Sabe o que me pesa mais nessa vida?

— O que te assola meu amor?

— Remorso...


Meia Noite se aproximou e abraçou pelos ombros.

— Remorso de que? Não fique remoendo coisas que ja não tem peso.

—  Pra mim tem peso sim. Um peso gigante. 

— Bom, talvez o que te falte um desabafo para aliviar o peito.

— Sim, talvez conversar ajude. Vou te contar o que eu fiz...



❤ - IV

Rosa Vermelha se preocupava muito com ela, Ellen era somente uma Menina.

Era dessa forma que todos a chamavam... "Menina do Cabaré". Havia falecido muito nova, tinha entre quinze e dezesseis anos, ninguém sabe ao certo, mas já era prostituta com essa idade e havia começado muito antes. Menina foi alguém que sofreu muito na vida que teve uma morte repentina e trágica.


Uma noite longa aquela, não era dia de festa mas sim noite de atendimento. Ela estava incorporada em um rapaz, seu "cavalo" era um moço jovem.

Pela extensa fila de pessoas que havia na porta da casa de Dama da Noite iria virar a madrugada toda atendendo. As velas queimaram até o fim e novas foram acesas e o povo não parava de vir.

Quase de manhã ela libertou o rapaz e entao saiu de dentro dele.

Rosa Vermelha veio ao seu encontro ainda quando Menina estava no meio do salão, tocou as costas dela, a baixa estatura a fazia graciosa em seu vestido rosa perolado.

— Esta Cansada, meu bem?

— Cansada não mas terrivelmente entediada... esse povo todo que eu atendi tem não tem onde cair morto, mas nenhum deles me pediu ajuda na vida financeira, todos eles e principalmente as mulheres me falaram sobre vida amorosa. Será que eles não sabem que amor não é tudo na vida?

— Ora meu bem, tenha paciência... As pessoas hoje em dia são fúteis.


Menina olhou animada para o faixo de luz amarelada o que entrava pela porta aberta e refletiaa no chão de cimento vermelho, a luz do sol entrando.

— Está por amanhecer.

— E o que vai fazer hoje?

— Na verdade eu devia passar o dia fazendo os feitiços para trazer amor a esse povo todo... mas eles que se lasquem, hoje eu quero ver vovó! Você vem comigo Rosa?

— Claro, vamos sim.


Menina era linda como uma boneca de porcelana, seu espartilho salmão e sua saia de babados davam ar de princesa junto ao cabelo preso em coque com uma rosa branca enfeitando. Usava brincos pequenos em formato de meia lua.

Elas foram para os fundos do terreiro e entraram na mata antes que o sol as tocasse, Menina cantarolava uma antiga canção. Elas desceram pelo caminho atrás da casa onde seguiram por uma trilha na mata proxima a um riacho onde haviam corujas de olhos prateados se recolhendo para dormir nos ocos das arvoes. O sol surgia devagarinho e o céu já trazia tons alaranjados.

Passaram por um pequeno buraco cavado na parede de terra do morro, e ali dentro havia uma estátua do sagrado coração de Jesus Cristo com algumas velas acesas, prosseguiram mais adiante e entraram em uma caverna musgulenta e profunda que ficava oculta atrás de uma roseira. Ao entrarem logo se ouviu uma voz rouca dizendo:

— Ora essa, quem e morto sempre aparece...


Vovó Catarina veio caminhando lentamente com sua Bengala e abraçou Menina.

— Vovó! Eu vim te ver! 

— Que bom meu anjinho, já estava ficando com saudades.

— Como tem passado Dona Catarina? — Rosa Vermelha a cumprimentou.

— Passo os dias com a paz de Ave Maria. — a anciã  respondeu com seu tom costumeiramente amável.

  

As três sentaram sobre grandes pedras dispostas ali dentro.

— Vovó, vim te contar uma novidade que a senhora não vai te acreditar! — disse Menina em tom de suspense.

— O que foi? O que aconteceu de tão especial?

— Maria Quitéria acordou. E a senhora acreditando ou não ela está por aqui! Eu já a vi duas vezes, inclusive ontem ela esteve no terreiro.

— Então já tem as três Marias. — vovó Catarina murmurou para si mesmo.

— Três Marias? Que a senhora quis dizer com isso? — Rosa Vermelha perguntou confusa.

— É vovó o que a senhora quis dizer com isso?


Catarina olhou para Menina e depois para Rosa Vermelha, como quem percebe que falou demais e então sorriu sem graça.

— Ah não, bobagem, rezei tantas Ave Marias hoje que quando vocês falaram o nome Maria eu acabei pensando que ainda faltavam três ave Marias para rezar.

— Aí vovó a senhora é tão religiosa, acho muito bonito sua devoção — disse menina sorrindo.

— Também acho muito bonito. — falou rosa vermelha, porém seu tom de voz disfarçou bem a desconfiança — Mas me diga Dona Catarina, Por que a senhora permanece aqui? Esse local eu sei que ainda é frequentado por um outro descendente de escravizados que vem fazer suas preces, mas eu sei que os outros espíritos como a senhora, esses quê se dizem "pretos velhos" habitam outros lugares e não ficam isolados, eles ficam sempre juntos.


