Contos das Muitas Marias - Na Íntegra

 Algumas pessoas manifestaram dificuldades em baixar o PDF, então resolvi disponibilizar a história na integrar nesta postagem:




Felipe Caprini

Contos das Muitas Marias




Estes são contos sobre Pombagiras, sim, mas não contos verídicos colhidos com seus Médiuns,esses contos vieram através de minhas mãos. Quem quiser acreditar que são apenas devaneios dentro da loucura chamada "ficção", ora, que seja, mas quem quiser observar as histórias como sendo espelhos da alma dessas mulheres, que sem causa
ou motivo claro quiseram transmitir através de minhas palavras... será bom também.
Junto as histórias estão as artes, além de uma narrativa as moças passaram através de minhas mãos as suas imagens. Desenhei com o máximo carinho e fidelidade a qual pude recorrer, espero que apreciem as ilustrações.
Todas as artes e textos foram original mente publicados em minha página do Facebook no final do ano de 2019.


Índice:
🌸 Conto 1: despedidas a Maria Mulambo: Matais de Incêndio 

🌸 Conto 2: Despedidas a Maria Mulambo: Quando Ela Morreu

🌸 Conto 3: Despedidas a Rosa Caveira: Maria Mariá

🌸 Conto 4: Despedidas a Pombagira Menina: Menina Júlia 

🌸 Conto 5: Despedidas a Maria Farrapo: Que Saudade

🌸 Conto 6: Despedidas a Sete Saias: Minha Mãe

🌸 Conto 7: Despedidas a Maria Quitéria: A Dona da Casa

🌸 Conto 8: Despedidas a Dama da Noite: As Pedras Cessaram

🌸 Conto 9: Despedidas a Pombagira da Figueira: Coroa de Louros

🌸 Conto 10: Despedidas a Maria Padilha: Obrigada por Tudo

🌸 Conto 11: Despedidas a Rosa Vermelha: Você Ainda Ouvirá Falar de Nós 





🌹 1. Matais de Incêndio 

Naquele mês ela não me escreveu.
Fiquei aflita, quando os dias passaram,
Parei na rua o rapaz filho do boticario
Que era quem ia a cidade trazer os medicamentos 
E já fazia a vez de carteiro,
Ele disse que este mês não havia carta
Com meu endereço.
Meu coração começou a bater rápido 
Como se quisesse escapar da caixa do peito,
Deixei minha vendinha aos cuidados 
Da menina que me ajudava,
De madrugada fiquei pronta 
E esperei na porta da venda 
Diorgenes, o fruteiro,
Ele trazia frutas para minha venda 
E em seguida ia de carroça 
Até a cidade todos os dias para 
Entregar a outros comerciantes.
Assim que ele passou e entregou 
O que era meu 
Eu pedi que me desse carona 
Até a cidade.
Ele reparou no meu estado de aflição 
E deixou que eu sentasse na carroça 
E com ele fosse.
Era cinco da manhã quando chegue lá.
Com alguma dificuldade ao caminhar 
Pois já no auge da minha velhice
Eu mancava de uma perta e tinha 
De ir me apoiando em uma bengala.
Caminhei a trancos e barrancos 
Até aquela casa de luz Vermelha, o cabaré.
A porta já  estava fechada, 
Achei estranho pois cinco da manhã 
Era hora de estar ainda aberto.
Bati, logo duas moças miúdas que
Com certeza eram novatas 
Abriram a porta.
"Quero falar com Mulambo. Imagino que ela já se recolheu, mas diga que é Bibiana que quer ter com ela."
As moças se entre olharam, 
Fiquei sem paciência pra aquelas duas
Empurrei  a porta e entrei,
Me sentei a uma das mesas
E reparei que ela estava limpa.
Não haviam taças usadas, nem bitucas
Nem cheiro de fumo,
O salão estava impecável, 
As mesas organizadas como se...
Como se a casa não houvesse aberto.
As duas moças subiram as escadas correndo,
Dali a pouco quem desceu foi Rosa Vermelha
Despenteada e enfiada em uma camisola.
"Oh Rosa, bons dias? Onde está Mulambo? E porque não abriram o salão hoje?"
Ela me olhou com o rosto lívido 
E disse em voz quebrada
"Por Deus... Me esqueci de avisar a senhora..."
"Ora essa me avisar de que?"
Perguntei sorrindo mas por dentro 
Implorando aos céus que não fosse o que 
Eu pensava que era.
"A casa está fechada por um mês, luto."
Meu rosto me traiu, me queixo começou a tremer.
Rosa teve de continuar 
"Faz alguns dias que Maria Mulambo... Faleceu."
Suspirei fundo ja sem poder segurar as lágrimas,
Mulambo era a minha menina,
Pra mim como uma filha.

