RODA DAS PRINCESAS 2021 - CAPITULO 2

Felipe Caprini
RODA DAS PRINCESAS 


Capítulo 2
"A Velha benzedeira"




❤ - I

Quando o coração para de bater acontece o fim. Não vim da vida em si... mas o fim dos sonhos. 

A velha árvore estava cada vez maior, seu tronco era forte como uma coluna de Aço.  

As raízes da arvore serviram de tumba a uma mulher, não uma tumba onde se depositava um corpo real, do corpo não sobrara nada para ser enterrado. Mas havia algo enterrado ali, um velho baú de metal cujo o conteúdo era uma peça de roupa, uma saia de corte espanhol com sete barrados vermelhos e negros.

O baú estava enterrado ali a mais de cento e cinquenta anos, mas ela, o espírito dela continuava em pé sobre a cova. Muitos iam até o velho eucalipto, fazer pedidos e oferendas, as pessoas do lugar sabiam que ali foi enterrado um memorial para uma feiticeira... Sete Saias era o seu nome. Ninguém mais se lembrava que ela na verdade se chamava Soraya, agora ela era conhecida somente por Sete Saias.

Ela estava em pé encostada no tronco da arvore, seus longos cabelos negros caindo sobre os ombros, os olhos contornados de negro se mantinham fechados.


— Você não se cansa de ficar ai parada envelhecendo?

Sete Saias abriu os olhos, as íris verdes como esmeraldas brilharam enquanto ela focalizava a figura da mulher que lhe chamara.

A outra então se deixou ser vista, seu cabelo ondulado era loiro platinado, com os olhos azuis acinzentado, uma saia cheia de babados e franjas coloridas. Seu nome era Sarah, havia morrido carbonizada quando uma legião Católica ateou fogo a um acampamento cigano. Desde então ela era cultuada pelas velhas benzedeiras que jogavam o jogo de cartas, e era Cigana que revelava os miterios do Tarô.

— Os mortos não envelhecem Cigana. — Sete Saias respondeu lentamente.

— Diga isso a velha Conga! — Sarah riu.

— Quem está com você? 


Outra voz áspera se ouviu na mata:

— Meus ouvidos receberam noticias dos seus amigos, eles estão se reunindo, Sete Saias...

Ao olhar para cima elas viram no galho mais alto do eucalipto a jiboia negra, uma serpente aterrorizante. Era a manifestação de um espírito muito antigo, chamado Kainana.

— Meus amigos? Do que está falando Kainana? 

— Ouvi um boato...

— Fofoqueiro... — Sarah cochichou.


O galho estralou sob o peso da cobra.

— Quantos são e onde estão? — Sete Saias perguntou.

— São meia duzia, estão todos em uma casa de madeira, um Barraco. No morro da mata fechada, la pras bandas da praia. Seus nomes... Sete Encruzilhadas, Meia noite, Maria Padilha, Maria Mulambo, Dama da Noite e Figueira. 

— Nem todos esses nomes eu conheço. — Sete Saias estranhou.

— Talvez tenha se esquecido de algum, esquecer é normal na morte. — Cigana comentou.

— Os bichos ruins estao tramando contra eles... — Kaiana falou.

— Kiumba? Mas eles nunca nos afetaram. Porque estão atrás deles?


A serpente Kainana sibilou com a língua no ar.

— É o sangue. Alguns de seus amigos estão usando Sangue pra se fortalecer... isso atrai os espiritos malignos.

— Sangue? Eu ja havia sentido uma força muito grande vindo daquelas bandas.

— Eu também. — Cigana falou.

—  Pois sim, mexer com sacrifício de animais dá nisso, deixa as almas fortes.

— Me diga Kainana, como eu faço pra ficar forte também? — Sete Saias perguntou.


Kainana deu uma pausa como quem esta buscando na memória as informações.

— Ele não sabe de nada, era só lorota. — Sarah ri.

