Contos das Muitas Marias - Segunda Temporada

Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada 


Os contos estão em ordem de lançamento, porém não em ordem cronológica. É necessário ler com atenção.


Índice:
💋 Maria Navalha (22/02/2021)
Conto 1: A Caixa

🍸 Dama da Noite (01/03/2021)
Conto 2: Chave de Prata 

👹 Maria Quitéria (03/03/2021)
Conto 3: Paineira Rosa

🌸 Menina (09/03/2021)
Conto 4: Aluvaiá  

💀Rosa Caveira (15/03/2021)
Conto 5: Um Mausoléu 

🌹 Maria Mulambo (19/03/2021)
Conto 6: Santiago 
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CONTO 1 - A CAIXA 

🌹🍷💋🌹🍷💋🌹🍷💋🌹🍷💋
A última noite foi a coisa
Mais tenebrosa que já vi.
Estávamos todos nós no beco
Da Pedra Furada, as mesas
Na rua, Nega Zefa no barril 
De cerveja, a viola e o pandeiro
Dando aquele samba pra 
Dar paz na madrugada.
Foi ai que aquele menino 
Chiquinho do Churra
Entrou no beco gritando
👦 — Eles tão subindo o morro! Sete Facadas e os negos, tão subindo!
O samba parou, silêncio.
Então ela deu uma gargalhada.
💋 — Simbora meu povo! Quem tem pistola, carregue! Quem tem faca, afie! Se eles tão subindo... eu to descendo.
Ela sempre foi certa nas coisas,
Mas o tempo foi cruel.
Estava sessentona
E mais maluca que nunca.
Depois que Zé foi nas águas de Oxalá,
O morro ficou sendo dela.
A policia estava um "nem-te-ligo"
Pro morro, afinal so quem morava 
Lá era gente pobre.
Era Navalha que protegia 
Toda aquela gente.
Foi ai que ela me chamou de canto
E disse nos cochichos:
💋 — Você sabe o que Sete Facadas quer, mas eu não vou dar. Você pegue aquele troço e suma pra dentro do mato, se acontecer o pior tu leve aquilo pra Rosa.
Assenti, não ousava
Contrariar Navalha,
Mesmo que tivesse naquele
momento a certeza
Que ela estava completamente
louca.
A Rosa que ela falava
Era Dona Rosa Vermelha,
Morta a mais de trinta anos.
Bom, sem questionar 
Corri com meus cambitos
Finos de moleque até 
O barraco dela, levantei as
Tabuas do assoalho do quarto
E peguei a caixa de madeira.
Devia ter ido embora do morro,
Me escondido no mato,
Mas quando sai pela porta
Do barraco ouvi lá na baixada
O som da bala comendo solta 
E me distrai, 
Feito um idiota fiquei parado
Olhando lá pra baixo,
Para as vielas escuras da qual
Via os coriscos vermelhos
das balas correndo pra todo lado.
🗡 — Passa essa caixa pra cá.
Senti o gelado do cano da pistola
Encostar no meu pescoço.
Olhei pelo canto dos olhos
E o vi, era Sete Facadas.
Não tinha alternativa,
ou dava por bem ou ele
Atirava em mim e pagava
A caixa de qualquer jeito.
Ergui o braço pra ele apanhar 
Mas então ouvi o disparo
E ele caiu ajoelhado.
Olhei para frente e lá vinha
Maria Navalha com a pistola 
Erguida na mão.
💋 — Ta bem Moreno? Ele te furou?
👦 — To Bem. Ele morreu? — olhei para o homem no chão.
💋 — Quem dera. Ande, vamos! Temos de ir até Rosa.
Não consegui me mexer,
O que vi me deixou
Muito assustado.
A camisa de Navalha estava
cheia de buracos minando sangue.
Contei por cima pelo menos
Onze furos.
👦 — A-a se-se-senhora...
💋 — Isso não é nada, vamos rapido!
Me puxando pelo braço  
Nos subimos a viela e entramos 
No matagal,
Corriamos a toda velocidade
E eu a toda hora olhando
Para os ferimentos no corpo dela,
E a cada segundo eu via
Menos sangue saindo dos furos,
Até que não vi mais furos na pele,
Os buracos do tecido revelavam
Por baixo da camisa uma pele
Limpa e imaculada.
Continuamos correndo como 
Loucos, agora já por entre
As árvores, até que
Me revoltei e parei.
👦 — Dona Navalha o que está acontecendo? Como seus ferimentos se curaram? E do que estamos fugindo?
Navalha olhou tras e apontou
Para as árvores distantes.
💋 — Ela, estamos fugindo dela. 
Olhei para trás e vi
Algo branco, era como
um lençol branco flutando
Por entre as árvores
E vindo na nossa direção. 
👦 — Que diabo é aquilo? 
💋 — Não importa. Vá Moreno, vá que eu vou ficar pra segurar ela. Ande! Vá!
Olhei para o rosto de Navalha
E me espantei, estava nova,
Era como uma moça
na casa dos vinte anos.
Corri dali segurando a caixa,
Corri por mais de meia hora
Até chegar na estrada.
Corria sem pensar nas coisas
Que tinham acontecido
Pra não embaralhar a cuca.
Ja não podia correr mais,
Mas andava rápido.
Cheguei até aquela encruzilhada 
Perto da ponte,
Ali Navalha havia dito
Que trinta anos antes não era
Rua e sim um terreno
Com um enorme casarão,
Que bem em cima da encruzilhada
Ficava o antigo cabaré da cidade.
Fui no meio da encruzilhada,
Lugar muito escuro 
Iluminado por uma lua fraca.
Sabia que era maluquice,
Sabia sim, mas Navalha
Deu ordem de fazer aquilo,
Então fiz o que ela queria.
Respirei fundo e mesmo
Me achando bem um diota
Fechei os olhos e falei:
👦 — Rosa Vermelha, eu trouxe a caixa, Navalha mandou lhe dar.
Senti um vento gelado
E um arrepio do lado esquerdo
Do corpo.
Abri os olhos e no ato
Meus joelhos começaram
a bater um no outro
Do tanto que eu tremi.
Ela estava a cerca de 
Vinte metros, vinha na 
Minha direção,
Mas ela não andava,
A barra de sua saia
Estava a um palmo do 
Chão e ela vinha deslizando
No ar.
👦 — A-ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco, bendi... ai meu Jesus o que é isso...
🌹 — Está rezando porque? Não foi você que me chamou?
👦 — Fo-fo-foi sim... A ca-ca-ca...
🌹 — Caixa? Veio me dar a caixa?
👦 — Si-si-sim...
🌹 — Então me dê.
Ela se aproximou mais,
A pele era branca translucida,
O vestido vermelho vivo
E o cabelo negro revoavam
Mesmo sem vento forte.
Que medo meu Deus,
Aquilo era coisa do outro 
Mundo.
Quando ela esticou o
Braço para apanhar
a caixa eu larguei 
A caixa no chão 
Virei as costas 
E corri, corri muito,
Sentia o corpo tremendo
E a umidade nas pernas,
Te digo que me mijei todo
Na frente daquele diabo.
Eu corria rezando o
Pai nosso e a Ave Maria,
O Credo, a Salve Rainha,
Até da oração do São Bento
Eu me lembrei.
Aquilo não era normal,
Mas eu vi sim Rosa Vermelha.
Corri de volta pelo mato
O suor frio escorrendo pela testa,
Fui pela trilha
Até chegar no ponto onde
Havia deixado Navalha,
Mas lá não havia ninguém.
Corri de volta pro morro
E fui pra casa dela,
Mas também não tinha ninguém.
Desci o morro até a baixada
E ali foi que meu coração gelou.
Na curva do Assussena tinha
Uma monte de gente parada,
Muitos chorando.
A policia tava lá, guarda montada,
E o povo dizia a eles pra não
Levarem o corpo dela,
Que era da nossa família.
Mas dela quem?
Perguntei a Dona Zena,
Que era a dona da quitanda
E que tinha visto tudo 
Da janela de casa,
Perguntei a ela
Quem era a pessoa morta lá
Em baixo e ela disse
"Mataram Navalha".
Corri até o corpo dela,
E estava lá, o peito cheio
De buracos de bala.
Zé do Coco tava junto
A policia explicando qualquer
Coisa que não entendi,
Assim que os guardas se foram
Eu perguntei:
👦— Quem matou ela?
🧔🏻 — Foi o Sete Facadas. Ela atirou nele, matou o desgraçado bem ali na praça, mas ele antes de morrer descarregou tres pistolas nela.
👦 — Mas como na praça? Ela atirou nele lá em cima, na porta do barraco dela! Eu vi!
Zé do Coco me olhou como se
Eu fosse doido.
🧔🏻 — Moreno, Navalha não subiu o morro. Do que é que tu ta falando?
👦 — Ela me mandou ir na casa dela, e eu fui. Então o Sete Facadas apareceu lá, ela também, e atirou nele.
🧔🏻 — Se anda bebendo demais Moreno. Eu vi a hora que lhe mandou ir na casa dela, e em seguida ela desceu o morro com o bando. Assim que desceu foi baleada. Voce ta vendo fantasma é Moreno? Ande, vamos levar o corpo dela lá pra cima, era nossa amiga, vamo enterrar ela lá no pico.
Fui ajudar a carregar 
o corpo, Mas todo momento 
Meu pensamento tava longe.
Se ela morreu lá em baixo,
Quem foi que correu comigo
pelo mato? 
Será que eu tava mesmo doido?
Enterramos ela no pico
Do morro do lado de uma
Pedra que ela gostava de ficar 
Sentada olhando o mar.
Houve muita tristeza aqueles dias.
Evitei contar minha história
A qualquer pessoa,
Tinha medo de me mandarem
Pro sanatório da carioca,
Então eu mesmo me convenci
Que tudo fora um sonho,
Que nao tinha visto Navalha 
Após a morte, 
Que não tinha corrido com ela
Pro meio do mato,
Que não tinha levado a caixa
Pro fantasma na encruzilhada.
Os anos passaram,
Os anos não perdoam.
E eu nunca esqueci dela,
Toda vida o pensamento
Ficou nela.
Quando tinha por volta de 
Quarenta anos houve um
Surto de doença da caixa do peito
E eu fui contaminado.
Eu fiquei doente do pulmão.
Era coisa muito difícil de curar.
Pra não contagiar o resto
Do morro eu me isolei lá
Na casa mais alta,
No barraco de Navalha.
A tosse era muito forte
E me arrancava sangue pela boca.
Estava fraco e não conseguia
Mais andar.
Porém uma noite alguém
Bateu na porta do barraco
E eu de supetão levantei,
Nem percebi que não estava
Mais fraco e nem tossindo.
Abri a porta e vi um homem
De pele preta bem escura
Com bigodinho aparado na regua
E vestindo paletó branco e 
Chapéu Panamá.
👦— Pois não?
🃏 — É tu que é o Moreno? 
👦 — Sou eu sim senhor. E o senhor quem é?
🃏 — Eu sou Zé.
👦 — Zé da onde meu senhor?
🃏 — Sou Zé Pelintra. Venha Moreno tem alguém lá querendo falar contigo.
Olhei por cima do ombro
daquele senhor e vi ela
Ao longe sentada na pedra,
Maria Navalha com os cabelos
esvoaçando ao vento.
Fiz menção de me virar, 
Queria voltar ao quarto 
E pegar meu chapeu antes 
De ir, afinal ela era uma
senhora muito distinta
E não era boa educação 
Aparecer sem chapeu,
Mas Zé Pelintra me segurou
Pelo braço.
🃏 — Não filho, não olhe la dentro. Deixe o que esta lá para o povo enterrar. Venha, agora você é um dos nossos, você vem com a gente.
Sai com ele pela porta
E quando dei por mim
Estava bem vestido,
Tinha minha camisa listrada
E um bom chapéu na cabeça.
Me acheguei a dona Navalha
E ela sorriu enquanto
Apertava minha mão.
👦 — Eu entreguei a caixa dona Navalha, eu fiz o que a senhora mandou.
💋 — Eu sei Moreno, e lhe agradeço muito. Agora vamos embora.
👦 — Vamos pra onde?
💋 — Malandro se arranja em qualquer lugar. Vamos caçar um canto pra fazer um pagode até o sol raiar...
Então nós tres descemos
o morro.
Durante a descida encontramos
Um bocado dos nossos,
Maria do Cais, Zé Pretinho,
Zé da Brilhantina, Zé de Légua,
Zé Pereira e outros.
No fim éramos muitos.
Fizemos nosso pagode aquela 
Noite, e em todas as outras noites.
Ate os dia de hoje estamos por ai
Ao som do pandeiro, no samba 
De roda, as vezes em praça,
As vezes em fundo de quintal,
As vezes no jongo e muitas
Vezes dentro de uns terreiros


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CONTO 2 - CHAVE DE PRATA



👄🍸💄👄🍸💄👄🍸💄👄🍸💄
"Creck!"
Eu sempre esse som quando
me distraio.
"Creck..."