Muitos anos atrás eu trabalhava naquele cabaré,
Assim que foi inaugurado 
A primeira dona, Quitéria,  
Me contratou para cuidar da cozinha 
E da arrumação.
Uma manhã desci para o terreiro nos fundos 
Do casarão afim de tirar água do poço.
Enquanto tirava um balde 
Ouvi certa agitação no galinheiro,
Quando fui ver o que estava acontecendo 
Me deparei com uma menina lá dentro 
Tentando roubar os ovos.
Ah peguei a vassoura e fui pra bater nela,
Quando a menina me viu não teve medo,
Começou a atirar os ovos em mim,
Pulou a grade do galinheiro e tentou correr
Para se embrenhar na mata,
Mas não conseguiu, assim que pulou 
Ela caiu e teve dificuldades de se levantar.
Era uma mestiça , acho que chamavam isso de mulata,
Meio negra meio branca.
A peguei pelo braço, ela me olhou de cara feia
Mas reparei que seus lábios estavam brancos
E os olhos amarelados, anemica.
"Menina quem é teu dono?"
Brava feito um siri na lata ela gritou 
"Não tenho dono! Sou livre!"
Na hora não quis saber se era mesmo ou não, 
A puxei para dentro da casa 
Ela resistiu um pouco mas quando 
Sentiu o cheiro de pão vindo da cozinha
Parou de espernear e entrou.
Dei a ela comida, o diabo da menina 
Parecia um saco sem fundo.
Após comer ela saiu correndo pela porta.
No dia seguinte quando fui tirar mais agua do poço 
Ela estava lá perto do galinheiro,
E dessa vez mais mansa pediu um pedaço de pão.
Levei ela pra dentro e dei,
Mas Quitéria neste dia estava na cozinha
E fez cara feia quando entrei com ela.
"Que é isso Bibiana? Uma escrava? Sabe que eu não gosto de escravidão na minha casa."
A menina se arretou na hora
"Escrava a suas fuças, eu sou Maria Francisca! Eu sou gente livre!"
Quitéria se riu daquilo, 
Um toco de gente daquele esbravejando.
"Maria Francisca? Vestida assim com esses trapos está mais para Maria Mulambo isso sim." 
A menina trincou os dentes de raiva 
Mas não respondeu nada,
Servi a ela pão e leite 
E Quitéria foi logo pondo ordem
"Se quiser comer terá de pagar, aqui não é casa de caridade."
A menina olhou para mim assustada
E eu disse "Certo, ela pode me ajudar a dar comida as galinhas mais tarde, a varrer o terreiro e a colher ervas de chá na horta."
Quitéria aprovou a situação.
Mulambo me ajudou a fazer tudo e ainda mais,
Não tinha medo de serviço aquela uma.
De noite ela se despediu e foi rumando para a mata
E então perguntei onde ela morava,
Ela deu de ombros, não tinha casa.
Disse a ela que podia dormir comigo no meu quartinho
Se ela quisesse me ajudar na lida no dia seguinte.
Ela acabou por aceitar, e foi ficando
Foi ficando até que eu passei a dar uma parte
Dos meus ganhos a ela.
Três anos se passaram e um dia aquela megera 
Da Danusa entrou na cozinha batendo a mãos 
Na bolsa de dinheiro que estava ao som das moedas.
"Só hoje três contos de réis, vou a modista encomendar um vestido novo."
Mulambo ficou olhando aquilo e perguntou 
"Bibiana em um mês você ganha cinco contos, como ela ganhou três em uma noite?"
Eu expliquei a ela,
Não que ela já não soubesse o que as moças 
Do cabaré faziam com os homens nos quartos
Mas vi os olhos dela se arregalarem quando falei 
Dos valores que ganhavam.
No dia seguinte Mulambo sumiu, entrei no quarto
Para ver o motivo de não ir me ajudar 
E o que vi foi surpreendente,
Ela havia surrupiado um dos vestidos de Quitéria, 
Pego também algumas jóias, havia penteado o cabelo 
E pintado os labios de Rouge. 
Olhou para mim e riu, eu me desesperei
"Mulambo se Quitéria te ver assim ela vai te expulsar da casa!"
"Então chame ela aqui e vamos ver." Ela respondeu de queixo erguido.
Ralhei com ela mas a menina era teimosa demais,
Ela queria que eu fosse chamar Quitéria a todo custo.
Não precisou, Quitéria ouviu Mulambo dizer isto
E veio da cozinha ver o que era.
Quando entrou no quarto arregalou os olhos 
E Mulambo foi logo dizendo 
"Peguei suas roupas e jóias, mas não pense que para roubar, não, queria que me visse assim e me disesse o que acha."
Quitéria fez cara de poucos amigos 
"O que acho? O que acho do quê?"
"Me diga se tenho ou não condição de trabalhar no salão, de ser uma... uma..."
"Quer ser uma prostituta no cabaré?"
Mulambo firmemente disse "sim".
Achei que Quitéria ia se debochar dela,
Mas não, ela ergueu as sobrancelhas e coçou o queixo
Analisando a situação.
"Bem... Nunca tive uma moça da sua cor na casa... E também não esperava que bem vestida você ficaria tão aprumada... Mas não sabe ler e escrever não é?"
"Mas posso aprender."
"Não sabe tocar nenhuma instrumento não é?". 
Daí eu  que respondi "mas ela sabe cantar."
Quitéria assentiu, ela mesma ja havia ouvido Mulambo
Cantarolar aquelas cantigas debochadas.
"Que seja, começa amanhã. Fique com o vestido e com as jóias, vou descontar dos seus rendimentos. E pegue aquele quarto vazio lá em cima."
Mulambo sorriu e Quitéria saiu dali satisfeita.
Assim ela caiu na vida.
Toda tarde antes do Cabaré abrir eu 
Sentava com ela a mesa e ensinava 
O pouco que sabia das letras mas principalmente 
Ensinava a contar dinheiro para não ser enganada.
Mulambo sempre foi vista pelas outras como inferior,
Pela cor da pele, pela origem,
Mas ela não era do tipo que chorava,
Vira e mexe as moças que lhe faziam desfeita 
Apareciam de cara roxa
E eu ja sabia que o roxo vinha
Dos sopapos que Mulambo lhes dava.
Ela impôs respeito,
E não vou negar em dizer que por mais de uma vez
Fui até os fundos do Cabaré atras das ferramentas 
E dei falta da pá e da picareta,
E dali a pouco vinha Mulambo suja de terra 
E eu sabia que tinha enterrado alguém no matagal.
Era brava, mas tinha de ser.
Depois que passou a beber então, ave Maria,
Parecia bebe recém nascido atrás de mamadeira
Mas ela mavava era no gargalo de cachaça.
As vezes quando bebia demais chorava 
Balbuciando memórias sobre uma mãe escrava,
Um pai feitor, uma fuga, morte e dor.
Mas assim que a bebida passava ela se erguia 
E jamais fazia comentários sobre de onde veio.
Quando completei meus cinquenta anos 
Estava velha demais para o trabalho pesado
Minha perna esquerda começou a falhar.
No meu aniversário ela veio com uma bolsa 
Cheia de dinheiro 
"Aqui Bibiana, sei que é teu sonho abrir uma venda pra viver em paz, junte as tuas economias com isso e compre uma terra, construa a venda e vá ser feliz."
Eu não quis aceitar, 
Sabia o custo que foi para ela conseguir aquele dinheiro,
Mas ela insistiu tanto que aceitei.
Arrumei minhas coisas e rumei para um vilarejo 
No inteiror onde ninguém sabia quem eu era
E abri a venda.
Todo mês e as vezes toda semana ela me escrevia.
Contou da morte de Quitéria
E que a casa passou para o comando da intragável Padilha.
Contou que estava ganhando mais.
As vezes que ela se adoentava eu corria para a cidade
E cuidava dela por dias, nunca a deixei sozinha.
Ela me escreveu quando Padilha morreu 
E eu fiquei extremamente orgulhosa quando li
Que ela mesma, Maria Mulambo, era a nova chefe do Cabaré.
Nos correspondemos muito, até que um dia
Ela contou daquela desgraçada, a maldita Farrapo.
Tudo bem que Mulambo ferrou com ela primeiro,
Mas a mulher era rancorosa.
Essa foi a última carta que me mandou.
Ali diante de Rosa Vermelha eu perguntei
"Como aconteceu?"
Rosa apontou para o palco
"Ela estava bêbada, subiu no palco para cantar, você não vai crer mas ela cantou "Matais de Incêndios" ali."
Eu ri, aquilo era música de coro de igreja, 
Coisa cantada no natal, 
Ela mamada fazia essas patotas. Rosa prosseguiu 
"Então Farrapo entrou, ali da porta sem previo aviso atirou. Mulambo caiu, bala no peito, sem chance sabe."
Assenti e pedi "podes me dizer onde foi enterrada?"
Ela me disse, a velha clareira das rejeitadas.
Pedi a Rosa Vermelha um ultimo favor, que me desse 
Um pacote de cigarrilhas e uma garrafa de água ardente,
Sai de lá e manquei até o rapaz das flores onde comprei 
Um buquê de rosas, e velas 
Então fui a clareira.
Foi fácil achar qual das muitas covas era a dela
Pois era a mais recente.
Deitei sobre ela as flores,
Abri a garrafa e despejei a bebida,
Acendi as velas e o fumo 
E então me despedi cantando