— Eu sei sim, so estava puxando na memória. Uma panela de ferro, com terra de cemitério dentro. Um ferro contorcido em forma de cruz torta. Um anel de ouro, vinte e uma moedas velhas, vinte e uma moedas novas, vinte e uma moedas africanas, casca da Madeira da arvore Jurema, uma faca pontiaguda, uma pedra retirada do fundo do rio, um cristal, areia da praia. Um tridente de ferro e por fim sangue de um bicho de penas e um bicho de quatro patas. O espírito que se puser de pé sobre esse feitiço estará assentado na terra, e terá forças inimagináveis. Isso foi algo desenvolvido na Africa antiga pelos Orixás.

— Orixás são os deuses dos escravos, não são? — Sete Saias pergunta.

— Escravos? Não existem mais escravos Sete Saias, já faz quase vinte anos que a princesa proibiu a escravidão. — disse Kainana.

— Vinte anos? Eu não tenho saído muito daqui, na verdade para mim o tempo não tem passado.

— Vinte anos é forma de dizer, faz dezenove anos que a escravidão acabou, faz dezoito anos que o Império caiu. Agora quem manda no Brasil são republicanos.


Sarah cobriu a boca para rir.

— Você não parece um espírito Kaiana, parece um folhetim, sabe de tudo e todos, boca de fofoca!

— Eu apenas me mantenho informado.

— Já que é assim me diga, qualquer uma de nos pode fazer este feitiço? — Sarah pergunta.


Kainana fica em silêncio por um momento mas logo responde.

— Sim. Contando que escolha um vivente para tomar conta do seu "assentamento". As coisas não podem ficar largadas por ai, precisa de gente de carne e osso para tomar zelar.


Cigana então tomou Sete Saias pelas mãos.

— Vamos, venha comigo!

— Para Onde? — Sete Saias estranhou.

— Conheço alguém que pode fazer esse feitiço para. nós. Venha também Kainana, ela vai querer te ver.


Na madrugada os três juntos rumaram para um vilarejo próximo, Sarah animada contava que havia uma bruxa lá, uma benzedeira que ouvia as vozes dos espiritos.

Antes do amanhecer chegaram, era um grande terreno cheio de árvores frutíferas e cercado por um muro baixo pintado de branco, no centro havia uma pequena casa de telhas de barro e assoalho de madeira. O sol ja despontava no horizonte anunciando a manhã, a velha estava na sua cadeira de balanço na varanda. Um vento gelado soprou, as folhas do jardim se agitaram e então por cima das lentes redondas de seu oculos a velha viu tres vultos diante dela.


Pigarreou, e disse:

— Cigana Sarah... trouxe visitas? Eu não estava preparada para receber convidados hoje.

— Nossa, ela realmente pode nos ver... — Sete Saias demostrou espanto.

— Claro que posso querida, posso ver e ouvir bem todas as coisas dos espíritos. 


Sarah deu um passo a frente.

— Me perdoe vir sem mandar aviso, Doralice eu preciso de você, há um trabalho a ser feito e eu preciso que me ajude. 


Ela explicou todo o ritual. A velha Benzedeira escutou tudo com atenção.

— Eu não acho isso uma boa ideia.

— Porque? — Sete Saias perguntou.

— Não gosto de matar animais em casa, faz muita sujeira. 

— Ah não seja assim... — Kainana sibilou com sua voz de serpente — você usará o sangue, e com a carne pode fazer... uma lasanha!


Doralice acabou caindo na risada.

— Uma Lasanha? Você sabe o que é uma lasanha? 

— Não sei, mas ouvi umas italianas falando disso quando lavavam roupas no rio, e eu quero provar!

— Tudo bem então, são tres que serão colocados em pé, não é? Pois bem... eu tenho dois priminhos que precisam de proteção e eu preciso de alguém que me dê força. Eu lhe assentou Kainana e depois ofereço os assentamentos de Sete Saias e Cigana para minha eles. 

— Nossos "assentamentos" serão dados para crianças? — Sete Saias estranhou.