Talvez eu seja mesmo louca,
Já não sei.
Fazia cinco meses que estava
Internada naquele hospício.
Papai quando vinha 
Me visitar dizia 
"isto não é um hospício Eliza, é um convento"
E de fato o nome na placa
Na entrada era Convento de 
São Bento Milagroso,
Mas só gente desiquilibrada era
Trancafiada lá.
Moças entregues ao pseudo
Amor das malditas freiras.
Mulheres velhas, secas,
E eu lhes digo que se essas
São as ditas "esposas de Cristo"
Não me admira nada ele
Não ter voltado.
Mas dentre essas malditas
Havia apenas uma que era
Gentil comigo, essa era a 
Irmã Dulcenéia, uma freira
Jovem como eu e que também
era desprezada,
Era diferente, irreverente.
Só Dulcenéia acreditava em mim.
Toda vez que as freiras mais
Velhas viam irmã Dulcenéia
Falando comigo elas me
Olhavam feio e me mandavam 
Voltar para o quarto.
Eu fui internada porque
Papai tinha medo de eu
Ir parar na fogueira, 
Então me internou como louca.
Mas eu não era louca
Eu apenas tinha o dom de
Ver os espíritos dos mortos.
Sim eu os via, passavam
A esmo por todo canto,
Gente mal cheirosa,
De ar malacabado, 
Espíritos desnorteados
Como mortos de fome
Ou vitimas de guerra.
Mas uma noite eu vi 
Um espírito diferente.
Estava em meu quarto,
Que não era bem um quarto
e sim um cela com barras
De ferro na janela.
Era de noite e eu estava
Ali na janela observando 
A movimentação dos escravos
De ganho indo embora 
E o oficial da guarda
acendendo os lumieiros,
Então vi aquela mulher.
Eu sabia que era um espírito,
A gente que é médium 
Sempre sabe o que vivo
E o que é morto.
Mas ela era diferente de todos
Os outros que ja tinha visto,
Andava pela rua com
movimentos suaves, como
Se deslizasse, usava um vestido
dourado que brilhava e tinha 
Os cabelos negros caindo pelos
Costas. Era Belíssima.
Me grudei na janela para ver,
Cheguei a espremer a cabeça
Entre as barras de ferro.
E então a mulher parou no meio
Do caminho e graciosamente
olhou para mim.
O rosto era deslumbrante,
Era como uma estatua de Afrodite.
Quando aqueles olhos penetrantes
Encontraram os meus
Eu senti medo e sai da janela.
Sentada na minha cama pensava
"Que tipo de espírito era aquele?"
Pois ao contrário dos demais
Fantasmas obscuros, 
Ela emanava luz.

💄 — Boas Noites meu bem.

Tomei um susto, 
Movi a cabeça para o lado
lentamente e vi ali
Sentada na minha cama.
Era ainda mais bonita de perto,
Os lábios vermelhos
E os olhos verdes, escuros 
De maquiagem negra.
Engoli em seco, 
O maximo de palavras que
Um espírito ja havia trocado
Comigo foram rosnados ou
Coisas balbuciadas e 
Lamentos sem nexo,
Então me assustei com a voz
Limpa e clara dela.

👱 — Hum... b-boas noites. Quem é a senhora?
💄 — Senhorita, pois sou ainda solteira. — Ela fez piada.
👱 — Pois bem, senhorita, qual é vossa graça?
💄 — Me chamam de Dama da Noite. E tu?
👱 — Meu nome é Eliza.
💄 — É um prazer lhe conhecer Eliza.

Ela me encarava fixamente
Me perscrutando.

👱 — E o que a senhora quer comigo?
💄 — Eu vim tirar-te daqui, faz muito tempo que a procuro.
👱 — Me procura? Por qual motivo?
💄 — Você corre perigo meu bem. 
👱 — Perigo? Do que está falando?
💄 — Me diga meu bem, o que você sabe sobre a família de sua mãe?

De repente me vi conversando
com aquele espírito como se 
Ela se fosse uma mulher viva.

👱 — De mamãe? Eu não sei muito pra dizer a verdade, ela morreu quando eu era pequenina.
💄 — Sua mãe era filha duma cafetina.
👱 — Ora como ousa dizer isso! — Me levantei da cama já nervosa.
💄 — Se acalme meu bem, acha mesmo que eu iria vir até aqui para falar mentiras? Sente-se, eu tenho de lhe contar o resto da história. É importante.

Me sentei novamente e ela 
Contou, disse que minha avó
Materna se chamava Maria Quitéria
E que tinha gerado minha mãe
Por um descuido com
Um cliente. 
Este cliente era meu avô,
Que criou minha mãe
Como se fosse filha legítima.

👱 — E qual a relação do passado de minha avó materna com essa história de eu estar correndo perigo?
💄 — É... sua avó não era apenas cafetina, ela era também uma bruxa.
👱 — Meu Deus o negócio é só ladeira abaixo heim...
💄 — Ora essa meu bem, de onde acha que vieram estes teus dons? Você é bruxa também. Uma não muito boa eu tenho de confessar, mas é. Existe um pertence de sua avó que só pode ser recuperado ou por ela mesma, o que já não é possível pois a muito está impossibilitada, ou por alguém vivo e de mesmo sangue. Vão vir atrás de ti para obriga-la a buscar esse objeto, e por isso eu vou tirar você... daqui... oh essa não!

A tal Dama da Noite
Desapareceu diante dos meus
olhos deixando a beirada 
Da cama vazia,
então ouvi tres batidas
Na porta.

👱 — Sim?
👩 — Eliza? Está tudo bem ai? Posso entrar?

Respirei aliviada,
Era irmã Dulcenéia.

👱 — Sim claro, entre irmã.

Ela destrancou a pesada porta
E entrou, como era madrugada
Ela trazia nas mãos uma vela
E vestia uma simples camisola
Branca de dormir.

👩 — Tive um sonho com você, pra ser sincera um pesadelo. Vi o diabo assombrando seu quarto, uma sombra amaldiçoada rondando aqui. Vim rezar com você.

Me senti mal, só podia
Ser um aviso do divino.

👱 — Irmã, sei que não devo dizer essas coisas, a Madre superiora não gosta, mas... havia um espírito aqui dentro. 
👩 — Eu acredito em você, vi em meus sonhos o lobo travestido de cordeiro, é um demônio Eliza, temos de rezar para São Bento afastar Satanás de nossas vidas. Vamos até a capela.
👱 — Mas eu não posso sair do quarto a noite.
👩 — É uma ocasião extraordinária, vamos, é aos pés de São Bento que vamos achar a salvação.

Ela saiu do quarto e eu 
A segui, mas assim
Que cruzei a porta
Olhei em volta assustada 
Pois de repente me vi em 
Um saguão de um casarão 
Abandonado, havia a 
Nossa frente uma escadaria
forrada de carpete vermelho
E no topo dela a pintura
Retratando uma mulher moura
Muito bonita de vestes brancas.

👩 — Eliza que é isso? Onde estamos? Cadê o corredor? O corredor do convento... onde? Como?
👱 — E-eu não sei Irmã, não entendo.

Irmã Dulcenéia apanhou a 
Medalha que trazia no colar
E começou a rezar:

👩 — Cruz Sagrada do Padre Bento, a Cruz Sagrada seja minha Luz, Não seja o dragão meu guia! Vade retro Satanás! Nunca seduzas minha alma, são coisas más as que brin...

💄 — Pare com isso! Sua desgraçada! 

Olhei para a porta da sala
E diante dela estava 
Dama da Noite,
Radiante em beleza.

👱 — Nos deixe em paz! 
👩 — Corra Eliza! É o demônio! Ela que nos trouxe aqui!

Corremos escada a cima,
Entramos por um extenso corredor
Até chegar em uma biblioteca,
Tudo estava empoeirado
E cheio de teias de aranha.

👩 — Livros! Então aqui deve ter uma biblia! Procure Eliza, em posse da palavra de Deus o diabo não poderá nos tocar! Oh São Bento! Oh Nossa Senhora da Divina Conceição! Ajudai-nos contra o inimigo!

Estava assustada, confusa,
Então passei a procurar 
Em cima de mesas e nas 
Estantes tentando ler as 
Lombadas dos livros sob
A fraca luz da lua que entrava
Pelas janelas de vitral.

👱 — Achei irmã! 

Apanhei na estante o livro
Cujo a lombada tinha 
Escrito em letras douradas
"Biblia Sacra"
Era pesado, muito mais pesado
Que um livro comum. 
Tentei abrir o livro mas a capa
não se moveu.

👩 — Vamos ler o Salmo 91!
👱 — Deus meu eu não consigo abrir! Parece colado! As paginas não se movem!
💄 — Largue isso Eliza! —  Dama da Noite apareceu na porta da biblioteca.
👩 — Não dê ouvidos a ela! É ela que esta lhe impedindo de abrir a biblia, ela teme a palavra de Deus! Mas eu sei Eliza que se você desejar do fundo de seu coração, desejar que isso se abra, então abrirá!
💄 — Isso não é um livro! Não!

Dama da noite se precipitou
Na minha direção,
Parecia se mover com 
dificuldade e lentidão
Como se houvesse peso
em suas costas.
Desejei do fundo do 
Meu coração que aquele 
Livro se abrisse, 
E então ele abriu.
O som de dobradiça enferrujada
Se movendo tomou conta
Dos meus ouvidos,
Olhei para aquilo que estava
Nas minhas mãos e o que
Vi não foi um livro, 
Aquilo era uma caixa 
De madeira.
Larguei no chão assustada
E de dentro da caixa
Saltou uma chave de prata
que tilintou pelo piso até
Chegar aos pés 
Da irmã Dulcenéia.
Ela abaixou e apanhou
A chave com uma expressão
De extrema satisfação.

👩 — Eliza, Eliza, Eliza... 
👱 — Mas o quê? Que é isso?
👩 — Feitiço de  ilusão, tu acha que vê uma coisas mas a realidade é outra. Esta sempre foi minha especialidade. Por exemplo, sabe porque as freiras olhavam feio pra ti quando a viam falando comigo? Tudo o que elas viam era uma menina louca falando sozinha. Eu nao sou freira Eliza, eu... eu sou o Diabo.

Ela começou a gargalhar,
E então sua aparência mudou,
A pele se tornou escura,
Era a pele de uma moura,
A camisola se transformou
Em um suntuoso vestido branco
Como o de uma noiva,
Havia uma coroa de flores
em sua cabeça e muitas jóias
Por todos os lados.

💄 — Eu tentei ajudar, tentei evitar, mas não tenho forças aqui, essa é a casa dela.

A mulher de branco
olhou para Dama da Noite
com as sobrancelhas
Seguidas.

👩 — E eu estou impressionada, os sigilos que fiz eram para impedir a sua entrada aqui, mas você entrou. Meus parabéns Dama da Noite. 
💄 — Vamos lá para fora e eu te mostrou do que sou capaz.
👩 — Não...de boba eu só tenho a cara.

Olhei para Dama da Noite.
👱 — E quem é ela?
👩 — O Diabo, eu ja disse. Eu sou uma morta, uma bruxa do passado.

💄 — Você ja conseguiu o que queria, agora vá embora! 

Vi Dama da Noite cair
de joelhos ofegante.
A mulher de branco 
Caminhou na minha direção
Com os olhos arregalados.

👱 — Dama da Noite... Faça algo, me ajude!
💄 — Não posso! Os símbolos, eles me deixam impotente! — ela apontou para o teto.

Olhei para cima e 
Vi reluzir símbolos
Em vermelho, eram
Hieróglifos e estrelas,
Desenhos de cabeças de 
Cabras e serpentes
engolindo a propria cauda.
Corri para fora da biblioteca,
Sentia o real sentido das
Intenções daquela
mulher de branco,
Então corri pelo corredor,
Ele pareceu muito mais longo
que antes, e ao olhar para tras
eu a vi, vinha girando,
Dançando pelo corredor,
Gargalhando.
Cheguei o topo da escada
Mas não pude descer,
Ela havia me alcançado
E me segurou firme
Pelo braço.

👩 — Jovem Eliza, para que a pressa? O convento fica a quilômetros daqui, la fora é só mato.
👱 — Me deixe em paz por favor! Eu não tenho nada pra te oferecer!
👩 — Isso é verdade, nada mais para me oferecer, afinal já abriu a caixa e me deu a chave que abre as outras, todas as outras caixinhas misteriosas. Só que... voce tem sim o que oferecer, não para mim como eu mesma disse mas sim para as mocinhas, as tolinhas recém saídas dos cueiros, mocinhas como aquela tal Dama da Noite. Elas vão querer dar bom uso para esse sangue que corre em suas veias, para esse coração de Bruxa herdeira. E eu não posso me arriscar. É uma pena Eliza, você é tão bonita, loura e com esses olhos azuis poderia se casar e até ascender a nobreza. Mas... 

Então ela me empurrou,
O tranco foi tão forte  que
Vi tudo girar.
Senti o primeiro impacto,
Minhas costas bantendo 
Contra os degraus,
 O segundo impacto,
Meu quadril batendo 
Contra a quina de um deles,
E por fim... "Creck".

Fiquei em pé rapidamente
e olhei para cima,
mas a mulher ja não estava
mais lá.
Então olhei para baixo
e berrei de horror.
Encarei atonita meu corpo
na base da escada,
De bruços com
A cabeça virada para trás.
O som de "creck" que ouvi
Foi meu pescoço quebrando.
Eu estava ali em pé
Vendo meu cadaver no chão.
Eu que toda vida vi as almas,
Agora era uma delas.