" Matais de incêndios, meu lindo, ai lê lê.
Porque um Sol me pareceis; não me mateis.
Deixai que eu goze essas luzes, ai lê lê.
Meu amor não me mateis.
Hei de chegar-me aos incêndios, ai lê lê.
Inda que raios vibreis.
Mas se a Vós me chego, amante, ai lê lê.
Meu amor não me mateis.
Para abrasar corações, ai lê lê.
As palhinhas acendeis.
O meu por Vós já se abrasa, ai lê lê.
Meu amor não me mateis.
Suspendei, Menino, o pranto, ai lê lê
Mas, meu lindo, não choreis.
Ora, fazei-me a vontade, ai lê lê
Meu amor não me mateis."

E  no fim me virei para ir embora 
Mas assim que o fiz 
Estrondou na clareira aquela costumeira gargalhada.
Me virei mas não vi nada,
Então parti, mas não parti sozinha,
Levei comigo ela dentro do meu coração.




🌹 2. Quando Ela Morreu

Quando ela morreu não acreditei.
O som do disparo cortou a barulheira 
Do salão como uma navalha.
A bala que varou seu peito 
Manchou as cortinas já rubras
Em um tom mais vivo de vermelho.
Por um segundo ouve gritaria e
Alguma Correria
Mas logo tudo se aquietou.
Os rapazes arrancaram as toalhas das mesas 
E improvisaram uma padiola,
Saíram do salão do cabaré subindo as escadas,
E Maria Mulambo ali sendo carregada,
Ensanguentada.
Quando a colocaram na grande cama de dossel 
Do seu quarto cheio de bugigangas
Foram correndo chamar o doutor
E eu fiquei ali com ela
Segurando suas mãos que lentamente esfriavam.
Ela tentou dizer alguma coisa,
Tossiu querendo cuspir as palavras 
Mas eu não pude entender.
As mãos gelaram de uma só vez, duras como mármore
E os olhos abertos se tornaram opacos.
Fiquei ali sentada ainda de mãos dadas com ela
Mesmo quando Rosa Vermelha entrou e disse
"Não adianta mais Desirée, ela partiu."
Meus lábios se moveram mudos balbuciando "não acredito."
Quando ela morreu eu fiquei muito frustrada 
Porque ela sempre me levou junto
Mas dessa vez teve a ousadia de partir sozinha.
Era a ultima lendária,
A ultima das três Marias.
O doutor chegou com sua maleta de couro
A examinou brevemente, 
Tocou-lhe o pescoço, entre os seios e nos pulsos.
O doutor não disse nada, apenas moveu a cabeça 
Meneando como quem afasta as borboletas da esperança.
Fiquei com ela até amanhecer.
Muita gente entrou no quarto,
Meia duzia de homens, umas tres dezenas de mulheres.
Choraram, espernearam, a abraçaram e partiram.
Rosa Vermelha que sempre foi a mais firme da casa
Veio com um balde de água e algumas toalhas
Mas eu tomei de suas mãos, eu iria fazer aquilo.
Limpei o sangue com toda a delicadeza
E fechei seus olhos
Enquanto Rosa Vermelha abria o armário 
Atrás de um vestido para por na morta.
A menina Ana entrou no quarto perguntando 
Se a companhia funerária chegaria logo 
Eu abri a boca para explicar mas Rosa Vermelha 
Tomou a frente para dizer que mulheres como nós 
Não vão para a funeraria, não éramos embalsamadas
E não podíamos ser sepultadas no cemitério,
A igreja não permitia.
Ana saiu triste ao perceber que a humilhação 
A ela também cabia.
Rosa Vermelha me tocou no ombro 
E pediu que eu me afastasse para ela
Vestir Maria Mulambo.
Eu não me movi então ela me puxou com força 
Me pondo em pé em um tranco
Mas quando falou comigo a voz estava branda 
"Desirée eu sei que é horrivel, mas esse é o nosso mundo, essa é a nossa vida."
Assenti e me afastei, fiquei aos pés da cama
Observando ela desamarrar o cadarço do espartilho 
Do cadáver na minha frente como se 
Ja tivesse feito aquilo varias vezes antes.
Acredito que sim.
Quando soltou o último cordão 
Dona Mulambo falou, tenho certeza que disse algo 
Mas Rosa Vermelha me olhou com tristeza
E disse que era apenas o ar dos pulmões saindo,
A ultima lufada que a abandonava.
Minhas mãos se agarraram com força 
No pano da minha saia e então não suportei mais 
Chorei como uma condenada,
Pois de fato era isso que eu era,
Condenada a estar sem ela.
Cai no chão sem forças nos joelhos 
E chorei por mais de meia hora 
Esperando Maria Mulambo vir ralhar comigo
Como sempre fazia quando me via
Se rendendo ao drama.
Mas ela não disse nada, o silêncio era total.
Rosa Vermelha me mandou observar,
Disse que nós é que dávamos conta
De nós mesmas e por isso
Eu tinha de aprender como se faz
Pois provavelmente da proxima 
Se não fosse eu morta na cama
Seria eu a vestir alguma de minhas irmãs.
Ela virou o cadáver repetidas vezes 
Tirando as roupas manchadas 
E vestindo um belo vestido negro de lantejoulas bordadas.
Ao ver o esforço dela me refiz rapidamente,
Apanhei na penteadeira a escova e o óleo 
E penteei os cabelos dela.
Serafina trouxe a chave do armário 
Onde achei as maquiagens, pintamos ela como uma boneca.
Ela ficou pronta e passou o dia ali deitada
Como muitas vezes havia feito após uma noite de bebedeira.
Quando escureceu os rapazes trouxeram a carroça.
Desceram Mulambo pelas escadas enrolada em uma manta dourada
Das mais caras do guarda roupa que Maria Quitéria havia
Deixado para ela como herança.
Quando sai na rua foi que me dei conta 
Do tamanho da comoção,
Além das vinte e tantas moças 
Da nossa casa haviam mais uma centena de mulheres 
Vindas dos outros cabarés.
O cavalo foi em marcha lenta e nós atrás em fila
Sem direito nem de fazer uma reza ou elevar um cântico 
Sem direito de acender velas
Pois isso a igreja também proibia.
Putas não tem direito nem ao pranto.
Fomos todas em silêncio de braços dados
E quando chegamos na clareira no meio da mata
Fiquei horrorizada ao ver que além da cova já cavada
Havia para mais de uma centena de monturos de terra 
Revelando outras de nós que jaziam ali de baixo.
Antes de enterrar o corpo 
Os rapazes abririam a manta
E então em uma fila organizada 
Todas nós fomos até ela e a beijamos uma ultima vez.
O corpo foi atirado no buraco 
E após alguns minutos 
Maria Mulambo havia realmente 
Deixado esse mundo.
Voltei para o cabaré, 
Rosa Vermelha que como esperado
Nos lideraria dali por diante nos deu o luxo de um mês 
De portas fechadas.
Mas um mês passou rapido 
E logo eu estava no salão sorrindo para os homens
Como se toda a dor não fosse nada.
Naquela primeira noite um dos porcos 
Que eram os clientes da casa 
Me elogiou dizendo que eu estava 
Com uma cara boa.
Mal sabe ele a desgraça atrás da máscara.
Mas eu ainda ria e dançava 
Exatamente como Maria Mulambo havia me ensinado um dia.