— Sim, mas ninguém é criança a vida toda. Esses meus dois priminhos são... especiais, e eu infelizmente não posso ajudar tanto quanto gostaria. A mãe deles é uma maluca, uma pessoa... ruim. Mas as crianças não tem culpa disso. O menino se chama Henrique, é ainda um bebê de colo, está lá dentro dormindo, eu acredito que ter você Cigana ao lado dele será muito bom. Já a menina foi adotada por um amigo da família.

— Essa menina ficaria para mim? — Sete Saias perguntou.

— Sim, ela tem agora nove anos de idade.

— E qual o nome dela?

Doralice olhou para o céu que agora era tingido de amarelo pelo sol que surgia.

— O nome dela é Milena, mas ela prefere ser chamada apenas pelo sobrenome.

— E qual é? 

— Belladonna. Venham, entrem aqui em casa antes que o Sol os toque.



❤ - II

Pela volta das três horas da tarde a energia do lugar mudou.

Ele estava sentado nas vigas do telhado de uma casa abandonada bem próximo a praia. Mesmo sendo um espírito de homem morto ele ainda gostava de ficar por ali e sentir o cheiro da maresia.

Sua cabeça se voltou para o norte, sentiu algo estranho, uma energia perturbadora.

Com toda essa movimentação ele sentiu que era hora de por o pé na estrada. Saltou para fora da casa e saiu rodopiando dentro de um grande redemoinho de vento e poeira, assim o vento lhe carregava.

Sabe, a luz do sol rejeita as almas perdidas, o vento as envolve em grandes redemoinhos como que denunciando onde estão. Os espíritos não gostam disso, não gostam que isso aconteça, e mesmo que naquele época os humanos vivos já não acreditassem mais que os redemoinhos eram almas desgarradas, ainda assim os espíritos preferiam ficar longe da luz do sol.

Mas ele era um espírito diferente, não ligava para nada, e foi cortando as ruas da cidade levantando poeira com o vento girando a sua volta.

Ele era um espírito já a muito tempo, foi um que havia tentado de um tudo para voltar a viver. Um desses feitiços não deu muito certo, e isso malejou sua alma. Possuia agora chifres de bode, e seu pé direito era tal como uma pata de Boi. Toda magia tem um preço, e ele pagou caro por seus infortúnios.

No tempo que foi homem de carne e osso seu nome era Amadeus, mas agora na morte lhe chamavam de Giramundo... sim, se chamava Giramundo.


O redemoinho de vento cessou quando ele se ocultou sob a sombra de uma árvore. Parou ali quando a gritaria chamou sua atenção.

Um homem de chapéu e paletó com jeito de ser um ricaço corria rua acima berrando um nome.


"GABRIELA! GABRIELA MINHA FILHA! GABRIELA!"


Giramundo observou o homem perguntar aos transeuntes se tinham visto uma criança, uma menina de seis anos de idade que vestia conjunto azul e trazia nos braços uma boneca de porcelana.

Todos disseram não ter visto nada. O homem falou para ninguém em particular:


"Mas... mas eu estava segurando na mão dela e de repente ela desapareceu!"


Giramundo moveu seus olhos ávidos de íris amarelas para o fim da rua, lá uma mulher loura e magra com vestes esquisitas estava se afastando, junto a ela ia uma menina que pela descrição era a tal Gabriela.

Por mais que Giramundo pudesse ver com clareza, pelo jeito ninguém mais enxergava as duas. Ele sabia o que era aquilo, já tinha visto acontecer antes. 

— Bruxa... — murmurou.

E estava certo, era uma bruxa roubando uma criança. Algumas bruxas más faziam essas coisas, faziam a luz do dia, através de suas magias permaneciam invisíveis aos olhos dos homens comuns.

Giramundo lamentou pelo destino horrível que a inocente Gabriela teria nas mãos da feiticeira de cabelos louros, mas o que ele poderia fazer a respeito? Suspirou aborrecido e observou ate que a bruxa e a menina viraram a esquina e sumiram de sua vista. O pai agora corria em sentido oposto berrando mais alto que nunca o nome de sua filha.