💄 — Eliza... venha. 

Olhei para o lado e lá
Estava Dama da Noite
Com o rosto em uma
expressão de pura pena.

👱 — Eu... eu morri? Eu...
💄 — Sim meu bem. Venha comigo, vou ajudar você.
👱 — Mas... mas eu não vou para o céu? Quer dizer, eu sempre fui uma boa cristã...
💄 — Quando alguém humano toca em magia profunda, algo dentro de si se quebra, a natureza passa a não reconhecer mais a alma dessa pessoa. Não é permitida nossa entrada nem no céu nem no inferno, nem em nenhuma instância divina. Nós ficamos aqui, neste mundo.
👱 — Mas eu não fiz magia, eu não sei fazer isso...
💄 — Você rompeu o feitiço que matinha a caixa selada, e aquilo foi magia meu bem.
👱 — Não... não é justo...
💄 — Justiça não é um bem do qual as mulheres desfrutam nesse mundo. Vamos meu bem, eu vou lhe ajudar.

E ela me ajudou.
Me guiou pelos caminhos 
Desconhecidos
E me manteve lúcida.
Por muitas vezes estive
A beira de me tornar
um fantasma desgarrado,
O medo das sombras do abismo
Tentaram se apoderar de mim,
Mas ela segurou minha mão.
Dama da Noite me ensinou tudo.
Me contou os segredos das cartas,
Das estrelas e das fases da lua.
Me transformou em alguem
Como ela,
Uma Bruxa,
Ou como dizem agora
"Uma Pombagira".
Dama da Noite 
Me deu armas para lutar
e prosseguir.
Helena é a Dama da Noite original,
Ela é aquela que é dona 
Deste sagrado nome.
Mas ela me tornou também
uma Dama da Noite.
Me tornou família.
Alguns chamam isso
De falange, e dizem
que sou falangeira.
O termo se adequa sim,
Eu no âmbito dos espíritos
ainda sou Eliza,
Mas nos terreiros eu sou
Dama da Noite.
Porém nenhuma nós falangeiras
É como a primeira,
Ninguém é como
a verdadeira Dama da Noite.
Naquela noite ela não pôde
me salvar, 
Mas em muitas outras
ela me salvou.
Eu a amo e a respeito,
Eu sou dela.

A última vez que a vi foi 
Ontem mesmo, já amanhecendo,
Após ter passado a noite 
Incorporada em meu cavalo,
A festa acabou e eu ja ia indo
Embora, estava distraída
Ouvindo dentro de minha 
Mente o costumeiro som
"Creck", coisa que me 
Faz lembrar daquela noite.
Mas fiquei surpresa 
quando na entrada
do terreiro a vi parada fumando
Um cigarro.
Era linda, os cabelos negros 
Como petróleo caindo sobre 
As costas nuas do vestido 
Frente única. 
Ela me olhou sorrindo
Com os olhos.

💄 — Vai tudo bem Eliza? Como você está, meu bem? Faz dias que não a vejo.
👱 — Vai tudo bem minha querida. Ando trabalhando muito, sabe como é.
💄 — Mulheres desesperadas por homens, homens desesperados por dinheiro, mães querendo a liberdade dos filhos presos, doentes querendo cura e blábláblá blábláblá...
👱 — O de sempre. 
💄 — Deus sabe que nós somos santas Eliza, fazemos milagres.
👱 — Milagre de bruxa não é milagre, é obra do Satânica.

Nós duas demos risada
Do absurdo da coisa?

👱 — ️Vamos, Dama da Noite?
💄 — Vamos,.Dama da Noite.

De mãos dadas
Fomos embora para
O lugar dos espíritos,
A morada das moças
como nós.
Mas a qualquer hora
Voltamos para cá,
Basta chamar.





_

CONTO 3: PAINEIRA ROSA


💀👿👹💀👿👹💀👿👹💀👿👹
Na época eu era dono de uma
Taberna, a única ainda aberta 
Na estrada do Ouro a caminho
da Capital da colônia.
Era conhecido então por 
Joaquim Taberneiro.
Era mulato, então ter
Um negócio próprio era 
O ápice, o maximo que 
Alguém como eu poderia chegar.
Mas tudo que consegui na vida
Foi graças ao esforço conjunto
Com minha falecida esposa.

Porém é de outra mulher que
Vou falar agora.
Me lembro como se fosse hoje,
A taberna era pequena,
Só tinha oito mesas, 
Mas o movimento era bom,
Então contratei uma dupla 
De trovadores para cantar
Uma zuelas nas noites de
Sábado.
Foi em uma noite dessas
Que a vi pela primeira vez.
O lugar estava bem iluminado,
Acendi o dobro das velas habituais,
O povo todo aplaudia no
Ritmo da viola do trovador
Enquanto ele e o outro
Cantavam algo sobre 
Uma mulher que tinha matado
O marido porque ele não
gostava do gato dela,
Cantigas malucas
Que fazem o povo rir.
Eu estava no balcão secando
Algumas canecas quando
A vi parada no fundo do salão.
Era linda, parecia muito 
Uma dama dessas que se vê
Em pinturas,
Usava um vestido preto
E joias de prata,
Parecia ser rica e nobre,
Então estranhei, afinal
o que uma dama estaria
Fazendo naquela espelunca?
Eu era o dono, eu sei, mas
Tinha de admitir que 
O lugar era mesmo uma
Espelunca.
Ela passou boas horas
Ali parada, encostada
Na parede olhando os
Trovadores com ar de sonhadora.
Não percebi quando foi embora,
Ela simplesmente se foi
Antes do sol raiar.
A semana passou tranquila,
E no sabado seguinte 
Assim que os trovadores
Começaram a cantar
ela apareceu lá de novo.
Dessa vez fiquei de olho nela
E no fim da noite
Fui me apresentar,
De mansinho cheguei até
Ela e me curvei de modo galante.

🍺 —  Boas Noites senhorita, está gostando da música?

Ela me ignorou completamente.

🍺 — Desculpe se estou a lhe incomodar, sou o proprietário da casa e queria saber se há algo que posso fazer para que a senho...
🌹 — O senhor está a falar comigo? 

A olhei estranhando a pergunta.

🍺 — Sim dona moça, eu só vim...
🌹 — Pare já. Tudo o que as pessoas estão vendo é tu falar com a parede, elas não podem me ver. E para falar a verdade voce também não devia estar me vendo.

Olhei para ela desconcertado,
Achei que aquelas palavras
eram nada além de um
Passa-fora de uma dama
Que não queria ser importunada,
mas quando olhei
em volta percebi que muitos
dos clientes riam e cochichavam
Olhando pra mim.
Então percebi que aquilo
Tinha voltado a acontecer.
Aquilo que me refiro era
A questão de eu ver coisas
Que não deviam ser vistas.
Quando era menino
Via os espiritos dos escravos 
Mortos vagando pelas ruas
Em torno das fazendas.
Mamãe havia me levado
Na benzedeira e após um
Longo periodo de trabalhos
Feitos na minha cabeça
Eu parei de ver tais coisas
E tive paz, 
Mas agora estava acontecendo
De novo.
Virei as costas e fingi cambalear,
Mantive o olhar desfocado
Ate voltar para o balcão
e de propósito dei o troco errado
A alguns clientes,
Era melhor que pensassem
Que eu estava bêbado
A acharam que eu era louco.
No sábado seguinte a mulher
Apareceu lá de novo,
E no outro sábado, e depois 
No outro, até que meses
Já haviam se passado.

Na vida eu tinha um único
sonho, uma coisa que queria
Mais do que tudo,
E como era coisa espiritual
Achei que um espírito
Podia ajudar.
Então eu decido falar com
Ela novamente.
Passei entre os clientes
Com  a bandeja cheia
De canecos de cerveja na mão,
As canecas batiam umas nas
outras de tanto que eu tremia.
Quando estava bem perto
Dela cochichei:

🍺 — Queria falar com a senhora mais tarde, se for de se seu agrado. Peço que fique até os clientes irem embora.

Ela me olhou como se eu
Fosse um pedaço de 
Estrume de vaca, mas fez 
Isso, ficou até o fim.
La pelas quatro da matina
Fechei a casa, servi duas
Taças de vinho na melhor
mesa, apaguei todas velas
De sebo, elas fediam a toucinho,
Acendi na mesa a vela de 
Cera de abelha que eu tinha,
Convidei aquela a dama a sentar
Ali comigo.
Ela sentou encarou as taças
Com deboche.

🌹 — Pra quê isso? 

Ela passou os dedos pela taça,
Os finos dedos enfeitados com unhas
Longas pintadas de púrpura 
Atravessaram o vidro
Completamente intangível.

🍺 — Quando eu era menino, via as almas. Eu ja as vi tocando em coisas, comendo coisas. Sei que a senhora pode beber isso se quiser.

Ela sorriu novamente
com deboche na feição,
Apanhou a taça e bebeu
um gole do vinho 
Exatamente como uma mulher 
Viva faria.

🍺 — Qual o seu interesse na taberna? Porque vem aqui todo sábado?
🌹 — Gosto da música.
🍺 — Da música? 
🌹 — É. Meio século atrás, quando ainda havia sangue correndo em minhas veias... eu fui dona do maior Cabaré desta colônia. A parte que mais amava naquela inferninho era a música. Fazia tempo que não ouvia zuelas engraçadas como a que se canta nessa pocilga, por isso venho.
🍺 — Que interessante.
🌹 — Sei que sou muito bonita, mas você não me convidou só para contemplar minha beleza. O que você quer?

Suspirei fundo, 
Sabia que podia ser
Um erro.
Mamãe sempre dizia
Que o diabo dá com a
Mão direita e depois
Tira com a esquerda,
Mas fazia anos que eu
Estava desesperado.

🍺 — A senhora sendo uma...
🌹 — Uma morta?
🍺 — É, a senhora saberia como... eu queria poder rever... é que eu amo muito uma pessoa.
🌹 — Tatiana? 
🍺 — Como a senhora sabe o nome dela?
🌹 — Eu sei muitas coisas. Não sei como sei, mas sei. 
🍺 — Pode me ajudar? Eu queria ver ela de novo. 
🌹 — Ela morreu, não está mais no alcance de ninguém.
🍺 — Mas a senhora também morreu e...
🌹 — E fui condenada a vagar eternamente por esse chiqueiro chamado Terra, mas o peso que me condenou não condenou sua Tatiana. Ela foi para outro lugar, outro mundo.
🍺 — Não existe nenhuma maneira de alcançar a alma dela? Nenhuma... bruxaria? 
🌹 — Só a mais perversa e imunda bruxaria pode enlaçar uma alma no outro mundo e trazer para cá, mas eu não vou fazer isso. Você tem que se conformar.

Conversamos mais um pouco
Mas ela não quis me dizer
Mais nada sobre aquele assunto.
Porem me contou de outros,
Me falou que vagava sozinha 
Porque era odiada pelas suas iguais,
Que em vida havia sido muito má
E por isso na morte só o que havia
Era a solidão. 
Vagava pelas estradas, pela floresta,
Pelos bares e bordeis,
Mas que eu era a primeira pessoa
Que em decadas lhe dirigia 
A palavra de forma amistosa.

🍺 — E a senhora não sente remorso? Digo, por ter sido tão má?
🌹 — Eu não tenho uma gota de remorso. 
🍺 — Então porque sinto tristeza na sua conversa?
🌹 — Auto piedade. 
🍺 — Sente pena de si mesma mas não de todo o resto?
🌹 — Sim. Não me orgulho de ser assim, mas as pessoas são o que são. 

Sei que vai parece bizarrice
Mas eu me afeiçoei a ela,
Fiz amizade com o fanstasma.
Todos os sábados ela vinha
Ver os trovadores e depois ficava
Para batermos papo ate o sol
Raiar.
Isso durou anos. 

Um sábado, após eu fechar 
A taberna, sentei com ela
Na mesa, mas antes que
Pudéssemos começar a conversar,
Duas mulheres apareceram,
E quando eu digo apareceram
Eu me refiro a que em um 
Piscar de olhos a mesa
de quatro cadeiras estava lotada,
Eu diante de dona Quiteria
E as duas moças nos
Outros assentos.
A da direta tinha parte do
Rosto oculto por uma franja
E a da esquerda parecia
meio que bêbada,
Ambas vindas do nada.

🌹 — Ora essa, a que devo a honra?
🍺 — Hum... boas noites... quem...
🌹 — Essas são Rosa Caveira e Maria Farrapo, não perca seu tempo Joaquim, elas não tem modos.
 
As duas mulheres
Me ignoraram completamente.

🌹 — O que vocês querem? — Quiteria falou com elas com secura na voz.
💀 — Menina teve uma visão. Você sabe que ela pode ter premonições.
🌹 — Jura Rosa...E eu com isso?
🌙 — Deixe de empafia! Foi com você a visão. 
🌹 — E o que ela viu?
💀 — Uma mulher negra usando vestido branco, você, uma mulher albina, oito caixas de madeira de tamanhos irregulares, sensação de medo e perigo. 

Dona Quitéria lançou
A cabeça para trás e 
Gargalhou.