🌹 3. Maria Mariá

Eu passava a piteira dourada 
Entre meus dedos,
Senti uma enorme vontade de rir
Quando bati no canutilho com a ponta da unha
E o som revelou ser alumínio.
Aquela velha mentirosa disse toda a vida
Que era de ouro... 

Ela não morreu de uma vez só 
Morreu aos poucos.
Quando a conheci eu ainda era menina,
Fui contratada para a lida na cozinha.
Dona Rosa essa época ja era velha,
Podre de rica
Odiada por toda a cidade.
Lhe pintavam como uma bruxa,
Uma megera imunda.
Odiada porque era mulher 
E não aceitava ser mandada por homem.
Odiada por nunca abaixar cabeça.
Odiada por ter dinheiro o suficiente 
Para borrar seu passado de mulher dama
E forçar a igreja a fazer vista grossa.
Era bela, altiva, classuda.
Quando pegamos mais intimidade
Ela me contou historias de seu passado,
De muitos amores mas também 
De muitos dissabores,
De um tempo de cabarés e sortilégios.
Me lembro de estar ao tanque esfregando as roupas 
E ela ali do meu lado já um pouco encurvada
Balançando suavemente na rede no Jardim 
Tecendo os contos da mocidade.
Se esperava que estivesse de xale 
E fazendo tricô, mas não,
Ela mesmo velha ficava enfiada 
Em nobres vestidos de seda púrpura 
Cheia de joias
Sempre com o cigarro em uma mão 
E o whisky ou qualquer coisa inflamável na outra.
Conheci uma de suas amigas, 
Uma de mesmo nome mas que sempre usava 
Uma Rosa Vermelha nos cabelos,
Haviam distintos senhores que vinham visitar também 
Mas um dia as visitas cessaram.
Tomei coragem a perguntei a ela
Numa noite quando eu escovava
Seus cabelos brancos 
E ela muito triste revelou que 
Eles ja tinham partido, mortos,
Uns pela idade, mas a maioria por outros males.
O rosto ficava cada vez mais encovado e pálido 
 Os cabelos finos iam rariando,
A idade avançava sem piedade.
Certa noite acordei assustada com ruídos no casarão 
E ao subir as escadas a encontrei rindo 
Sentada no parapeito de pedra
Com os cabelos esvoaçando 
Falando com o vento como se ele pudesse responder,
E ela dizia nomes de muitas Rosas e muitas Marias
Pelintras e Joãos, e ria para eles
Ou talvez com eles,
E quando se virou e me percebeu ali 
Riu e disse que falava com seus companheiros 
Que a aguardavam do outro lado da porta.
"Que porta minha senhora?" 
Mas ela não respondeu, apenas riu.
Foi então que as febres começaram,
Noites onde ela delirava na cama
Ardendo enquanto eu tentava de tudo
Para abaixar a temperatura,
Delirava e gemia por dias 
Se alimentando apenas de mingau
E quando repentinamente melhorava
Exigia bebida e fumo
Sem se preocupar com a saúde.
Uma noite a febre atingiu seu ápice 
E enquanto eu segurava as mãos pálidas e ossudas
Senti os dedos afrouxarem
E a mão cair inerte na cama.
Ela respirava devagar com os olhos vagos 
Mas então fixou o olhar em um ponto 
Acima da minha cabeça e sorriu.
Meu corpo se retesou em um arrepio
E ao me virar vi o homem alto 
Vestindo um paletó preto com uma cartola de cetim
E ao fitar seu arrepiante rosto de osso 
Gemi e cai da cadeira desesperada.
"Dona Rosa! Dona Rosa o que é isso?"
Mas quando a fitei na cama ela estava imóvel 
Com os olhos opacos fitando o nada.
O homem se aproximou 
E eu me encolhi contra a parede 
E observei ele estender a mão enluvada
Para o corpo imóvel de dona Rosa,
Mas não foi a mão velha e pálida 
Que segurou a dele
E sim uma mão firme e jovem.
A mulher que se ergueu da cama 
Não tinha mais de vinte e cinco anos 
Com cabelos castanho avermelhados.
Ela se virou para mim 
E eu contemplei seu rosto
Meio carne meio osso
E nas feições de carne reconheci dona Rosa.
O homem a guiou para fora do quarto 
E no corredor ouvi muitas vozes.
A curiosidade foi maior que o medo,
Me ergui e os segui,
O corredor estava iluminado 
E haviam muitas pessoas lá, 
As mulheres em vestidos de saia armada
E os homens em ternos e bengalas,
A jovem dona Rosa foi cumprimentada
Por todos e eu ouvi novamente 
Os nomes que ela tanto repetia 
Em suas memórias, sonhos e delírios
Maria Padilha, Maria Quitéria, Tranca Ruas,
Rosa Vermelha, Maria Navalha e tantas mais...
Ela bailou com uma debutante 
Diante daquela gente 
E eu vi no rosto de cada um o carinho 
Que apenas velhos amigos tem.
Dona Rosa partiu pelo corredor de braços dados
Com aquele homem de puro osso
E foi seguida por toda aquela gente
Escada abaixo.
Eu os segui mas quando cheguei no topo da escada 
Não vi nada além da sala vazia e escura.
Voltei para o quarto e 
Fechei os olhos do corpo da morta
Que me aguardava frio sobre a cama.
Então me sentei ali ao lado dela 
E sorri enquanto alcançava a piteria 
Em cima do cinzeiro no criado mudo
E a passava entre meus dedos,
No dia seguinte os parentes distantes vieram e devoraram 
Todos os pertences dela
E rapidamente me enxotaram 
Com medo de meu nome estar no testamento.
Quando fui ao meu quartinho fazer as malas 
Achei entre os lençóis no guarda-roupa 
Um envelope gordo cheio de notas altas,
O pagamento equivalente a quase um século de salários
E junto uma pequena Folha onde com letra galante 
Se lia "da sua amiga Rosa Caveira".
Fui ao sepultamento 
E na saida do cemitério me lembrei de algo
Estaquei o passo assim que pisei na calçada 
Pois minha mente buscou na memória 
A lembrança de minha velha amiga cantando
Uma antiga cantiga