Mas a energia forte que ele havia sentido não era referente aquilo, ele inflou as narinas e sentiu o cheiro de Sangue sendo enfeitiçado.

Seu nariz nunca falhava, ele farejou a direção e entendeu que aquilo vinha da casa da velha Doralice, uma feiticeira muito agradável pela qual ele nutria carinho, e a direção da casa dela estava cheia de uma energia impactante. 

Gira mundo decidiu ir até lá ver o que aquela bruxa estava a fazer.

Ao se aproximar ele se ocultou nas sombras de outra árvore o observou abismado a situação, pois ele não havia sido o único atraído pelo cheiro do Sangue... eram dez, vinte... não, ja eram mais de cinquenta kiumbas na porta da casa de Doralice, muitos outros rodeando o terreno. Eles estavam tentando entrar, mas os encantos indígenas que a velha havia colocado no entorno da casa impedia que os Demônios entrassem. Os grunhidos eram horripilantes, as criaturas... pavorosos seres deformados, humanos meio animalescos, eram espíritos irracionais, atrocidades ambulantes. 



❤ - III

Estava zonza, Atônita. O corpo era quente, sentia o sangue correr nas veias e o coração batendo no peito. Era incrível a sensação.

Após tanto tempo no escuro ela estava sentindo sensações de vida novamente. A visão ainda estava um tanto embaçada, o ritual havia sido intenso demais.

A voz de Dama da noite pareceu centrar aquilo que parecia um Devaneio.

— Mulambo como está? 

— Bem... eu acho.

— Essa moça pode suportar bem você. Como se sente estando dentro de um corpo vivo?


Mulambo olhou para as próprias mãos, viu a pele branca dos braços, uma cor de pele muito diferente da sua original. Aquilo era um corpo de uma outra mulher, Mulambo estava incorporada naquela jovem moça chamada Irani, uma "Filha da Santo" na casa onde Dama na Noite imperava. Mulambo agora usava Irani como seu Julgo, seu Cavalo. Ela então respondeu:

- Me sinto seca... e sem... ar...


Dama da noite que estava incorporada na Mãe de Santo" ordenou que dessem um cigarro e um copo de Champanhe a Mulambo e explicou:

— A fumaça do cigarro é densa, vai lhe preencher, o fumo e álcool entorpecem o corpo e assim você o dominará melhor, e não é qualquer álcool, isso é Champanhe Ruinart.

— Ruinart? — Mulambo bebericou na borda da taça — Como essa gente pobre consegue comprar essas coisas? É caríssimo.

 — Quem disse que foi comprado?


As duas gargalharam.

Mulambo olhou para trás e avistou a panela de barro cheia de terra com o grande tridente de Ferro pintado com tinta vermelha fincado no centro o sangue escorria pelas bordas da panela e as penas de galinha estavam espalhados por toda parte, ela encarou aquilo vendo certa similaridade com as coisas que uma mulher que tinha conhecido em vida fazia, uma mulher muito intrigante que um dia aceitou que Mulambo trabalhasse dentro de seu cabaré. 

— O que foi? Não gostou do seu assentamento? Devia me agradecer pois esse canto onde ele ficará é um dos melhores espaços da casa.

— ninguém gostaria de um negócio tão feio, mas se ele é útil eu aceito e agradeço. Mas na verdade olhando para essa coisa eu meio que me lembrei da... daquelas coisas que...

— As coisas que ficavam escondidas no porão daquela velha puta? — Dama da Noite olhou para o assentamento e fez uma careta — É, parece mesmo.

— Por onde será que ela anda? Se todas nós juntas, nós que de alguma forma tivemos ligação com ela, se nós estamos praticamente todas aqui, era de se esperar que ela também estivesse.

— Com os espíritos as coisas não funcionam assim, você mesma ficou inerte durante décadas, então não há como saber onde aquela maldita está.

— Você guarda muito rancor não é?