🌹 — Deixem de se intrometer, esse assunto não pertence a nenhuma de vocês. 
💀 — Não precisa dizer o que tem nas caixas, apenas diga que não nos fará mal. 
🌙 — E não minta, velha vadia, eu vou saber se mentir.
🌹 — As caixas guardam a magia mais perversa e imunda que já existiu nessa terra. No ouco do tronco da grande paineira rosa as margens da terra dos Xakriabá, protegidas com os encantos que impedem qualquer espírito de toca-las. Agora me deixem em paz, não há o que temer.

Em um piscar de olhos 
Estávamos só nós dois
Na mesa novamente.
Todos os dias seguintes
Eu fiquei perturbado,
Eu havia crescido na terra
Dos Xakriabá, e eu conhecia
Uma painera rosa, a maior
Árvore da mata.
Me lembrei de quando 
Ela disse que só uma magia
Perversa e imunda poderia
Me fazer ver minha esposa 
Novamente, e era a coisa
Que eu mais queria na vida.
Era sexta feira e eu acordei
Decidido,
Me muni de facão e machado,
Montei no cavalo e enfrentei
Seis horas de viagem,
Enfim me vi diante da árvore,
Era a rainha da floresta.
A paineira tinha mais de dez
Metros de altura e um tronco
Que seria necessário cinco 
Homens para abraçar,
Isso era muito anormal 
Pois essas árvores não 
Crescem tanto.
Mirei no tronco e dei
A primeira machadada,
Depois a segunda,
Trabalhei a tarde toda
Até que o buraco
era grande o suficiente,
E assim entrei.
O tronco era mesmo ouco,
Dentro achei as caixas,
Mas não eram oito e sim 
Apenas seis caixas
De mogno,
Quatro eram cupridas como
estojos de violino,
Uma grande e retangular
como um baú, e então
Uma pequena do tamanho
de um livro.
Tentei abrir as caixas mas 
Não consegui de modo algum,
Mesmo batendo com machado
Elas não abriam.
Carreguei o cavalo com elas
E fui saindo da mata, 
Mas assim que cheguei na 
Estrada ouvi uma gargalhada
Estridente, voz de mulher.
Sai na carreira e cheguei
Em casa já quase
Meia noite.
No sábado seguinte
Dona Quiteria veio de novo
E no fim da noite
A chamei para ir até meu
Quarto.
Quando ela entrou e viu
As caixas sobre a minha cama
Ficou paralisada, 
Olhava para elas sem se mover
E por muitos minutos
Se manteve assim.
Então de repente senti
uma dor lancinante no peito
E cai deitado no chão,
A camisa vermelha de sangue.
Olhei pra ela,
Dona Quitéria tinha o braço 
Erguido e entendi que havia
Rasgado meu peito com as unhas.

🌹 — Seu porco miserável! O que você fez?!
🍺 — E-eu achei... eu só quero ver a minha esposa, eu devolvo as caixas lá na arvore depois, eu juro! Por favor me ajude a ver ela, eu lhe imploro...

Ela não me respondeu,
Apenas ficou olhando para 
As caixas por quase 
Meia hora.
Tentei levantar várias vezes
mas não consegui.
Ela então começou a murmurar
Nomes de mulheres,
Entendi Padilha, Rosa Vermelha
e Sete Saias, mas os outros nomes
Não captei. 
Moças foram aparecendo no
Quarto, era muitas mas por
Alguma arte diabólica o lugar
Parecia ficar maior assim
mais mais uma chegava.

Uma mocinha pequenina
Deu um gritinho de susto quando
viu as caixas.
🌸 — Eu sabia! Eu sabia!
🎻 — Por Deus Quitéria, você disse que esses trecos estavam seguros.
🌹 — Padilha, eu não os retirei do lugar onde estavam e nem dei ordem para isso. Foi o porco que se meteu a besta. Agora se quiserem se defender, se não quiserem acabar como escravas, escondam essas caixas. Cada uma de vocês pegue uma e esconda, e eu preciso que alguém vá atrás de minha neta, ela pode ser usada pra...

Uma das mulheres, 
A que tinha a franja 
Cobrindo metade do rosto,
Percebeu que eu ouvia tudo,
Então olhou para mim,
Eu vi a meia face dela, 
Era lindíssima,
Mas então ela escancarou
A boca em um esgar de pavor
E o seu cabelo da franja
Se ergueu no ar
Revelando a outra metade
Do rosto.
Era osso, a outra metade era
Uma caveira!
Gritei de horror ao encarar
aquilo, era pavoroso, repugnante!
Algo nela me malejou,
Minha cabeça bateu contra
O piso, desfaleci.
Nao sei quanto tempo fiquei
Desacordado, mas quando
Recobrei a consciência
Cinco caixas haviam desaparecido,
Apenas a menor estava sobre 
A cama.
As moças tambem haviam partido,
Sobrando apenas dona Quitéria.

🌹 — Você queria tanto assim ver sua mulher?

Tentei me sentar mas o
Talho no peito doia demais
Então permaneci deitado.

🍺 — Sim. Eu a amo mais do que... mais do que a mim mesmo.
🌹 — Que mulher de sorte. Queria que alguém tivesse me amado assim algum dia.

Ela olhava para a caixa,
A face mergulhada em tristeza.
Então ouvimos alguém
gritar la fora, era a voz
Daquela moça mais jovem.
Quitéria olhou para a parede 
Como se pudesse ver através 
Dela, depois voltou a olhar para
A caixa, estava indecisa,
Mas se atirou na parede
e a atrevessou me deixando
sozinho no quarto.
Ouvi estalos, o teto estalava,
Olhei para as vigas do telhado
e rápida como um raio
Uma coisa branca desceu de lá,
Uma pessoa, ela desceu com
Tudo pisando no meu peito ferido,
Era uma negra vestida de noiva,
A saia esvoaçando na queda.

👹 — O nome da Neta, diga! Eu sei que você ouviu!

A mulher fincou o salto
de sua sandália no meu
Ferimento e pressionou.

🍺 — Aaaaa! Pare! Pare! Eu não sei!

Ela apertou mais forte,
Girou o calcanhar até 
Me fazer urrar de dor.

🍺 — Eliza! Eu só ouvi o nome Eliza!

Ela saiu de cima de mim
E apanhou a caixa sobre a cama,
Então veio perto e pisou
Na minha garganta.

👹 — Obrigado. Diga a sua amiguinha que eu não  vou perder essa chance. Ela vai me pagar, vou destruir ela. Diga isso a ela, e diga meu nome, eu sou Sete Catacumbas, tudo que ela fez comigo farei sete vezes pior com ela. A velha vai voltar, e o chicote vai estralar naquele rostinho.

Então ela apertou o pé, 
Meu rosto ficou vermelho,
O sapato sobre o meu pescoço
não me permitia respirar.
O quarto tremeu, os móveis
sairam do lugar com o impacto.
A tal Sete Catacumbas gritou:

👹 — Ela quer entrar aqui, mas meu feitiço é forte, quando ela romper ja terei partido.

Minha visão ficou vermelha,
Via tudo avermelhado,
E daí apaguei.
Quando acordei, me sentei no
Chão, não havia dor em meu
Peito. 
Dona Quiteria estava sentada
em minha cama.

🍺 — Onde está a mulher? A mulher de branco?
🌹 — Se foi. Levou a caixa. Meus Deuses... Joaquim você foi um tolo. Por conta de seu erro, sua intromissão, nunca mais verá Tatiana, nunca.
🍺 — Sim... fui tolo. Peço que me perdoe.
🌹 — Eu te perdôo, mas é você? Vai se perdoar? Perdeu a esposa para sempre.
🍺 — Não... sei que não a verei nessa vida. Mas quando eu morrer vou sim encontrar meu amor de novo.
🌹 — Quando morrer? 

Ela tampou a boca abafando 
Uma risada e apontou para o
Meu lado.
Olhei para onde ela apontava.
O corpo morto de um homem
Estava ali, a pele cinza, devia
Ter morrido a pelo menos duas
Ou tres horas.
O rosto dele era o meu.
Aquele corpo era o meu.

🌹 — Você já está morto Joaquim, e por morrido dentro de um feitiço, afinal aquela vaca enfeitiçou todo este cômodo para me impedir de entrar, isso lhe atingiu na alma. Você está impuro, e os impuros não vão para o céu. Acabou Joaquim, seu destino é ser como eu, um fantasma.

Não tive reação aquelas
palavras, apenas a encarei
Com o rosto inerte de emoção.

🌹 — Vamos seu grande idiota, se mexa.
🍺 — Estou morto?
🌹 — Mais morto que pau de velho. 
🍺 — E agora? O que eu faço? Pra onde vou?
🌹 — Venha comigo, eu sempre quis ter um servo, e agora tenho um.

Ela olhou novamente
Para meu rosto e dessa
Vez não segurou o riso,
Lançou a cabeça para trás
e gargalhou.





_

CONTO 4: ALUVAIÁ  


🌸🌛🌝🌜🌸🌛🌝🌜🌸🌛🌝🌜
Eu sou menino.
Sou menino mas não gente.
Bom, sou sim gente,
Mas não gente de carne e osso.
Sou espírito. 
Era de noite, e tudo que eu lhes
disser aconteceu de noite,
Pois de dia eu fico na preguiça,
É só de noite que fico esperto.
Ai que preguiiiiça...
Eu Ficava na porta terreiro 
Curiando a rua.
É eu sou espírito de macumba,
E eu gosto muito de macumbaria.
Uns acham rebaixado alguem
Feito eu gostar de ser de macumba,
Mas eu gosto mesmo.
Tava la curiando,
Então vi a sonsa vindo
La no fim da rua.
E ela tinha mesmo
uma cara de sonsa.
Era um espírito também,
Menina morta, desencarnada.
Era bonita a sonsa, 
Tinha cara de menina de 
Treze, quatorze anos,
Toda enfeitada de laço de fita,
A saia cor de rosa e um
Espartilho bem espremido
Pra juntar as gorduras pra cima
E fingir que tinha peito.
Eu fui galante, olhei aguçado
Pro peito dela, pra ela acreditar
Que eu acreditava que ali
Tinha peito,
Mas na verdade não tinha
Quase nada...
Ai que pobrezinha...
Ela veio e parou bem 
Na frente do terreiro.

🌸 — Boas Noites.
🐭 — Que é Rapariga? O que tem de bom?

Ela ja ficou toda ouriçada.

🌸 — Credo que grosseiria, tome vergonha filho de quenga! Só disse boa noite.
🌸 — E eu quem nem sabia que tu era a minha mãe.
🌸 — Vagabundo! Pitoco, nem tamanho tem.

Ri, achei graça dela.
Se soubesse quem eu era
Ela nunca que ia me 
Chamar assim, 
E por isso ri muito.

🐭 — Se avexe não que sou feito burro velho, dou coice de graça mesmo. Mas gosto de menina bonita. Diga lá, o que tu quer?
🌸 — Esse é o terreiro de Tia Cocota de Aluvaiá?
🐭 — Se é.
🌸 — Eu quero falar com ela.
🐭 — Qué é? 
🌸 — Tu que guarda a porta?
🐭 — Si é. Mas Tia não ta aqui não fia, ela ta na beira do rio da Serra.
🌸 — E onde é isso?
🐭 — Oxi, em Maraú todo mundo sabe.
🌸 — Não sou daqui.
🐭 — Bem vi. Qué que eu lhe leve?

E ela quis.
Fui com ela, fomos juntos 
Pela barra do mato seco.

🐭 — Diga lá sinhá, quem foi que lhe disse de Tia Cocota?
🌸 — Bicho-de-pé.
🐭 — O Mirim? É, é danado ele. Ainda existe ou ja virou bicho?
🌸 — Existe, mas acho que já é bicho.

Ela riu, e eu ri junto.
Cheguemos lá, era numa
Prainha deserta na beira 
Do rio, os macumbeiros 
Tudo numa roda, 
A praia iluminada por uma
Fogueira.
Os tabaqueiros doidos
No tabaque, tamborzada
Bem forte, num sabe?
Samba de Angola que
Eles chamam o toque.
Bom dizer que a Macumba
De Tia Cocota não era feito
Essas macumbas bestas que
O povo faz só pra agrado
De Macumbeiro, não,
A Macumba de Tia era séria
E muito, muito pesada.
Lá nao tinha lero-lero de 
Baixar santo toda hora
Em todo mundo, 
Ficar vestindo santo 
Com fantasia, não senhor,
Lá Baixa um de vez em quando,
Quase sempre Bamburucema
Ou o proprio Aluvaiá.
Na frente da fogueira
sentada num apotí tava
A véia, e Tia Cocota era
Mesmo véia,
As costas já redonda
De tão curvada,
Tava lá toda de branco.
Tia Cocota tinha sido escrava,
Fora liberta após a famíla
toda do patrão ter morrido
De acidente.
O patrão tinha era medo
de Tia, então deu-lhe alforria,
Então ela se fez mãe de santo
Lá em Maraú.
A Menina olhou ressabiada.

🌸 — Eu posso chegar lá nela? Ela vai me ver?
🐭 — A véia Macumbeira vê tudo fia.

Então a Menina foi, 
E eu fui atrás,
Gosto de fofoca
Então fui curiar.

🌸 — Tia Cocota?

A véia olhou pra ela.