"Quando passar na porta do cemitério, moço
Ô não se esqueça de olhar pra trás
Quando passar na porta do cemitério, moço
Ô não se esqueça de olhar pra trás
Vocês vão ver uma moça vestida de preto, moço
Ela é Maria Mariá..."

E assim fiz, olhei por cima do ombro 
E lá diante do portão de ferro
Não vi uma "Maria Mariá vestida de Preto"
Mas vi nitidamente uma Rosa Caveira vestida de roxo
Que sorriu com sua meia face desapareceu 
Em um piscar de olhos.
A vida andou e hoje quem está velha sou eu 
E agora aqui deitada em meu leito de morte 
Já ouço a voz dela e sinto o cheiro de seu perfume
Ansiosa por esta derradeira visita.








🌹 4. Menina Julia 

Aquela noite foi tão estarrecedora
Que marcou como a mais nitida das lembranças.
Quando os soldados a trouxeram o
E um deles a carregando no colo 
Todas nós tivemos a noção 
Do que ela realmente era... 
Uma criança.

Júlia chegou no cabaré no início do ano
Veio maltrapilha e com marcas 
De violência nos braços.
Algumas das moças 
Tentaram enxotar ela dali
Mas era muito teimosa 
E fez pé firme até que a levaram 
para falar com Dona Maria Padilha.
Ninguém deu muita atenção,
Era uma fedelha miuda
Mal tinha seios. 
A princípio ela jurou ter dezoito anos 
Mas ninguém sustenta mentiras diante 
Da expressão seria de Maria Padilha
Então acabou confessando ter quatorze.
Por ser tão nova a apelidaram de Menina
E era assim que era chamada.
Dona Padilha a aceitou na casa.
Todas as moças foram chamadas 
Para saber desta novidade
E juntas no salão ouvimos Padilha anunciar 
Menina como mais uma de nós.
Houveram contrariedades,
Rosa Vermelha discordava com veemência
"Não, que Cabaré é este que põe uma infanta como prostituta? Isso é errado!"
Padilha ouviu a todas 
Mas após muita discussão
Encerrou a conversa ao responder:
"Se eu não aceitar essa Menina aqui ela vai acabar se vendendo em alguma esquina ou no Porto para os marinheiros, com certeza algum criminoso vai fazer mal a ela. É mais seguro que  fique aqui. Sei que se vender não é coisa pra criança mas o mal ja foi feito, agora o que posso fazer é deixar que ela faça isso sob as minhas vistas."
Menina caminhou timida até o Centro do salão 
Com seus cabelos em cachos delicados
Trajando um vestido Rosado 
E sorriu para todas nós como um pedido silencioso 
De aceitação.
Muitas desviaram o rosto, era horrível.
Menina era extremamente bonita 
Mas era sim absurdamente horrível 
Olhar nos olhos dela
Pois naquele olhar nós que já eramos velhas 
Reconhecemos aquele fundo amargo 
No olhar de uma mulher 
Que já sofreu na mão dos homens.
Uma noite quando estávamos para fechar as portas
E os últimos clientes saiam cambaleando de bêbados
Encontrei Menina sentada 
Nos degraus da escada dos fundos
Tentando ler um bilhete.
Pobrezinha, mal sabia juntar as letras.
Me aproximei dela 
"Menina quer que eu leia pra você?"
Ela se virou me olhando assustada 
E tentou enfiar o papel 
No decote do vestido
Porém eu fui mais rápida 
E tomei dela antes.
Li o bilhete, nele haviam galanteios
E muitas juras de amor.
"Menina quem te escreveu isso?"
Ela nada respondeu.
"Menina se não disser eu entrego isso para Padilha."
Ela deu um suspiro nervosa 
E com a voz fraquinha contou
"É um moço da cidade, ele quer casar comigo."
Olhei pra ela com espanto.
"Alto lá, você acreditou nisso? Menina os homens são perversos, ele está mentindo pra você. Pare com essa besteira, você só vai se machucar."
Ela me olhou tristonha 
Enquanto eu lhe devolvia o bilhete.
Meses se passaram
E eu acabei por me afeiçoar a ela,
Ficamos amigas em pouco tempo.
Menina era risonha, esperta 
Conseguia ganhar tanto dinheiro 
quanto o resto de nós.
Era segunda feira, dia que o cabaré não abria,
Dona Padilha e Rosa Vermelha 
Como de costume se trancaram no quarto 
Para calcular os ganhos da semana
E o restante de nós fazía a faxina.
Eu estava ajoelhada no meio do salão
Esfregando o assoalho para tentar 
Remover uma mancha 
Quando Serafina tocou no meu ombro.
"Dinorá onde está a Menina Júlia?"
Eu respondi que não sabia.
Enquanto esfregava ouvi o tropelo na escadaria 
E uma das outras vir correndo
E contar a Serafina que Menina tinha fugido.
Deixei meu serviço e corri para o quarto dela,
De fato estava vazio 
E sobre a cama uma carta,
Apanhei o papel e li a
Escrita com a sofrível letra 
De quem tem pouca instrução
"Desculpe-me, tive de partir."
Antes que eu pudesse me virar
Maria Padilha tomou o bilhete 
Das minhas mãos,
Ao me virar me deparei com ela
E Rosa Vermelha dentro do quarto.
Padilha me encarou seria 