— Tenho meus motivos. Mas não vamos mais falar de velhas Bruxas nojentas, vamos desfrutar o dia de hoje.


Mulambo da um gole na taça e reclama:

— Sei que Champanhe Ruinart é muito precioso, mas para mim sso é fraco, parece que estou bebendo água! Eu preciso de algo mais forte. Me de algo mais pesado pelo amor...


Uma das filhas de santo da casa então oferece a ela copo de alumínio com uma mistura de conhaque e cachaça, também lhe dá um charuto.

Mulambo dá um trago e grita:

— Isso! É disso que eu gosto!


Maria Padilha se aproximou, estava incorporada em seu cavalo, uma moça jovem de olhos cor de mel. 

— Você deve entender que a incorporação é uma via de mão dupla, a Moça te ajuda e você ajuda a moça. Ela ira lhe pedir alguns favores, e voce deve ajudá-la.

— Você está falando comigo? Ah já sei, ouviu Dama da Noite falar sobre uma puta velha e logo achou que era contigo? 

— Você não muda Francisca...

— Meu nome é MULAMBO! — respondeu nervosa.

— Não me importa, eu te chamarei do que quiser. não motivos de lhe prestar qualquer tipo de respeito. — Padilha sorriu com os olhos brilhando de ódio.

Mulambo derrubou o copo e o charuto no chão e começou a tirar os brincos pronta para uma briga, mas Dama ds Noite interrompeu:

— Vamos nos acalmar por favor, aqui não é rinha de galo, e não se esqueçam que estão usando o corpo de outras pessoas, nada de bofetadas aqui.

— Não se preocupe Dama, — Padilha sorriu — eu nunca fui de escândalos, e se você se recorda... a Barraqueira entre nós nunca fui eu.

— BARRAQUEIRA É SEU CU CHEIO DE MERDA! — Mulambo berrou atraindo os olhares de todos da casa.

— Bom, com licença. — Padilha deu as costas saindo rebolosa.

— Você viu isso Dama? Ela veio me provocar! — Mulambo apertava os punhos cheia de raiva.

— Claro que eu vi meu bem, mas isso não é nada, não se distraia com besteiras.

— Vou tentar, mas eu não tenho sangue de barata.


Foi uma noite trabalhosa, Meia noite e Sete Encruzilhadas tambem foram assentados no chão, receberam médiuns para incorporar, e assim pela noite a dentro seguiu-se um grande festejo.

Lá pelas tantas, quando a casa ja estava vazia e os espíritos já estavam livres das incorporações, na noite escurs ecoou um som de uivo agudo, algo não natural, nenhum animal uivava daquela forma.

Eram eles, os kiumbas, as criaturas estavam  aglomeradas em torno do Terreiro de Dama da Noite.

Com aquela aglomeração os espíritos não puderam sair do terreiro. Os rangidos dos kiumbas eram ouvidos por toda parte. Eles seriam com certeza atacados se saíssem da casa, a proteção so se mantinha na parte interna do terreiro, enquanto eles estivessem pisando no chão que Sete Flechas encantou não haveria como um espírito ruim entrar. 

Meia noite espiou por uma das janelas, viu então aquelas criaturas e a sua visão focou em uma, estava agachada farejando o chão, tinha a pele da cor de chumbo, os cabelos muito longos e desgrenhados eram grisalhos, os braços eram longos e as pernas tinham três divisões como as de um lobo mas ainda assim as coxas pareciam muito humanas. A surpresa de Meia Noite foi quando o Kiumba ergueu a cabeça, o que ele viu ali foi um rosto cem por cento humano, era uma mulher, tinha os olhos com Iris vermelhas flamejantes e uma boca muito mais larga que o normal com dentes pontiagudos, mas com certeza era uma mulher humana. Sem compreender o que era aquilo de fato, ele pediu que Sete Encruzilhadas explicasse a todos que diabos eram aqueles seres.