👵🏿 — Queeee? Quem é?
🐭 — Ô véia, é uma rapariga, num ta vendo.
👵🏿 — Aié... e é morta a bichinha...que é?
🌸 — Tia, Bicho-de-pé me disse que a senhora é que tem posse da caixa de Tata Mulambo.
👵🏿 — Aié? Eu tenho?
🐭 — Ô lazarenta, tem sim! É aquele troço que a bruxa do cabelo branco deu de pagamento pra aquele trabalho lá.
👵🏿 — Aié... tenho sim. Ocê qué a caixa?
🌸 — Quero sim dona moça.
👵🏿 — Ieu guardo a caixa, mas num é minha não, ela é do Aluvaiá. Tem de pedi pra ele.
🌸 — E onde eu posso falar com ele?
👵🏿 — Ó ele ai ó.

E a veia apontou pra mim.
E eu ri da cara da Menina,
Ri porque ela arregalou os zói
Na hora que eu ali na frente
Dela deixei de ser menino
E cresci e cresci e cresci,
Virei um homem grande
de peito largo, muque forte
E canela grossa,
Preto como um carvão,
Porque gosto muito de ser preto
E agitado feito um siri na lata.
Eu sou o que se chama Nkisi,
Que é nome que vocês ai
Nunca que conseguiram falar
Direito, mas eu sou isso mesmo,
E sendo isso eu posso ser tudo
Pois ser isso é ser um Deus.
A molecota me olhou dos
Pés a cabeça, assustadissima,
E também meio assanhada
porque o que tinha de miúda
Tinha de safada sem vergonha.

🌸 — Ah... o senhor que é Aluvaiá então. O senhor me desculpe viu se fui meio rude, não sabia. E eu não sei lhe saudar na lingua de seu povo, mas garanto que lhe tenho muito respeito.

👺 — Não sabia é?
🌸 — Não senhor.
👺 — Sonsa... hihihi... 
🌸 — O senhor é o Diabo?
👺 — Não sou assim de natureza, não nasci Diabo e pra bem dizer só ouvi esse nome faz pouco tempo. É os brancos que acham que sou, eles tem uma fé muito fraca, então tudo pra eles é Diabo.
🌸 — Verdade. Tata Mulambo disse que o senhor é que deu o nome pra ela, o nome "Tata", e que era nome de feitiço, deixou ela forte. Pra derrubar ela foi muito duro sabe, e ela disse que foi por conta do nome.
👺 — Um nome forte pra um espírito é como espada de dois gumes na mão de guerreiro. Mas eu não dei o nome pra ela, eu vendi. Não faço caridade, faço negócio.
🌸 — E neste negócio, em troca do nome ela lhe deu a caixa? Foi este o pagamento?
👺 — Não só isso, mas tinha isso também. Tu queres a minha caixa?
🌸 — O senhor tem serventia pra ela?
👺 — Nenhuma. Tá la no terreiro, uso de apotí.
🌸 — Mas se não teve serventia, porque motivo a aceitou como pagamento?
👺 — Na hora pareceu valiosa. E é valiosa, só que não pra mim.
🌸 — Então... pode me dar?

A sonsa pôs as mãos
na cinturinha e sorriu
Assim com a boca bem
Achatada
E olhou pra cima, 
Pois pra me olhar nos
Olhos ela tinha de levantar
Bem a cabeça, era muito miúda
A pobrezinha.
Mas o que tinha de miuda
Tinha de sonsa, achou
Que eu ia lhe dar o treco
Só pela boniteza dela.

👺 — Posso dar. 
🌸 — Ai que graça!
👺 — Mas não vou dar! Hihihi...
🌸 — Ai não faz assim que eu choro...

E ela fez beicinho.
Ai eu tive de dar uma
Gargalhada da palhaçada
daquela uma.

👺 — Quem não chora não mama, mas comigo tudo é negócio, tudo é na base de escambo
🌸 — E o quer em troca?
👺 — Hum...

Olhei em volta,
O povo tava na expectativa,
O tambor batia alto na
Chamada de algo do além,
Fazia era meio ano
Que não vinha Santo na
Mão de Tia Cocota
E eu não queria deixar
A véia desmoralizada.

👺 — Hoje é dia de festa, então quero uma bagunça. Tem medo de apostar comigo moça?
🌸 — Não tenho medo de nada não.

Mas ela era mentirosa,
Eu sabia que ela tava
Era se borrando de medo.

👺 — Faz assim, se tu ganhar a aposta eu lhe dou a Caixa e tu vai em paz.
🌸 — Se eu perder?
👺 — Eu lhe engulo.

A menina se tremeu toda.
Ela sabia que não era força
de expressão, eu engolia sim,
Engolia, devorava e dissolvia
Qualquer espírito.
É essa a vantagem de ser um Deus.

O vento carregou pra perto de nós
a voz de duas outras mulheres,
Espíritos mortos como ela
Que deviam estar por ali perto
Curiando.
Uma, que hoje sei que era Padilha,
Disse:
🌹 — Recue Menina, recuperamos a caixa por outros meios.
E uma outra voz, que hoje sei
Que era de Quitéria, disse:
🌷 — A pior coisa é a covardia... vai correr pra barra da saia de Padilha é? 

👺 — Hum... Uma quer lhe salvar, a outra lhe ver na berlinda. São suas amigas decidem por ti?

A menina me olhou feio.

🌸 — Só eu que me mando. Vou topar, mas se é assim eu acho a caixa um premio muito pouco. Não vou arriscar deixar de existir só por ela.
👺 — Vejo... quer um nome também não é?
🌸 — É.
👺 — Se é por isso, não se apoquente, lhe dou.
🌸 — Mas não qualquer nome, eu quero o SEU nome. 
👺 — Arretaaada! 

Gargalhei, era muito ousada
Aquela uma.

🌸 — Aceita?
👺 — Se tiver meu nome tu vai é ser eterna.
🌸 — Aceita ou não aceita? 
👺 — Simbora. 

Então fiz a aposta com ela,
E o negócio da aposta é
O que no meio dos espíritos
chamamos de "peito de aço".
Cada um nós iria montar
Em um cavalo e este cavalo
teria de passar por testes
sem sentir nada.
De imediato entrei pra dentro
de Tia Cocota, me fiz nela,
Incorporei nela.
A Menina buscou na multidão
E achou ali um rapazinho
Que era dotado de mediunidade,
Então entrou dentro dele.

Eu na véia, ela no rapaz,
Fomos então pra frente da 
Fogueira.
O Ogan mais velho veio
E com um atiçador tirou
De dentro do fogo duas brasas,
Deu uma na mão da véia,
Outra na mão no rapaz.
Segurei, e Menina segurou também.
O Tambor comeu solto,
E o povo em volta cantando
A pleno pulmão:

"Singangue bandaiô, bandaiô lepê Bombogirê, Singangue bandaiô, bandaiô lepê Bombogirá!"

Eu gingava ali no corpo 
Da véia, a véia dançava
feito uma boneca de pano,
E o moleque que Menina 
Montava requebrava os quartos
feito moça, tudo a mando dela.
Abri mão e deixei a brasa cair,
A palma da mão da véia tava
Lisa, nada de queimado.
A Menina fez o mesmo
E a mão do rapaz tava lá
Um pouco vermelha mas
Queimada não tava.
Ri pra ela:

👺 — Certo moça, essa tu passou.

Ela nada disse.
O Ogan veio e jogou na areia da 
Praia o conteudo de caixote,
Era uns dez quilo de caco 
De vidro, garrafa quebrada.
O povo cantando:

"Ê Mavile Mavambo, kuria ke kopenso ê! Ha! Ha! Ha! Kuria ke kopenso ê!"

Saltei pra cima do vidro
e fiz a Tia Cocota sambar
Em cima dos cacos.
Menina fez o rapaz saltar 
No vidro tambem, 
E ficamos os dois ali
Sambando, os pés
Quebrando mais ainda
Os cacos pontudos.
Demorei-me lá, só saí
Quando o vidro ja tava fofo
Na areia, então fiz a véia 
Tombar de costas na areia,
Levantando as pernas
Chamei o Ogan pra examinar.
Nenhum corte, nenhuma marca
Na sola dos pés.
Menina fez igual,
O pé do rapaz tinha lá umas 
Marquinhas de afundado,
Mas não tinha corte nem sangue.

👺 — Ê desgraçada! Passou de novo!
🌸 — Me subestima? Vai tomar na cara.

Ri da ousadia dela.
O Ogan trouxe um facão,
Um bem amolado de 
Cortar cana.
Peguei na lamina, 
Ela pegou também.
O povo se animou muito,
Os tabaqueiros batiam 
No frenesi, o povo
Nunca que tinha visto
Uma disputa daquelas!
Cantavam pra ferver mais:

"Tabalá si mê no tabalá dê! Tabalá si mê no tabalá dê! Aê Hoxí! É no tabalá dê aê Hoxi!"

Era um cabo de guerra,
Eu puxava, ela puxava,
As mãos dos dois cavalo
Grudadas na lâmina,
Se rolasse um fio de sangue
Era derrota.
Mas não rolou sangue nem
De cá nem de lá.
Soltamos o facão, examinaram
As mãos dos cavalos,
Nem sombra de corte 
Nem na véia, nem no rapaz.

👺 — Braba!

E ela riu.
Então veio o último teste,
O Ogan trouxe um canudo
Cheio de pólvora de por
em garrucha, matade foi 
Na boca da véia, metade
Na boca do rapaz.
O povo se aproximou, 
Deram as mãos pra receber
Aquele Axé, e nisso
Fecharam roda,
Os dois cavalos no meio
E o povo cantando agora 
Quase que gritando:

"Kanindé Tata Kimbanda é Já Minajô! Ai ai Já Minajô! Kayango Kapânzo, Já Minajô! Ai ai Já Minajô!"

Olhei pro rapaz que era a Menina,
O rapaz olhou pra Véia que era eu.
Vi no fundo do olho do rapaz 
O olho dela, e ela tinha medo.
Penso eu que não tinha a certeza
Se ia segurar a marimba.
Mas sabia que dar pra trás 
Era já saber que ia ser engolida,
Então com as boca lotadas de 
Polvora nos batemos os dentes.
A pólvora explodiu, e o fogaréu
Que saiu das duas bocas foi tanto
Que até o povo se espantou 
E correu pra longe.
A véia e o rapaz pareciam
Dragão!
Assim que o fogo apagou 
O Ogan veio com a moringa,
Lavou a boca da véia, 
Examinou, tava inteira,
Lavou a boca do rapaz
E a dele... também inteira.
Saí da véia, sai dando 
Gargalhada, tava era
Muito admirado do talento 
Daquela moça.
Ela também saiu do rapaz,
Mas não tava boa, 
Saiu dele toda se tremendo
e com uma cara branca
Feito dentro de mandioca.

👺 — Tu venceste Menina! 
🌸 — É claro... aff... nunca tive dúvida... aff... que conseguia...

Fui pra perto dela e
A pegando pelos ombros 
A aprumei em pé.

👺 —  A Caixa tu vai achar no Terreiro da Véia, dentro do quarto de Matamba, eu vou lhe dar permissão de entrar lá uma única vez, entre e pegue.
🌸 — Obrigada, mas e o nome?
👺 — Mas é braba mesmo heim!
🌸 — Se prometeu dar, tem de dar.
👺 — Pois bem, tenho eu seis nomes, qual tu quer? 
🌸 — Vá dizendo.
👺 — Aluvaiá.
🌸 — Não gosto.
👺 — Maviletango.
🌸 — Não, parece dança espanhola.
👺 — Mavambo.
🌸 — Não não.
👺 — Nzila.
🌸 — Não.
👺 — Vanjira.
🌸 — Bonito. Qual o último?
👺 — Pombojira.

Os olhos da Menina brilharam.

🌸 — Que quer dizer esse nome?
👺 — Vem de Pambu Njila, que é "Senhor das Encruzilhadas" na língua de minha gente.
🌸 — Eu quero esse, é bonito por demais.
👺 — Eu tenho palavra, se prometi lhe dar um nome, então esse é seu. Gostou, Pombogira Menina? A partir de hoje tu é dona deste meu nome, lhe dou emprestado sem data pra devolver, é seu pra sempre.

Quando lhe disse o nome
As forças delas se renovaram,
E não precisou de mim
Para mante-la em pé.

🌸 — Gostei. 
👺 — Pois se vá Pombogira Menina, vá buscar sua caixa e depois vá fazer suas zuadas por ai.

Ela ficou na ponta dos pés,
E eu ainda tive de me curvar
Pra miuda ter como me beijar,
Ela me deu um beijo na bochecha
E fez menção de ir embora,
Mas antes parou e virou para
Me olhar no rosto.

🌸 — Seu Aluvaiá, se eu lhe fizer uma pergunta a meu respeito, o senhor cobra pra responder?
👺 — Hum... cobro mais um beijinho na outra bochecha.

Ela riu, a sonsa era risonha.

🌸 — As minhas amigas, as que são iguais a mim, elas eram bruxas quando vivas, por isso morreram e continuaram presas a esse mundo. Mas eu não era. Eu morri com quatorze anos, nunca sequer acendi uma vela que nao fosse pra Nossa Senhora, mas eu também estou presa como elas, e eu... 
👺 — Você tem dons que elas não tem, não é?
🌸 — Sim, as vezes eu vejo o futuro, vejo coisas que nem sei o que são, tenho conhecimentos que não sei onde aprendi.