"Dinorá você sabe de alguma coisa, sei que sabe. Onde ela está?"
A voz cheia de autoridade de Padilha
Me fez recuar alguns passos.
Contei sobre o bilhete cheio de galanteios
E Padilha suspirou aborrecida, então disse
"Se ela fugiu com esse homem reze para voltar inteira."
Indaguei o motivo de dizer isso e ela disse mais
"Com certeza ela levou todo o dinheiro que ganhou nestes ultimos meses, não duvido que a intenção deste tal homem é roubar tudo e deixar ela para trás. É  de praxe esse tipo de vagabundo enganar moças."
Pedi a Padilha para mandar alguém procurar menina
Mas como não tínhamos pistas de seu paradeiro 
Não havia onde buscar.
A noite caiu e com ela uma chuva intensa,
Os relâmpagos iluminavam 
Os trovões faziam a casa tremer.
As nove de noite se ouviu alguém
Batendo na porta com força,
Rosa Vermelha de carabina em punho 
Mandou alguém abrir enquanto mantinha 
A mira pronta, se fosse algum engraçadinho 
Ia levar chumbo.
Me coloquei ao lado dela
Já com o punhal na mão
Enquanto Padilha descia as escadas
Também pronta para defender a casa
Quando a porta foi aberta 
E três soldados de milícia entraram.
Os dois primeiros estavam encharcados
E o terceiro trazia Menina nos braços.
Era tão minúscula sendo erguida contra 
O peito daquele homem que 
De imediato meu coração se encheu de dor.
A água que respingava no chão vindo dela 
era vermelha, era sangue.
Um deles ergueu o queixo para falar
Com Padilha que estava parada no meio da escada.
"Senhora nós a encontramos ferida proxima a entrada da cidade. Tentamos levar até o hospital mas as freiras se recusaram a atender uma... uma..."
"Uma de nós." Padilha completou.
Ele assentiu, o soldado que a carregava 
A levou para o andar de cima, para o quarto,
Os passos dele fazendo barulho 
Conforme pisava nos degraus.
Padilha os agradeceu com uma boa quantia 
E eles partiam.
Ela entrou no quarto e eu fui atrás 
Menina estava deitada na cama 
Muito pálida e tremendo
Os lábios brancos.
Me sentei no chão e segurei sua mão 
Mas Logo notei abaixo dos seios 
Um furo no espartilho 
Que minava sangue.
"Facada?" 
Eu perguntei e Padilha respondeu
"Sim. Pelo que o soldado falou ela estava acompanhada de um homem, ele roubou a bagagem dela, a mala onde levava o dinheiro. Ela tentou reagir mas ele a esfaqueou e fugiu."
Menina abriu os olhos, 
Seus cílios brilhando de umidade.
"Fui burra... Ele disse... que me amava..."
Ela falou com voz fraca.
Padilha sorriu para ela
"Não tem problema, vai ficar tudo bem, você vai achar outro amor logo."
A ouvir essas palavras meu queixo tremeu,
Padilha era muito severa conosco,
O natural seria ralhar com Menina 
Mas se estava sendo gentil era por um só motivo,
Não valhia a pena.
Menina continuou a falar com lágrimas escorrendo
Pelos cantos dos olhos 
"Desde que nasci ninguem nunca me amou... Eu creditei naquele homem... Eu... Me perdoem..."
Padilha se sentou na cama e com 
As costas das mãos acariciou o rosto dela
"Não há porque pedir perdão. Nenhuma mulher devia viver o que você viveu, nenhuma criança devia viver isto. Aqui é sua casa e vamos ficar do seu lado até que... melhore."
Houve uma pausa na fala da padilha quando 
Disse "até que... melhore", era nítido que
Lhe custava mentir naquela hora. 
Menina não ia melhorar.
Alguém pigarreou e quando virei a cabeça 
Vi Rosa Vermelha na porta do quarto.
"As moças querem falar com ela."
Padilha assentiu e as moças lotaram o quartinho,
Eram tantas que se espremiam ombro a ombro
Em torno da cama,
Algumas já soluçando de tanto chorar.
Todas tinhamos o mesmo sentimento,
Era terrivelmente cruel aquela criança 
Morrer daquele modo
E era ainda mais cruel pois Menina 
Servia de espelho para todas nós,
Todas também tivemos a infância destruída.
Padilha olhou para as moças e pediu
Que cantassem alguma música alegre 
Para espantar o clima triste.
Elas se entre olharam sem entender 
O motivo de cantar naquela hora
"Ela gosta de música" eu falei
Então longo começaram a cantar,
O coro das muitas vozes femininas era como
O ressoar da chuva nas telhas de barro,
Menina esboçou um sorriso para nós
O peito subindo e descendo em uma respiração lenta
Até que sem previo aviso o peito baixou 
E não tornou a subir.
Ela manteve um leve sorriso nos lábios 
Mesmo quando seus olhos fitaram o teto opacos.
A cantoria parou e o que seguiu foi um silêncio absoluto.
Ela foi enterrada na mata junto com a maioria de nós.
Todas nos vimos nela.
Todas carregamos a culpa de não te-la protegido.
O mundo não é justo para as mulheres,
Nem mesmo quando se é Menina.