Sete encruzilhadas estava deslumbrante aquela noite. Sua pele extremamente branca e seus olhos cor de prata revelavam uma face dura, com maxilares proeminentes e bem feitos, seus lábios eram fartos, não possuia barba fazendo seu rosto reluzir. Sem camisa, ele se apresentava com uma calçada larga de tecido negro e nada mais, os pés másculos descalços em contato com o chão. Mesmo sem nenhum adorno ele era lindo. Sentou no chão proximo a porta, e vendo a multidão de kiumbas do lado de fora ele começou a falar.

— Kiumba é o termo que se usa aqui no Rio de Janeiro, é uma palavra de origem africana que fala de espíritos malignos, mas no mundo inteiro, sobre ou sob a terra existem esses espíritos, chamam de obsessores, de fantasmas, de almas penadas e coisas do tipo. Na realidade não importa muito o nome que dão, a natureza real dessas almas é humana, são espiritos de homens e mulheres mortos.

— Humanos? — Meia Noite se assombrou — Como é possivel dizer  que esses monstros são humanos?

— É o seguinte, pessoas boas quando morrem são encaminhadas a outro lugar, outros mundos. Os Deuses as recolhem para seu reino e la elas estarão prontas para reencarnação. Nós, os feiticeiros que conhecemos os segredos das sombras, quando morremos nos tornamos espíritos de força, tal como somos agora. Porém existem pessoas extremamente malignas, pessoas que não foram influênciadas por magia e sim que eram naturalmente imundas, podres. Após a morte essas pessoas más vagam por ai sem rumo. No ato da morte eles acordam aqui na terra, sozinhos e desesperados. Com o passar dos dias, dos meses, dos anos, eles vão sofrendo e perdendo a racionalidade. Doi estar morto.  Séculos se passam, muitas vezes milénios, e com essa estagnação espiritual eles se tornam isso... almas desfiguradas, coisas que não lembram mais a humanidade. Chega um ponto que eles não desaprendem a pensar, não sabem mais falar... mas sabem fazer o mal. A maldade se torna sua essência, eles amam o mal acima de quaisquer coisa. 

— Mas se não sabem pensar... como estão agrupados aqui na porta? Eles estão organizados, não vê? — Mulambo comentou.


Sete Encruzilhadas deu de ombros.

— Tem coisas que nem eu sei responder.



❤ - IV

Espírito Santo é um lugar cheio de mistério.

Próximo a uma antigo cafezal havia um lago de agua negra, ja era mata fachada mas antigamente passava por ali uma estrada. Lugar abafado e úmido.

Uma mulher morava no fundo lamacento da lagoa, uma mulher morta. Era por causa dela que a água havia se tornado negra. Rosário era seu nome de batismo, mas os aldeões que tiveram o desprazer de ver o espírito vagando sem rumo pelas trilhas de terra da região logo a batizaram como "Rosa Caveira".

Esse nome veio pois Rosario em sua forma espiritual se mostrava apenas com metade de um rosto humano. A outra metade ers um crânio exposto. O motivo disto foi a forma violenta como morreu. 

Com o passar do tempo ela começou a ser cultuada pelas mulheres dos cabarés da região, por aquelas que sabiam que ali naquele lago jazia a alma de uma poderosa bruxa. Por pura ingenuidade ergueram uma imagem de anjo na margem do lago,  com o tempo a imagem se encheu de logo negro, o ambiente se tornou algo tão mórbido que assustava qualquer um que olhasse o lugar. Rosário era agora ROSA CAVEIRA. Ajudava as meninas, auxiliava em seus pedidos... Rosa Caveira era um espírito de força.

Deitada no fundo do lago ela olhava para o brilho da lua que através da água... desejava dormir, descançar... mas não podia. As velas que ela havia acendido em vida, os feitiços que fizera lhe deram uma alma que não foi absorvida nos planos superiores, sua alma estava presa a terra.



Estava triste, a desolação tomava conta do seu ser. Seu maior desejo era "existir" novamente.