Suspirei.
Outra vantagem de ser um Deus
É saber de coisas que estão
Ocultas.
Então disse o que me veio
Na hora:

👺 — Quitéria faz mal a você Menina. É culpa dela você estar presa. Seus dons... bom, toda essa questão é envolvida com Quitéria. 
🌸 — Parece que tudo de mal vem dessa mulher.
👺 — Ninguém é totalmente mal, na trevas sempre existe luz. Respondi sua pergunta?

Ela acenou com a cabeça,
Veio e me deu outro beijinho,
Depois saiu correndo na direção
do Terreiro de Tia Cocota
Onde pegou a tal caixa 
E se foi.

Aquela noite foi por muito
tempo um de meus maiores
Motivos de remorso.
Devia ter engolido ela,
A aniquilado.
Digo isso pois um século 
Depois ela foi a causadora
De algo... horrendo
Nas terras da Imperatriz
Teresa Cristina.
Naquela noite da aposta
Tudo o que vi nela foi
A sombra de Quitéria,
E disse a ela que o mal
Era esse,
Mas me enganei.
Nem eu que sou Deus
Sou imune a erro, num sabe?
A verdade é que
O mal não era Quitéria.
Eu podia ter evitado
Toda a desgraça
Se tivesse prestado atenção,
Mas na minha besteira
De desmerecer e subestimar
Os espíritos humanos 
Deixei passar,
E inclusive a fortaleci
Dando-lhe meu nome.
Quem via aquela Menina
Bonita e delicada
Jamais desconfiaria
O que ela realmente era
E do que seria capaz.





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CONTO 5: UM MAUSOLÉU

💀🍷💋💀🍷💋💀💋🍷💀💋🍷
Na ilha de Vitória todos 
Sabiam que eu era rezadeira,
Benzedeira e feiticeira.
É bem verdade que a inquisição
Estava em vigor ainda
neste fim de mundo,
Mas eu tinha atendido
a senhora esposa do
Marquês do Lavradio,
Fiz-lhe lá uns trabalhos,
E a coisa deu certo,
E ela que era devota de 
Qualquer arte diabólica
Pediu ao marido para me
Deixar em paz,
Então a lei fazia vista grossa
Para minha fama de
Bruxa.
De fato se vocês perguntassem
Em qualquer Estância 
Da Capital sobre uma
Mulher de nome 
Jocasta Terramoto Alviz ,
Eles diriam imediatamente
"É bruxa"
Prazer, Jocasta sou eu.

Era quatro e meia da manhã 
Quando acordei sentindo
os arrepios danados na espinha,
Levantei-me da cama
E desci para o porão,
Pois ja sabia que tinha visita.
Sim, ela estava lá, sentada 
Em cima caldeira acesa.
Ela nao se queimava pois
Era uma aparição dos infernos,
Uma morta, viva só em alma.
Gostava dela, a conhecia desde
De jovenzinha,
Pois era um espírito morto 
A muito tempo em uma mansão
lá pros lados ricos da capital
E que eu via desde que vim
De Vitória para cá.
Cheguei perto, acendi
Uma vela no fogo da caldeira
Para amanar um pouco
A escuridão e
Então a cumprimentei.

👵🏼 — Boas noites, ou melhor, bons dias Rosa Caveira.

Ela era meio a meio.
Sabe o que quero dizer,
Era meio bela meio feia,
Estava lá toda de púrpura,
Parecia uma flor de hortênsia.
Balançou aqueles cabelos 
Vermelhos cor de vinho,
A cabeleireira se agitou
Tirando a longa franja da
Posição, assim mostrando 
A metade da fuça que
Era de osso branco,
Crânio de esqueleto.

💀 — Não gosto de dar bom dia, então ficamos no boa noite mesmo.

Ri disso,
Mas mesmo tendo
Ouvido mil vezes a voz
Afinada e sensual dela,
Ainda assim me admirei
Ao ouvir novamente.

👵🏼 — Pra senhora vir assim sem avisar...
💀 — Tudo que vai volta.
👵🏼 — Que quer dizer?
💀 — Lhe ajudei muitas vezes nos últimos trinta anos, e agora é tu que vai me ajudar.
👵🏼 — Precisa passar na cara não, é só falar o que quer, eu faço.

Ela apontou para a mesa
No canto do comodo,
Ali sobre ela havia uma
Caixa de madeira mais
Ou menos do tamanho 
De um estojo de violino.

💀 — Guarde isso pra mim. Tem um outro espírito querendo pegar isso, não quero que pegue. Mantenha escondido.
👵🏼 — Que espírito?
💀 — Não sei dizer.
👵🏼 — Ah sabe sim, mas aposto que não quer dizer... Pois bem. Mas o que tem nessa caixa?
💀 — Nada que seja do seu bico. 
👵🏼 — Não posso abrir a caixa? 
💀 — Pode tentar, ela foi enfeitiçada pra não abrir, mas se quiser tentar... tente. 
👵🏼 — Mas quem...
💀 — Guarde ela, venho buscar em breve.

E Rosa sumiu,
Se foi sem nem falar
Um adeus.
Era mais seca que 
Pedra pome
Me deixou confusa, 
Eu não tinha informação
nenhuma mas fiz 
O que ela pediu,
Peguei a caixa e enfiei
Em baixo da mesa.
O tempo passou, uns três 
Ou quatro meses,
E uma manhã recebi
A encomenda de fazer
Uma poção de "Maria-Dormideira",
Quem é do ramo sabe
Bem o que é.
Desci lá no porão
e sentei a mesa, 
Comecei a bater em
Meu pilãozinho de bronze
Folhas de assa-peixe
Com suco de limão-cravo
Que é mistura muito poderosa
Macerava e cantava,
Cantava sim, cantos de 
Minha gente.
Acrescentei um tico de 
Sangue de porco do mato
E misturei.
Então de repente olhei para
Dentro do pilãozinho
Vi que a poção brilhava
em uma cor verde fosforescente.
Enfiei o dedo no luquido
E dei uma lambida de leve,
E foi de imediato, parei de sentir
A boca toda, tudo ficou 
Dormente.
Não era pra ser assim,
A poção era fraca,
Um frasco todo fazia
A pessoa dormir, então
Como um só lambida
Na ponta do dedo
incapacitou minha boca?
Não era normal, 
Eu não era poderosa assim.
Fechei os olhos pra me 
Concentrar e encontrar
De onde tinha vindo 
Tamanha força
aquilo veio de baixo,
Então Tateei o pé direito 
E vi que estava com ele
Apoiado sobre a tal caixa.
Achei curioso.
Larguei a poção e peguei
Meu baralho de tarô,
Tirei o pé de cima da caixa
E abri a cartas na mesa,
Vi um jogo complexo,
Como o habitual onde
Havia a necessidade de 
Se ler as cartas com muita
Atenção.
Recolhi o jogo, coloquei
o pé sobre a caixa e abrir
as cartas novamente,
E voilà!
Li as cartas com uma
Clareza que nunca tinha
Tido antes.
Era a caixa, aquela caixa
Emanava um poder enorme.
Peguei ela e tentei abrir 
Mas não dava jeito, 
Estava com a fechadura selada.
Levei a caixa para o andar
De cima e a coloquei
em baixo da mesa da sala
Onde atendia os clientes.
Foi certeiro, tudo que eu fazia,
Não importava a complexidade,
Feitiços dos mais dificeis e
Antigos, dos quais nunca tive
Talento para realizar, 
Agora tocando a caixa 
ao faze-los eu tinha resultados
extraordinários.
Nisso o dinheiro começou a 
Entrar, os clientes vinham
aos montes.
Trazer a pessoa amada em
Três dias? Eu trazia.
Conseguir tirar filho da cadeia?
Eu tirava.
Desfazer casamento?
Eu desfazia.
Tudo que me propunha a fazer
Dava cem por cento certo,
Tudo com resultado rapido.
O povo que era freguês
De minhas demandas se 
Admirou muito pois
Agora tudo que me pagavam
A fazer eu garantia que
Ia acontecer.
Eu estava feliz, realizada,
Finalmente a vida estava
Se encaminhando a ser como
Eu queria que fosse,
Eu havia me tornado
Fantástica.

Seis meses se passaram.
Era madrugada de uma
Quarta feira. Acordei as
Quatro e meia da manhã,
Despertei sentindo arrepios 
Na espinha.
Gelei.
Sim, eu ja sabia, era ela.
Levantei-me da cama
E desci para o porão,
E ela estava lá em baixo, 
Sentada em cima caldeira.

👵🏼 — Boa noite dona Rosa.
💀 — Me dê a caixa.
👵🏼 — Nossa nem vai cuprimentar?
💀 — Olá. A caixa.

Eu não queria entregar.
Se eu desse assim de bandeja
Iria retornar a mediocridade
de sempre, e após se provar
De vinho bom ninguém
quer beber vinagre novamente.

💀 — Que é? Acha que não sei que tem usado a caixa? Usado a força que vem dela? Eu sei Jocasta.
👵🏼 — Então... então me deixe ficar com ela.
💀 — Não.
👵🏼 — Mas eu preciso dela.
💀 — E eu me importo? Me dê a caixa.
👵🏼 — Sim... mas... Rosa, será que eu poderia passar mais um dia com ela? Só mais um dia. Em nome de nossa velha amizade eu lhe peço. Acho que consigo captar um pouco da força dela pra mim, faço isso em algumas horas. Por favor... amanhã nesta mesma hora a caixa estará sobre aquela mesma mesa.

Ela me olhou desconfiada.

💀 — Tudo bem, faça o que quiser. Amanhã voltarei.

E ela desapareceu ali diante
de meus olhos.

Rápido comecei a pensar,
Tinha de ter um plano,
Eu não tinha a menor intenção
de entregar a caixa.
Então a ideia veio na mente,
Uma ideia das mais estapafúrdias
Mas era a melhor que eu tinha.
Matei um galo vermelho
E aparei o sangue em 
Uma tigela, 
Peguei uma vara longa
E desci ao porão,
Coloquei a caixa no chão 
No meio do comodo e 
Subi descalça sobre ela,
Molhei a ponta da vara 
No sangue e tracei um círculo
a minha volta, desenhei
Simbolos antigos e amaldiçoados
Dentro dele,
Então cobri aquilo com
Um tapete velho.
Coloquei a caixa sobre
A mesa e esperei.
O dia raiou, veio o sol,
Veio a manhã, a tarde
A noite e a madrugada.
Eu estava sentada em uma
Cadeira torta, ja os olhos
pesados de sono.
Mas quatro e meia da 
Matina ouvi aquela voz.

💀 — Muito bem, agora me entregue ela.

Me virei devagarinho e sorri,
Ela estava lá, sentada sobre
A caldeira.

👵🏼 — Ola querida, sim.
💀 — Fez o que precisava?
👵🏼 — Eu tentei muitas coisas mas não consegui pegar nada da energia da caixa. Nem dormi, estou virada. Venha, pode pegar. 

Saltou de cima da caldeira
E deu dois passos para frente,
E no terceiro passo ela foi puxada
Com tanta força que seus 
Cabelos revoaram.
Caiu deitada no assoalho.

💀 — O quê? O quê é isso?!

Levantei e puxei o tapete 
Com toda a força.
Rosa olhou para o chão 
Abismada para o círculo
traçado no piso.

💀 — Você me prendeu? Me prendeu?
👵🏼 — Um círculo desses não seria forte o suficiente para te prender, mas com o auxílio da caixa... do poder que vem dela... ah Rosa... você não vai sair dai nunca.

Peguei a caixa, dei uma
Última olhada para ela,
Estava caida ali, impotente.
Ri e subi.
Tranquei o porão
e continuei a vida
como se nada houvesse 
Acontecido.
As vezes descia là para pegar
Algum ingrediente para
meus trabalhos, 
Rosa permanecia no chão
Sentada no meio do circulo.
Não falava nada, mas me
Encarava com uma expressão
Vazia.
Passaram-se tres semanas.
Em uma noite acordei com
barulhos na casa.
Rapidamente me enrolei no
Roupão e desci ao porão,
Imaginava que Rosa estava
Tentando escapar.
Abri a porta e desci a escada,
E o que vi lá foi assustador.
Haviam quatro criaturas là,
Eram todos espíritos com Rosa,
Todos com o corpo de esqueleto.
Os três mais altos estavam
Agachados em volta do círculo,
Um usava paletó preto e 
Cartola na cabeça,
Outro usava um fraque purpura,
O outro uma capa preta com capuz.
Os tres batiam os dedos de osso
Em pontos da linha do circulo,
A ponta dos dedos deles 
Queimavam o assoalho,
O cheiro de madeira queimando
Estava em todo o comodo,
E se queimassem a borda do
Círculo iam libertar ela.
O quarto espírito esqueleto
Era pequeno, do tamanho
de uma criança de sete anos,
Usava lá um terninho Branco,
E assim que me viu disse:

👻 — Ai ai dona moça... que erro...
👵🏼 — Quem são vocês? 
👻 — Eu sou Caveirinha. Não é meu nome de verdade, mas João mandou eu não dizer meu nome de batismo a ninguém.

Então o tal Caveirinha
bateu os ossos do maxilar
Repetidas vezes em um
"Tec-tec-tec-tec-tec-tec"
Assustador, e eu entendi que
Aquilo era o modo dele rir.