Muitas vezes muitas de nós 
Viram mesmo que por relance 
Menina dançando no meio do salão 
Nos dias em que o cabaré estava fechado.
Ela morreu cedo demais
A alma ainda anda por ai, risonha e faceira,
Para sempre uma menina.



🌹 5. Que Saudade

Eu a amava, ela não.
Nunca me enganei
Eu sabia que era só mais um
Em uma longa lista de amantes 
Mas me contento com a importância 
De ter sido o último.
Farrapo... que mulher intensa...
Era vinte anos mais velha que eu
Mas não me importava, era linda.
Naturalmente seria um escândalo na época 
Uma senhora se enamorar de um garoto,
Mas nós já éramos marginalizados,
Não existem convenções entre os rejeitados.
Me lembro como se fosse hoje,
Ela estava doente de novo,
Muitas vezes tinha adoecido
Pelas friagens.
A mulher era louca, 
Vivia nas madrugadas bêbada,
Se ela me amasse tanto quanto amou o álcool
Eu teria sido um homem feliz.
Nunca se alimentou bem, 
Muitas vezes tinha de escolher entre 
Comprar comida ou comprar cachaça,
E ela sempre dava lucro ao alambique.
Mas dessa vez a doença era diferente,
Estava de cama havia três semanas
E tinha perdido muito peso,
Seu corpo voluptuoso 
Se tornou pele e osso,
As faces encovadas a deixaram mais envelhecida
Porém ainda assim era linda.
Uma noite sentado ao lado da cama 
Enquanto a alimentava 
Com mingual de aveia
Que era a unica coisa que parava 
Em seu estômago,
Notei que ela estava distraída,
O olhar perdido na janela 
Mirando a lua.
Puxei de leve um mecha de seu cabelo,
"O que foi meu anjo?"
Ela se virou pra mim com 
Uma expressão que nunca tinha visto,
Ela costumava ser debochada 
Ou ácida mas naquela noite 
Me mostrou olhos cheios de medo.
Eu não compreendi aquilo e ela falou
"Me faça um favor,  vá até o cabaré e chame a Rosa Vermelha, diga que é urgente."
Fiquei muito surpreso
Pois pelo que constava 
Farrapo não se dava com 
As mulheres do cabaré
Porém não questionei, corri até o cabaré  
E avisei uma das moças
Voltei para o barraco de Farrapo 
E esperei com ela.
Não demorou muito e ouvi os cascos do cavalo
E o ranger das rodas da carruagem,
Abri a porta do barraco e vi duas mulheres,
Uma jovem que vinha de braços dados
Com uma idosa que reconheci 
Ser Rosa Vermelha pela flor no cabelo.
Ela vinha encurvada amparada pela moça 
Mas mesmo sendo velha 
Usava um deslumbrante vestido vermelho
Que a fazia parecer uma pintura.
Quando entrou na casa
Foi logo falando ríspida 
"O que foi bruxa velha? Que Diabo quer comigo e pra quê urgên..."
Ela parou quando os olhares das duas 
Se encontraram.
"Ah Farrapo... Já?"
"Como já? Já é tarde Rosa, é a minha vez."
O ar de rispidez desapareceu de Rosa Vermelha 
Ela sorriu para mim e me pediu 
Para esperar do lado de fora um minuto,
Me retirei e fumei pelo Menos quatro cigarros 
Enquanto esperava,
Então a porta abriu e elas saíram,
A moça mais jovem agora amparando 
Farrapo que vinha cambaleante de fraqueza 
Mas totalmente vestida como uma dama,
Os cabelos grisalhos cheios e rouge nos lábios.
Rapidamente assumi o lugar da moça 
Passando o braço péla cintura de Farrapo
E a guiando até a carruagem de Rosa Vermelha.
Entramos, o cocheiro fez um muchocho
E o cavalo puxou o carro,
Demoramos um bocado
Até eu ver pelas janelas a mata densa da baixada.
"Ora essa, Praia?"
Farrapo perguntou se animando 
E Rosa Vermelha sorriu.
Não fomos a praia e sim para o cais do Porto 
Onde marinheiros descarregavam navios 
Mesmo já sendo madrugada.
Desci e improvisei um banco com caixotes,
Rosa Vermelha se sentou com Farrapo
E eu me sentei no chão ao lado.
"Porque o cais?" Eu perguntei.
As duas riram e começaram a tecer memorias
Foram horas de conversa,
Elas relembraram histórias de uma época 
Que não vivi, 
Surgiram inúmeros personagens fascinantes,
Falavam de alguns homens sim mas as 
Protagonistas das histórias eram sempre mulheres,
Maria Padilha, Maria Quitéria, Rosa Caveira,
Sete Saias, Figueira, Menina, Dama da Noite,
Mas principalmente Maria Mulambo era citada 
Pois Rosa Vermelha acusava Farrapo desta morte,
Farrapo nem admitia nem negava, apenas ria.
Entre tantas histórias entendi o motivo 
De terem ido para o cais, Farrapo havia aprontado 
O diabo naquele lugar, 
O cais do porto foi palco de tantas 
Confusões, escândalos e guerras 
Que eu ouvia com atenção imaginando
Como seria possível aquela mulher ter vivido 
Tantas coisas fantásticas.
Foi muito tempo, as vezes 
Me virava para ver as duas,
Farrapo com os cabelos esvoaçando 
Na brisa fresca da noite,
Era linda mesmo tão pálida e profundamente abatida.
No meio das histórias ela parou 
E perguntou a companheira 
"Porque veio quando chamei?"
"Ora, vim porque me chamou! Não chamou?" 
"Achei que me odiava." 
Rosa Vermelha processou aquilo por um tempo
Mas respondeu 
"Não sou sua maior fã. Mas estamos entre ultimas de uma época Farrapo, somos as ultimas. Não interessa se somos amigas ou inimigas, a verdade é que sempre seremos ligadas, eu, você e todas as outras que já se foram e que ainda irão. Todas as mulheres são irmãs, principalmente nós que sofremos mais que as outras."
Farrapo suspirou e observei 
Ela encostar a cabeça no ombro de Rosa
"Sempre fui corajosa, peito de aço pra tudo, mas agora cofesso que estou com medo."
Rosa Vermelha anuiu 
"É normal ter medo no fim... Mas eu vou ficar com você até a hora chegar."
Continuaram a contação de causos até 
O sol dispontar no horizonte 
Tingindo o céu negro em tons de safira e ametista,
Escutei delas coisas absurdas,
Vezes que pegaram em armas
Vezes em que amaram os homens errados,
Vezes em que sobreviveram as piores barbáries,
Historias muito tristes seguidas de outras 
Extremamente cômicas que me faziam rir só de ouvir.
A brisa mais quente da manhã soprou sobre nós 
Com cheiro do sal do mar.
As duas mulheres emudeceram por um longo tempo 
Não interferi pois achei que miravam o nascer do sol,
Mas o silêncio durou demais 
Então me virei e olhei para elas,
Farrapo estava com os olhos fechados 
Com uma expressão tranquila no rosto
Encostada no corpo de Rosa Vermelha.
A principio achei que havia se rendido ao sono
Mas notei sua pele morena estava 
Branca como carrara. 
Rosa Vermelha olhou para mim 
E sorriu triste
"Ela se foi, era a hora certa."
Assenti, não foi uma surpresa, 
Eu já sentia que isso ia acontecer.
Peguei ela no colo, era leve como uma boneca de pano.
Foi sepultada na Mata
No cemitério das putas
Junto com todas as demais de sua época,
Rosa Vermelha cheia de ironia
Mandou cavar a sepultura bem ao lado
Da que repousava a tal Maria Mulambo.
Na minha vida tive muitas mulheres 
Mas nunca me esqueci dela, Maria Madalena 
Que era conhecida como Maria Farrapo.
Depois da morte dela ouvi boatos
De gente que viu seu espírito,
Boatos de que ela em sua forma de moça amalucada
Continuava por zanzar por essas bandas.
Muitas moças afirmavam ter visto
Mas eu mesmo nunca.
Ah como ansiava por uma visita dela...
Mas pelo visto ela se esqueceu de mim.
Ah Maria Farrapo... Que saudade... Saudade