Eram nítidos os sons de passos, sons abafados da movimentação de outro espírito que rodeava a margem do lago. Pelo menos era alguém com quem ela iria conversar. Rosário subiu até a superfície do lago e seu rosto cadavérico surgiu na linha d'água.


— Rosa? Rosa Caveira? — Um homem de voz grossa a chamava, era nítido que tentava aveludar o tom para parecer amistoso.

— Quem me chama?

— Soi eu, Zé dos Anjos. Ô Rosa... sai desse breu, venha prozear um pouco.


Sim ela tinha uns poucos amigos, Zé dos Anjos era um deles. Há mais de uma centena de anos havia uma benzedeira que consagrou seu filho aos Deuses dos índios. A criança era um serviçal de fazenda, um Boiadeiro. De sua mãe ele herdou os encantamentos e as magias. Na hora de sua morte também não achou seu lugar... se tornou Zé dos Anjos, o Caboclo Boiadeiro. Era de estatura mediana, parrudo musculoso, calvo. Mãos grandes com dedos grossos pela lida com a corda de laçar boiada.

— Moça... passo a vida procupadu co cê. Sai dessa solidão...


Rosa caveira sai da água, sua figura encharcada de agua era assustadora, os tecidos de seu vestido longo e negro pesavam pela agua e seu cabelo longo e ruivo caia como uma cortina de ferro por suas costas. Caminhou até Zé dos Anjos e sentou ao lado dele em uma rocha limosa.

— Zé... como tem passado? — disse ela com a voz em tom lento e baixo.

— Bem bem, sabe cumé, só nas ventura. E ocê fia, ainda solitária? Vem cu eu pa aldeia...

— Obrigada Zé, mas meu coração é escuro demais... não quero me aproximar de gente.


Zé dos Anjos suspira e arruma o cabelo molhado dela atrás da orelha.

— Eu Soube dumas notícia dos seus amigo, os espíritos que você conviveu em vida.

Rosa Caveira levanta uma sombrancelha, no caso a única sobrancelha que tinha.

— Quem exatamente?

— Os nome de gente eu num sei, mas agora cada um responde por um novo nome. Sete encruzilhadas, Meia Noite, Maria Mulambo, Figueira, Dama da Noite e a Maria Padilha.

— Me lembro de alguns destes, principalmente de Dama da Noite. Mas me diga Zé, o que essa corja esta aprontando?

— Corre na boca miúda que fizeram "assentamento".

— E o isso significa?

— Sei lá... — Zé encolheu os ombros — Mas a fococa corre im boca di Matilde sabe, parece que é coisa importante.


Rosa caveira passa os dedos de unhas longas sobre a face e revela os ossos de seu crânio. O lado direito de seu rosto estava tão morto que os ossos da face brilhavam.

— Assentamento... acho que Kainana uma vez mencionou isso. É o feitiço na panela de ferro não é?

— Kainana sabe das coisas, deve ser isso ai, e eu sei que até memo os de Pena tem feito isso, Sete Flechas feiz algo parecido, mas cuma pedra de quartzu  branco. Isso é perigosos menina, corre em boca miúda queos diabos querem atacar as casas onde esses feitiços estão guardados. 

— Diabos? Bom, se existe oposição é porque esse tal assentamento serve de alguma coisa.


Uma outra voz de homem, essa animada e mais aguda se ouve no outro lado da lagoa.

— Vamos arriscar! Vamos Rosa Caveira, a nossa hora é essa.

Rosa Caveira olha em direção ao homem, ele era negro e tinha a cabeça raspada, era baixinho e usava calça preta dobrada até o meio das canelas,  uma camisa de botões aberta em tom vinho.

— Não tenho certeza Tiriri.

— Ora essa, vamos lá curiar, se não for nada de interessante nós voltamos. — falou Tiriri.

— Vai sim Rosa, vai passear. — Zé dos Anjos incentivou.

— Hum... — Rosa ergueu a cabeça e olhou para a lua — Sim..., tudo bem Tiriri, vou com você. Vamos rever nossos velhos amigos. 


(Continua...)



Comentários

Postagens mais visitadas