👻 — Aqueles ali são os manos, Caveira é só Caveira que chama, mas os outros são Tata e João. A senhora, dona moça, achou mesmo que ninguém ia dar falta de nossa mana Rosa? Ela morta, isso é, mas tem família. 

Então minha atenção 
Foi levada para cena
Logo atras, pois ouvi
Um som de estalo e 
Percebi que o círculo havia sido
rompido.
Engoli em seco,
Rosa se ergueu e deu um passo 
Para fora dele.
Um dos esqueletos adultos 
Falou com ela.

🎩 — Rosa, quer ajuda?

Ela fez que não com a cabeça.

👻 — Então vamos embora, e que deus tenha piedade de ti dona moça. Rosa é boa gente, todos sabem que é, mas... as vezes ela fica ruinzinha sabe... e nem nós que somos manos dela gostamos de ver ela assim. 

Esse pequeno olhou para Rosa:
👻 — Seja boazinha, sim?

E então os quatro desapareceram 
Em um piscar de olhos,
mas Rosa ficou lá me encarando.
Tive medo, mais medo
Agora do que quando os
Esqueletos estavam lá.

👵🏼 — Olhe Rosa, vamos conversar, eu sei que o que fiz...

Ela abriu a boca, 
Escancarando o maxilar
e emitiu um som tão agudo
Que tive de tampar os ouvidos
Com as mãos,
Cai ali na escada me 
Encolhendo de pavor,
Os vidros da janela e 
Os frascos das prateleiras
Se explodiam, cacos voavam
Por todos os lados.
Eu não sabia que ela era
Capaz de fazer essas coisas,
Então juntei forças, 
Fiquei em pé e corri
Para fora do porão,
La em cima na sala
eu corri até a mesa de 
Atendimento e tentei
pegar a caixa que estava
Em baixo dela,
Me abaixei para pegar 
Mas assim que meus dedos
Tocaram a caixa
Senti um puxão na nuca,
Rosa puxou meus cabelos
com tanta força que
Voei para trás,
Batendo as costas na parede.
Todo ar saiu dos meus pulmões,
Me senti tonta.
Olhei para cima, Rosa estava
a menos de um metro de mim,
E então a vi mudar, 
Seu vestido púrpura perdeu a cor,
Tudo ficou meio prata,
Os cabelos dele revoavam mesmo
Sem haver vento na sala,
E então a metade humana de 
Seu Rosto foi se tornando 
Caveira também, toda a sua
Face era um crânio.

👵🏼 — Por Deus Rosa, eu posso me redimir contigo, juro que posso!

Mas ela não me ouviu.
Puxou meus cabelos de novo
E como se eu fosse uma
Boneca de pano ela foi me 
Arrastando pelos cabelos,
Abriu a porta e me jogou para
Fora.
Bati em uma lápide de mármore.
Olhei em volta e fiquei pasma,
Estava agora em um cemitério.
Não haviam cemitérios no meu
Bairro, então... como eu podia
Estar ali? 
Meu corpo se elevou no ar,
Flutuando a um palmo do chão
Eu fui levada até uma casinha,
Um mausoléu no meio
Do cemitério.
Rosa estava lá, sentada 
De pernas cruzadas em cima
De um túmulo de pedra.

💀 — Tu iria me manter presa por causa disso? 

Ela mostrou a caixa que
Tinha no braço direito.
Eu ainda ali flutuando
Gritei:

👵🏼 — Me perdoe! Me perdoe! Fiquei deslumbrada! Foi só isso, me perdoe!
💀 — Ninguém vai me prender, nunca mais.

Ela ergueu a mão esquerda
e com o dedo indicador
fez um movimento circular.
Meu corpo começou a girar 
Pelo mausoléu, 
Girava batendo nas paredes,
Nas estátuas, no chão.
Não falava nada, eu berrava
A plenos pulmões, 
Clamava pela misericórdia.
Meu corpo girava
Com tanta velocidade
E batia com tanta violência
Que comecei a ver flashs
De coisas vermelhas sendo
Arremessadas. 
Então entendi que aquilo era
A minha carne.
Quando parei de gritar
Cai no chão com um som
De estalo.
As paredes do mausoléu estavam
Tingidas com o vermelho
da minha carne e meu sangue.
Olhei para minhas mãos 
Eram apenas ossos,
tateei meu rosto e o som
De estalos dos dedos de osso
Tocando em meu crânio 
Me desesperou tanto
Que só o que podia fazer 
Era gritar.
Até a voz eu não tinha mais,
O que tinha era um esgar rouco
Saindo por entre os ossos 
Das costelas.

Rosa caminhou até a porta 
Do mausoléu cantando.
Quando estava no batente
Olhou para trás:

💀 — Você gosta de aprisonar, não é? Bom, aproveite então.
👵🏼 — Não! Não Rosa! Não me prenda aqui!
💀 — Se minha família não tivesse vindo me soltar, por quando tempo eu teria ficado presa naquele porão? Por uma decada? Ou provavelmente você me deixaria lá para sempre? Tudo que vai volta Jocasta.
👵🏼 — Eu ia te soltar! Eu juro!
💀 — Quem jura, mente. Eu vejo através de você, e não vejo nada de bom.

Ela fechou as portas e
Partiu.
A música que ela cantou
Ficou na minha mente.
Com o tempo eu comecei
a conseguir a me mover
com mais destreza.
Pelas tres semanas seguintes
Fiquei ali cantando, 
Tentando abrir a porta.
Um dia eu consegui abrir uma
Frestinha, vi la fora a lua.
Então uma mulher falou comigo
Através dela,
Uma mulher negra que 
Vestia branco, ela
 fez perguntas sobre a caixa.
Respondi tudo que sabia, 
E ela em troca das informações
afrouxou o feitiço que selava
A porta.
Cabia a mim quebrar o feitiço
E abri-las de vez.
Continuei tentando e tentando,
E por um ano inteiro tentei,
Até  que enfim conseguir sair de lá.
Quando eu sai, fui atras de Rosa,
Mas independente de qualquer
vingança que tentei fazer,
Nada me fez ser
Jocasta novamente.
Me tornei um espírito de magia.
Mais de duzentos anos
Se passaram, 
Agora eu sou uma Pombagira, não sou?
Mas quem disse que eu queria ser?
Eu só queria ser Jocasta,
Mas agora sou outra coisa.
Foram as pessoas que me deram 
Um nome novo, elas e vem a mim
Pedindo conselhos.

Hoje quando vejo Rosa
Ela passa por mim e não toca
No assunto. 
Para ela aquilo tudo não foi nada.
Sei que é hipocrisia da minha
Parte, sei que teria feito
O mesmo com ela ou com
Qualquer outra para ter a 
Maldita caixa só para mim.
Mas ainda assim, 
Sendo hipocrisia ou não,
Eu sinto ódio por Rosa Caveira.
O pior é que até hoje eu não consigo
Deixar de cantar aquele maldita
Música toda vez que a vejo.

"Do pó para o pó,
Ninguém explica,
Como uma Rosa amarela...
Nasceu da princesinha.
Do pó para o pó,
Com um livro encarnado
Ela fala de poderes
Que ganhou do diabo.
Do pó para o pó,
Um crânio na história 
Nas mãos do perverso 
É a taça da vitória.
Do pó para o pó,
A Rosa disse claro
Três vezes tres é castigo,
Ela cobra um preço caro."




_

CONTO 6: SANTIAGO 

🔮🍷♠🗡 🔮🍷♠🗡 🔮🍷♠🗡🔮
Eu era violeiro.
Todos sabiam que meu nome
era Rodríguez, pois era filho
De espanhóis, mas brasileiros
Ja eram zombeteiros desde
Aquela época colonial
E me apelidaram "Santiago".
Gritavam "Arriba muchacho"
Toda vez que eu passava com
Minha viola flamenca.
Naquela noite Estava eu em Sabará,
Noite de Sábado, gente na rua.
Sentei-me em um banquinho
Ali diante da fonte do Kaquende,
Botei o chapéu no chapéu
e a viola no colo, então comecei
a tocar uma moda espanhola
Nos moldes de Andaluzia.
O povo logo começou a se 
Reunir em uma roda,
Batiam palma no ritmo da 
Música. 
Brasileiro gosta de qualquer farra...
Em duas hora eu ja tinha
O chapéu cheio de moedas.
Ficou demasiado tarde,
O povo ja começava a ir se
Recolher, a rua ficando vazia.
Eu parei de tocar e já estava
Pronto para por a viola no saco
Quando uma moça se achegou.

👠 — Toca mais uma moço.

Levantei a cabeça e fiquei pasmo,
Era uma moura, tinha a pele
Escura cor de canela, labios
Bem vermelhos e cabelos cheios,
Tinha as ancas largas e uns
Peitos de fazer inveja a 
Qualquer uma,
E ela usava o espartilho tão
apertado que as melancias 
Ja estavam querendo fugir 
Por cima do decote.

🎸 —  Hum... Sabe o que é señorita, já passa das onze, o povo ja foi dormir...
👠 — Só mais uma moço...

Ela fez um biquinho de 
Desconsolo e apertou 
Os braços rente ao corpo
Fazendo os peitos salientarem
Ainda mais.

🎸 — Ai ai mi padre... certo señorita, toco mais uma.

Botei a viola no colo,
Bati as unhas contra
as cordas e toquei uma 
Bem agitada, uma flamenca.
A moça dançou, dançou como
eu jamais havia visto uma
Mulher dançar,
Ela girava fazendo a saia
Abrir no ar, movia os braços
De modo sinuoso, 
Jogava os cabelos para lá 
E para cá.
Era linda em demasia.
No final da música ela
Veio até mim, me agradeceu
E me mandou fechar
os olhos que me daria um 
Presente.
Fechei, senti aquelas mãos 
Macias elevarem meu queixo
E então os lábios dela tocarem
Os meus.
Fiquei ofegante, abri os olhos,
Queria ve-la, beija-la toda,
Beijaria aquela mulher dos 
Pés a cabeça!
Mas quando abrir os olhos
Me vi sozinho.
Sim, estava sozinho
Na rua deserta.
Andei pela rua afim de entender
Para onde ela havia ido
E como tinha fugido tão rapido,
Mas não vi nem rastro de gente.
Enfiei a viola no saco
E fui para a estalagem onde
Ia pernoitar. 
Chegando lá pedi a janta
E comi no balcão mesmo,
Quis fazer assim para poder
Assuntar com o estalajadeiro.
Contei a ele o que tinha acontecido,
Ele, um português bigodudo,
Veio e me cochichou 
No pé do ouvido.

🧔🏻 — Ave Maria Santíssima... Ora moço, isso ai é o satanás! 
🎸 — É o quê? 
🧔🏻 — O diabo, o caramulhão, o sete pele, o tinhoso... 
🎸 — É serio?
🧔🏻 — Sim, juro pela minha mãezinha, esse espírito  aparece qui de vez em quando, mas dizem que aparece mais lá na capital.
🎸 — No Rio de Janeiro?
🧔🏻 — Si é. Cuidado moço, ela e as outras iguais a ela são coisa ruim, vão logo lhe fazer perder a salvação que o bom Jesus nos dá.

Não dei muito crédito
A esse papo de diabo,
Mas perguntei mais afim
De saber algo útil.

🎸 — Sabes o nome da moça?
🧔🏻 — Sim sei. Mas agora não lembro.

O português ficou
Parado me olhando feito
Um bobo, então lhe
Passei uma moeda por cima
Do balcão.

🧔🏻 — Ai sim, me lembrei. Bom, dizem que esse diabo se chama... Maria Mulambo. Que Deus nos defenda.

Não levei a sério,
O nome "Mulambo"
Não tinha nada haver,
A mulher que vi era belíssima
como uma princesa de Almorávida,
Não era nada mulambenta.
Os dias passaram, voltei
A fonte do Kaquende várias
noites mas ela nunca mais
apareceu.
Resolvi sair de Sabará.
Queria ver a moça de novo
então cometi a loucura de 
Ir rumo ao Rio de Janeiro,
Foram três dias de viagem
montado no lombo de minha
Doce égua Rosalinda.
Chegando na capital fui
Logo fazer musica na praça
do Campo dos Ciganos.
Passei uma noite tocando lá,
Mas carioca é raça que tem
Escorpião no bolso, não 
Ganhei quase nada.
Porém no fim da noite
Tive uma surpresa,
Vi a moça passar pela praça,
Atravessou bem na minha
Frente, ia rápido levando
Duas caixas de madeira nas mãos.
Corri atras dela.

🎸 — Señorita!

Ela fez que não era com ela
E continuou andando.

🎸 — Dona moça, por favor, um segundo de sua atenção!

Ela nem-te-ligo.

🎸 — hum... é... Maria Mulambo!

Ela parou e olhou para trás.
Estávamos nos dois agora
Em uma rua vazia.

👠 — Tu falou comigo?
🎸 — Sim! Eu sou o violeiro, lá de Sabará, se lembra? Sabará... em Minas Gerais...

Ela me olhou e sua expressão
ficou cheia de humor.

👠 — Ai eu não acredito... coitadinho... eu lhe fiz mal sem saber... 
🎸 —  Mal? 