Catarina ergueu as sobrancelhas e abriu a boca pronta para falar algo porém Menina tomou a frente.

— A vovó me contou uma vez sobre isso, disse que devido a uma promessa à Nossa Senhora fará penitência isolada aqui durante alguns anos, não era isso vovó?

— Sim claro, É isso mesmo, penitência. — Catarina olhou para Menina e sorriu.



❤ - V

O sol raiou, Mulambo e Meia Noite entraram em bar que só abrir as portas à noite e por isso passariam o dia ali tranquilamente sem ser perturbados já que o ambiente estava completamente vazio.

Mulambo sentou em uma das cadeiras mas Meia Noite sorrindo para ela com sua já conhecida expressão de homem safado subiu sobre a mesa de sinuca deitando ali, olhou para ela e deu três tampinhas ao lado a convidando para se juntar a ele.

Mulambo subiu sobre a mesa e deitou junto à Meia Noite usando o braço musculoso dele como travesseiro, ficaram assim praticamente colados.

— agora Diga lá, o que é que está te atormentando? Do que é que tem tanto remorso?


Mulambo colocou a mão aberta sobre a mão de Meia noite e comparou seus pequenos dedos negros com os longos dedos pálidos dele, Meia noite era realmente um homem grande.

— Porque você gosta de mim? — Ela perguntou.

— Como assim? — Ele afagou os cabelos dela.

  

Mulambo se virou para olhar nos olhos dele.

— Eu não sou bonita e não sou refinada, eu nunca fui do seu nível, mas ainda assim você sempre correu atrás de mim.


Meia Noite a beijou nos lábios.

— Você é linda, eu já vi muitas mulheres belas mas com certeza você é uma das mais lindas entre todas.

— Eu me acho feia.

— Não acha não, você só está dizendo isso porque está triste. Eu te conheço Mulambo, quando você está triste tira do fundo do baú a velha história sobre ser a irmã negra e blá blá blá... Eu sei que você se diz feia só porque não é branca como Padilha. E eu sei que você não gostava de se olhar no espelho quando estava triste porque entre vocês duas é você que se parece com sua mãe.

— Eu nunca gostei da minha cor. Não é que tenha algum tipo de rejeição a ser mestiça, ou como classificavam no mercado de escravos "uma mulata", é que quando olho pra minha pele eu me lembro da forma que os negros eram tratados naquela época. Eu os via morrer todos os dias. E eu sabia que aqueles negros eram meus irmãos, eram meu povo e eu não podia fazer nada. Eu era livre e eles não. Eu tive chances na vida, mas todos eles acabaram como a minha mãe.

— O chicote não estava na sua mão, não se culpe. E a sua cor é perfeita, você não tem um pouco de branca e muito de negra, você agrega duas belezas. 

— Pois é, sorte da minha mãe ter sido forçada a fazer sexo com o patrão, sortuda demais..

— Credo que deprê, você sabe que remoer esses assuntos não te faz bem. E eu também sei que você usando o estupro da mamãe como pretexto para fugir do assunto. Não era sobre isso que você ia desabafar, era?

— Não, não era.

— Qual é o seu grande remorso? Ele tem nome?


Mulambo suspirou.

— Filipi, ele se chamava Filipi.

— Foi seu amante?

— Filipi era um menino de três anos de idade, um menino que eu nunca conheci. Um menino que eu matei.

— Mas... como matou se não conhecia?

— Não o matei com as minhas mãos, mas ele morreu por minha causa. Se eu tenho um remorso é esse. Filipi morreu pelo meu egoísmo. Se eu pudesse eu daria minha existência em troca de devolver a vida a ele. Filipi era um anjinho. Ele era meu sobrinho.

— Sobrinho? Mas... não... —Meia Noite se ergueu até ficar sentado — Você só tem uma irmã, então esse menino era filho de Padilha?


Mulambo ainda deitada tocou o feltro verde da mesa de bilhar com as pontas dos dedos e fechou os olhos.

— Meia Noite eu queria tanto dormir...

— Desculpe meu amor... Mas os Mortos não dormem. Não descansam jamais...



❤ - VI

Do mesmo modo que o sol raiou ele se pôs, anoiteceu, e com o breu da noite ela voltou para a favela. Era Rosa Caveira quem caminhando a passos largos e que já estava sendo aguardada por Dama da Noite.

Rosa havia reformado a própria imagem, estava realmente deslumbrante, o cabelo solto e ia até a cintura, o vestido era tomara-que-caia preto de seda reluzente e sem estampas, a barra do vestido quase arrastava no chão pois era trabalhada em rendas brancas que davam ar de leveza. Seus sapatos de salto alto eram Sándalias de tiras que iam até o tornozelo e o salto era grosso e quadrado. Ela não usava jóias essa além de um anel de caveira no dedo médio da mão direita. Parte do cabelo cobria o lado da face onde era crânio exposto.