Me aproximei dela.
🎸— Que mal señorita? 
👠 — Ai docinho... acho que você devia ter um tiquinho de espiritualidade sabe... e quando lhe beijei acabei tornando esse tiquinho em um montão. Veja, naquela hora eu me fiz ser vista porque aquis, mas agora tu estas a me ver sem ser da minha vontade.
🎸 — Eu... eu não entendo. Do que esta falando? Como não poderia lhe ver se a señorita esta bem na minha frente?
👠 — De cá a sua mão.

Ela pegou minha mão direita
E pôs bem em cima de um de
Seus seios.

🎸 — Oh madre de Dios...
👠 — Esta sentindo?
🎸 — Sim... É macio...
👠 — Cachorro... eu quero saber se está sentindo meu coração bater?
🎸 — Oh... isso não. Não sinto nada.
👠 — É porque estou morta.

Arregalei os olhos
E tirei a mão das partes dela
No momento que ela 
Começou a gargalhar.

🎸 — Eu... meu Deus...
👠 — Qual seu nome violeiro? 
🎸 — Santiago...
👠 — Eu estou ocupada agora Santiago, mas em breve nos veremos de novo. Gosto de homens com iniciativa. Até mais docinho.

E ela deu as costas e se foi.
Fiquei atónito, a mulher 
Era mesmo um Diabo.
Nas noites  seguintes continuei
Tocando na praça,
Mesmo abalado por dentro
Eu tinha de continuar ganhando
a vida.
Sei lá quantas noites se passaram,
Mas em uma delas quando eu 
Tocava uma balada aragonesa  
Para alguns rapazes 
Que haviam acabado
De sair de um bordel,
Fui surpreendido por eles
Aplaudindo com muita veemência,
E ninguém me aplaudia tanto,
Então olhei para o lado
e lá estava ela, Maria Mulambo,
E ela estava a requebrar os quadris
No ritmo da minha viola.
Olhou para mim e piscou,
Então mudei a musica para
Algo mais agitado, 
Ela seguindo os acordes 
Cantou junto, a voz
Era tão bela quanto ela.

"Me chamam de Rampeira,
A Rainha das Regateiras,
Pois quando vejo um rapaz
Meu bumbum faz 
Tchic-tchic-bum!
Tchic-tchic-bum!
Se querem tirar a prova,
Pro meu decote olhem agora
Que meus nenêns fazem
Tchic-tchic-bum!
Tchic-tchic-bum!
As senhoritas de família
Dentro  em Anaguas e crinolinas
Tem inveja deste
Tchic-tchic-bum!
Tchic-tchic-bum!
Tchic-tchic-bum!"

Todos riram e encheram
Meu chapéu com moedas.
Assim que eles foram embora
Trançando as pernas,
Ela também foi andando,
E eu rápido enfiei a viola
No saco e corri atras dela.
A alcancei em um beco.

🎸 — Señorita! Por favor, me de um minuto de seu tempo!

Ela parou e ficou me olhando,
Então quando me aproximei
Ela me agarrou e me jogou
contra uma parede,
E ali me dei um beijo, 
E um beijo tão intenso
que quando me soltou
eu estava branco, sem ar.

🎸 — Ai... eu não estava esperando por isso não señorita...
👠 — Corte essa de "señorita", me chame só de Mulambo.

Nem tive tempo de dizer 
Mais nada, ela desapareceu
bem diante de meus olhos.
Fiquei meses sem ver 
Aquela beldade.
Uma noite quando cheguei
A meu quarto que alugava
em uma pensão no centro,
Antes de me deitar tive a louca
Ideia de chamar pelo nome
Dela, e sete vezes disse seu nome
Antes de pegar no sono.
De madrugada ela veio em
Meu quarto.
Eu não sei dizer se foi sonho
Ou se foi real,
Mas de manhã acordei 
Quebrado de tão cansado,
A mulher era uma pimenta!
Mas eu estava gostando mesmo
Dela, mesmo ja sabendo que
Era alguma coisa do inferno ou
Sei-lá-o-quê fosse, 
Eu realmente gostava dela.
Naquela noite a encontrei na praça
E perguntei:

🎸 — Se tu é morta, como sei que é, como fazemos coisas que só gente viva faz?

Ela se riu faceira.

👠 — Eu não sou uma morta qualquer, não sou um fantasma, nada parecido com esses espíritos que assombram casas e arrastam cadeiras. 
🎸 — E o que tu é então? 
👠 — Outra coisa. Eu estou no limiar de lá e de cá, posso fazer muitas coisas... que nem eu sei explicar.

Ficamos assim, 
Não sei dizer se éramos
apenas amigos ou se
Éramos amantes.
Eu a via as vezes, 
E mesmo pedindo para que ela
Ficasse comigo mais tempo,
Ela não ficava, aparecia
quando queria e ia embora
Sem se despedir.
Se passou um ano, dois anos,
Três anos, dez anos. 
De tanto viver em pensões
e estalagens eu decidi parar
De cantar nas ruas e abri
Um pensionato lá em Paranaguá.
Mulambo continuava vindo
Me ver.
O tempo danou a correr, 
Eu fui envelhecendo,
Fui enrugando, 
Minha beleza Latina desapareceu.
Me tornei um velho grisalho,
De dentes amarelos e 
Corpo cansado,
Mas ela ainda vinha me ver.
Mulambo ainda era a 
Mesma mulher linda,
Petrificada no alge da formosura,
E muitas vezes me senti
Envergonhado em recebe-la,
Eu sabia que não estava a altura,
Mas ela ainda assim vinha.
Então uma noite 
Eu estava varrendo 
O corredor do segundo andar
De minha pensão
Quando senti aquela presença.
Olhei para trás e vi ela,
Ela estava lá no primeiro
degrau da escada,
Vestida de branco 
Como uma noiva,
E sorria para mim.
Sorri de volta, mas meu
Sorriso esmoreceu quando
Percebi que aquela mulher
era sim um espírito,
Era muito parecida com 
Minha Mulambo,
Mas não era ela.

👹 — Boa noite Santiago.
🎸 — Boa noite... quem é a señorita?

Ela veio se aproximando.

👹 — Ah eu tenho muitos nomes. Sophia, Carla, Djenane, Martha, Raquel, Marjorie, Hélen... mas agora, agora que eu estou morta... me chamam de Sete Catacumbas.
🎸 — Sete Catacumbas? Um nome um tanto  diferente...
👹 — Gosto da dramaticidade que ele tem. Eu fiquei sabendo que tu é amigo de uma conhecida minha... é verdade que Mulambo vem lhe fazer visitas com frequência?
🎸 — É sim, señorita.
👹 — ÓTIMO!

Então senti o impacto
e a dor lancinante no
Meu estômago.
A mulher estava com
O rosto a poucos centímetros
do meu, não entendi isso,
A segundos ele estava
Do outro lado do corredor,
Mas agora estava colada
Em mim.
Olhei para baixo, 
Na mão dela havia um 
Punhal, a lâmina fincada
na minha barriga.

🎸 — Argh... porque... 
👹 — Não é sua culpa, mas é como diz o ditado, só se faz omete quebrando os ovos. 

Eu cai, bati no chão,
A poça de sangue começou
a se formar a minha volta.
A lâmina ainda fincada 
Em minha barriga.

👹 — Calma, sua amiga vai vir logo.

E de fato, nem um minuto
se passou e eu a vi, 
Mulambo apareceu ao meu lado.
Se abaixou e tocou em
Meu ombro, mas se dirigiu
A mulher.

👠 — Cadela desgraça, não teve coragem de me peitar, não é? Acha que mexer nele vai me ferir?
👹 — Acho. Ah Mulambo, eu não sou estúpida, sei que não te venço em uma queda de braço, então tive de comer pelas beiradas. Eu quero as caixas, as duas.
👠 — Jamais.
👹 — A faca na barriga de seu amigo... não é uma lâmina comum. Quer que ele morra com ela fincada? Sabe o que vai acontecer, não sabe? 

Mulambo agarrou o cabo
Do punhal e tentou puxar,
Remover, mas ele não se mexeu.


👠 — Calma Santiago, vou dar um jeito, não se preocupe.
🎸 — Eu... eu estou bem...
👠 — Vaca maldita, o que fez com essa faca? 
👹 — A velha magia antiga, voodoo... só a dona da faca pode remover. 
👠 — Tire.
👹 — Eu tiro se me der as caixas. Sabe que se ele morrer sob a minha magia... ele vira uma alma presa, uma alma como a nossa. E ele tinha tanta vocação pra subir... Deus o abençoe.
👠 — Pare com esse deboche. 
👹 — Ele vai morrer em minutos. A decisão é sua. 

Mulambo olhou pra mim,
E pela primeira vez na vida
eu vi o rosto dela tomado
Por tristeza.
Ela então estendeu as duas
mãos diante do rosto
como quem segura uma bandeja,
Fez um biquinho e soprou
Sobre elas, uma nuvem de fumaça
Preta saiu de sua boca e tomou
Forma nas suas mãos, logo
Uma caixa de madeira 
Se materializou ali.

👠 — Eu não tenho duas caixas, só essa.
👹 — Eu sei. Mas também sei que você sabe onde está a outra. 
👠 — Tire a faca dele e eu lhe entrego.
👹 — E me dirá o que quero saber?
👠 — Sim.

A tal Sete Catacumbas
se abaixou ao nosso lado,
Pôs uma mão no cabo do
Punhal e outra na caixa
Que Mulambo segurava.

👹 — Diga e eu sumo daqui.

Mulambo suspirou.

👠 — Você vai me obrigar a trair minhas irmãs...
👹 — Não, eu não estou te obrigando, você tem direito de escolha.
👠 — A segunda caixa está com uma mulher viva, se chama Maria Navalha, mora no morro de Santa Teresa.
👹 — Uma mulher viva? Não por muito tempo. Obrigada querida.

E em um piscar de olhos
A mulher desapareceu,
Levou embora a caixa e 
O punhal.
Mas eu estava ferido demais
Para resistir.
Mulambo segurou
A minha mão, começou a 
Cantarolar algo,
Uma cantiga de ninar
Ou algo assim.

🎸 — Porque você não quis me deixar preso com você? Eu queria ser um espírito ao seu lado... passar a eternidade com contigo...
👠 — Queria não docinho, você não sabe como é. É muito... ruim. Você tem de subir, ir para o seu lugar de direito. 
👹 — Você... vai se meter em problemas por ter dado a aquela caixa?
👠 — Vou. Mas eu aguento, eu sou durona. Não se preocupe, fique em paz.

Então eu senti que devia
olhar para o teto, e ali no 
Teto do corredor havia
Um tipo de buraco iluminado e
Do outro lado dele um lugar
Que parecia uma pintura
De tão bonito.
Um homem muito alto
E bem afeiçoado
Se encarapitou na borda,
Olhou para baixo e me 
Encarando disse:

🧝🏾‍♂ — Vem, é sua hora. 

Ele estendeu  a mão e
Misteriosamente eu alcancei
a mão dele mesmo ele
Estando longe.

🎸 — Quem é o senhor?
🧝🏾‍♂ — Sou Emanuel.
🎸 — Emanuel... é um anjo?
🧝🏾‍♂ — Pode me chamar de anjo se quiser, o que importa é você vir comigo.
🎸 — Mas pra onde eu vou?
🧝🏾‍♂ — Pra um lugar bom. 

Olhei para baixo
E vi meu corpo morto
Caido no chão e ao
Lado dele a minha amada
Que olhava pra cima 
Com os olhos muito brilhantes.
Falei com Emanuel.

🎸 — Deixa ela vir também, ela é boa.
🧝🏾‍♂ — Eu sei que ela é. Mas eu não posso deixar ela passar. Ela não tem como vir junto.
🎸 — Então eu não quero ir, quero ficar com ela.

👠 — Vai com ele Santiago, por favor, por mim. Vá viver o que é seu de direito.

Olhei para o homem.

🎸 — Se eu for, nunca mais hei de ve-la?
🧝🏾‍♂ — Se vier, passará um longo tempo conosco, mas... se quiser, um dia poderá voltar a nascer nesse mundo. 

Olhei para baixo.

🎸 — Quando eu voltar pra cá, mesmo se eu não Lembrar mais de você...
👠 — Eu te acho, te faço lembrar.
🎸 — Promete?

Ela forçou um sorriso,
Acho que queria me tranquilizar.

👠 — Prometo.

Então eu passei pelo buraco,
Fiquei olhando enquanto
Ele se fechava, nos separando.
Eu estou aqui em cima já faz 
Mais de duzentos anos.
As pessoas que morrem e 
Vem pra cá sempre me falam
Da minha Mulambo,
De que ela agora é bem famosa,
Que chamam ela de Pombagira,
Mesmo que eu não faça a menor
Ideia do que é isso, mas eles
Dizem que ela ajuda muita gente,
Que ainda é um bocado safada,
Mas que ainda é a mesma.

Eu lhes contei esta história
Neste momento em que estou
na beira do mesmo buraco
Pelo qual entrei neste lugar.
Eu já estou pronto pra cair
No mundo de vocês novamente,
E eu vou nascer criança 
Neste velho mundo mais uma vez.
Meu último desejo antes
De pular é que ela ainda
Lembre de mim, que ela,
A minha Mulambo, me ache
Quando eu mais uma vez
For gente de carne e osso.





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Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada 
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