Ela subiu a escadaria e entrou na casa de Dama da Noite veloz como um raio.


Na sala da casa Dama da Noite assim que a viu gritou:

— Mas é muita ousadia! Não quero mais você aqui! Vá embora!


Rosa Caveira gritou mais alto:

—  Cale sua boca! Eu vou ficar na sua sombra até descubrir o que voce está tramando de verdade, sua cadela!


Sete saias, Menina, Rosa Vermelha, Cigana e Figueira entraram na sala naquele momento e se espantaram com a discussão. Dama da Noite gritou novamente:

— Ouçam todas! Rosa Caveira nos traiu! Ela agora se aliou a Quitéria!

— E você só sabe que eu fui falar com Quitéria porque colocou um maldito anão morto para me vigiar.

— E a minha intuição estava certa, você é uma traidora!

—  Não sou casada com você pra que me acuse de traição, e não me bandiei para o lado de ninguém. Eu nunca estive do seu lado. Eu nunca fui sua aliada. E eu vou impedir você de fazer qualquer maldade, já que e eu sei que é isso que pretende.

— Nossa mas ela e Santa! E um martir! Saia daqui seu cadáver podre! Não tente envenenar minhas amigas com suas mentiras !

— Sabe, eu pedi para Quitéria que não comentasse nada sobre o que ela conhece a respeito de tudo que você está fazendo, pedi isso porque queria conversar com você antes, mas se a sua reação é essa não tem conversa, eu vim para te desmascarar sua puta!


Rosa Caveira na maior parte do tempo é calma e até mesmo apática, porém a sua personalidade é absurdamente instável, é como se houvesse um mecanismo dentro de si que não regula bem as intensidades, se ela é extremamente calma na maior parte do tempo, nos momentos de nervosismo ela se transforma em um demônio.

Cheia de fúria avançaou contra Dama da Noite, e a empurrou com toda força a fazendo cair contra o chão.

— Você me ataca na minha própria casa! Vá embora! — Dama da Noite se erguia também muito nervosa.


Cigana tomou Rosa Caveira pela mão.

— Rosa respire fundo e se acalme, não sei o que está acontecendo mas ande, vamos embora, eu vou com você.

— Sarah não vá com ela, essa mulher quer o nosso mal! — gritou Dama da Noite.

— Não Helena, minhas cartas não mentem, e elas me dizem que tem algo de muito errado com você, com essa casa, com tudo. Eu apenas esperava o momento certo para ver isso acontecer.

—  Sua máscara vai cair Helena! — Rosa Caveira gritou, e então deu as costas pronta para sair dali.

Mas assim que Rosa Caveira virou as costas, Dama da Noite girou no ar e sua saia dourada abriu esvoaçando como uma rosa aberta em pétalas, ela bateu a palma da mão nas costas de Rosa Caveira e com todo o poder que tinha empurrou o corpo da inimiga em uma pancada de força espiritual que deveria arremessado o corpo de Rosa Caveira para longe, mas Cigana se pôs na frente e segurou Rosa Caveira pelo braço antes que ela fosse arremessada porta a fora.


— Mas o que é que está havendo afinal? — Menina disse assustada.


O Ódio tomou conta de Rosa Caveira, seu Rosto que era meio crânio se tornou um crânio completo e nos olhos dessa terrível caveira surgiu fogo! O vestido negro se tornou Vermelho e seu cabelo mudou da raiz as pontas se tornando totalmente grisalho. Ela havia se tornado um demônio em fúria.

— oq-oque é Isso? — Dama da Noite gaguejou amedrontada.

 — Covarde! Você me atacou pelas costas! — a voz de Rosa Caveira sou rouca como se fosse o vento soprando por entre os ossos.


Todas as moças da sala deram um passo pra trás, ninguém jamais havia visto Rosa Caveira se tornar aquilo. Ela avançou contra Dama da Noite e lhe segurou pelo pescoço com sua mão ossuda de esqueleto e em seguida desferiu um tapa forte no rosto dela e então outros tapas com as costas das mãos e por mais que Dama da Noite tentasse reagir ela não podia com aquela mulher demoníaca.

Dama da Noite então desferiu um golpe no rosto da oponente mas Rosa Caveira mordeu com força o braço que tentou lhe atacar fazendo Dama da Noite soltar um grito desesperado ao ver o braço sendo moído pela mandíbula assutadora daquele crânio.

Se vendo totalmente acuada ela gritou:

— Tetemburo me tire daqui!


"PUFF" uma nuvem de fumaça explodiu espontaneamente logo acima das duas e dela surgiu um minúsculo menino que pulou nas costas de Dama da Noite a abraçando pela cintura disse alguma palavra de encanto e o corpo dela explodiu em uma nuvem de pó brilhante dourado desaparecendo dali.

— Ela Fugiu! Logo ela que se diz a mais forte de nós! Fugiu! — Sete Saias se admirou.







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  1. Anciosa para os próximos episódios. Eh tão maravilhosa eh encantadora suas fábulas, seus contos suas histórias.

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