Eu a amava, ela não.
Nunca me enganei
Eu sabia que era só mais um
Em uma longa lista de amantes 
Mas me contento com a importância 
De ter sido o último.
Farrapo... que mulher intensa...
Era vinte anos mais velha que eu
Mas não me importava, era linda.
Naturalmente seria um escândalo na época 
Uma senhora se enamorar de um garoto,
Mas nós já éramos marginalizados,
Não existem convenções entre os rejeitados.
Me lembro como se fosse hoje,
Ela estava doente de novo,
Muitas vezes tinha adoecido
Pelas friagens.
A mulher era louca, 
Vivia nas madrugadas bêbada,
Se ela me amasse tanto quanto amou o álcool
Eu teria sido um homem feliz.
Nunca se alimentou bem, 
Muitas vezes tinha de escolher entre 
Comprar comida ou comprar cachaça,
E ela sempre dava lucro ao alambique.
Mas dessa vez a doença era diferente,
Estava de cama havia três semanas
E tinha perdido muito peso,
Seu corpo voluptuoso 
Se tornou pele e osso,
As faces encovadas a deixaram mais envelhecida
Porém ainda assim era linda.
Uma noite sentado ao lado da cama 
Enquanto a alimentava 
Com mingual de aveia
Que era a unica coisa que parava 
Em seu estômago,
Notei que ela estava distraída,
O olhar perdido na janela 
Mirando a lua.
Puxei de leve um mecha de seu cabelo,
"O que foi meu anjo?"
Ela se virou pra mim com 
Uma expressão que nunca tinha visto,
Ela costumava ser debochada 
Ou ácida mas naquela noite 
Me mostrou olhos cheios de medo.
Eu não compreendi aquilo e ela falou
"Me faça um favor,  vá até o cabaré e chame a Rosa Vermelha, diga que é urgente."
Fiquei muito surpreso
Pois pelo que constava 
Farrapo não se dava com 
As mulheres do cabaré
Porém não questionei, corri até o cabaré  
E avisei uma das moças
Voltei para o barraco de Farrapo 
E esperei com ela.
Não demorou muito e ouvi os cascos do cavalo
E o ranger das rodas da carruagem,
Abri a porta do barraco e vi duas mulheres,
Uma jovem que vinha de braços dados
Com uma idosa que reconheci 
Ser Rosa Vermelha pela flor no cabelo.
Ela vinha encurvada amparada pela moça 
Mas mesmo sendo velha 
Usava um deslumbrante vestido vermelho
Que a fazia parecer uma pintura.
Quando entrou na casa
Foi logo falando ríspida 
"O que foi bruxa velha? Que Diabo quer comigo e pra quê urgên..."
Ela parou quando os olhares das duas 
Se encontraram.
"Ah Farrapo... Já?"
"Como já? Já é tarde Rosa, é a minha vez."
O ar de rispidez desapareceu de Rosa Vermelha 
Ela sorriu para mim e me pediu 
Para esperar do lado de fora um minuto,
Me retirei e fumei pelo Menos quatro cigarros 
Enquanto esperava,
Então a porta abriu e elas saíram,
A moça mais jovem agora amparando 
Farrapo que vinha cambaleante de fraqueza 
Mas totalmente vestida como uma dama,
Os cabelos grisalhos cheios e rouge nos lábios.
Rapidamente assumi o lugar da moça 
Passando o braço péla cintura de Farrapo
E a guiando até a carruagem de Rosa Vermelha.
Entramos, o cocheiro fez um muchocho
E o cavalo puxou o carro,
Demoramos um bocado
Até eu ver pelas janelas a mata densa da baixada.
"Ora essa, Praia?"
Farrapo perguntou se animando 
E Rosa Vermelha sorriu.
Não fomos a praia e sim para o cais do Porto 
Onde marinheiros descarregavam navios 
Mesmo já sendo madrugada.
Desci e improvisei um banco com caixotes,
Rosa Vermelha se sentou com Farrapo
E eu me sentei no chão ao lado.
"Porque o cais?" Eu perguntei.
As duas riram e começaram a tecer memorias
Foram horas de conversa,
Elas relembraram histórias de uma época 
Que não vivi, 
Surgiram inúmeros personagens fascinantes,
Falavam de alguns homens sim mas as 
Protagonistas das histórias eram sempre mulheres,
Maria Padilha, Maria Quitéria, Rosa Caveira,
Sete Saias, Figueira, Menina, Dama da Noite,
Mas principalmente Maria Mulambo era citada 
Pois Rosa Vermelha acusava Farrapo desta morte,
Farrapo nem admitia nem negava, apenas ria.
Entre tantas histórias entendi o motivo 
De terem ido para o cais, Farrapo havia aprontado 
O diabo naquele lugar, 
O cais do porto foi palco de tantas 
Confusões, escândalos e guerras 
Que eu ouvia com atenção imaginando
Como seria possível aquela mulher ter vivido 
Tantas coisas fantásticas.
Foi muito tempo, as vezes 
Me virava para ver as duas,
Farrapo com os cabelos esvoaçando 
Na brisa fresca da noite,
Era linda mesmo tão pálida e profundamente abatida.
No meio das histórias ela parou 
E perguntou a companheira 
"Porque veio quando chamei?"
"Ora, vim porque me chamou! Não chamou?" 
"Achei que me odiava." 
Rosa Vermelha processou aquilo por um tempo
Mas respondeu 
"Não sou sua maior fã. Mas estamos entre ultimas de uma época Farrapo, somos as ultimas. Não interessa se somos amigas ou inimigas, a verdade é que sempre seremos ligadas, eu, você e todas as outras que já se foram e que ainda irão. Todas as mulheres são irmãs, principalmente nós que sofremos mais que as outras."
Farrapo suspirou e observei 
Ela encostar a cabeça no ombro de Rosa
"Sempre fui corajosa, peito de aço pra tudo, mas agora cofesso que estou com medo."
Rosa Vermelha anuiu 
"É normal ter medo no fim... Mas eu vou ficar com você até a hora chegar."
Continuaram a contação de causos até 
O sol dispontar no horizonte 
Tingindo o céu negro em tons de safira e ametista,
Escutei delas coisas absurdas,
Vezes que pegaram em armas
Vezes em que amaram os homens errados,
Vezes em que sobreviveram as piores barbáries,
Historias muito tristes seguidas de outras 
Extremamente cômicas que me faziam rir só de ouvir.
A brisa mais quente da manhã soprou sobre nós 
Com cheiro do sal do mar.
As duas mulheres emudeceram por um longo tempo 
Não interferi pois achei que miravam o nascer do sol,
Mas o silêncio durou demais 
Então me virei e olhei para elas,
Farrapo estava com os olhos fechados 
Com uma expressão tranquila no rosto
Encostada no corpo de Rosa Vermelha.
A principio achei que havia se rendido ao sono
Mas notei sua pele morena estava 
Branca como carrara. 
Rosa Vermelha olhou para mim 
E sorriu triste
"Ela se foi, era a hora certa."
Assenti, não foi uma surpresa, 
Eu já sentia que isso ia acontecer.
Peguei ela no colo, era leve como uma boneca de pano.
Foi sepultada na Mata
No cemitério das putas
Junto com todas as demais de sua época,
Rosa Vermelha cheia de ironia
Mandou cavar a sepultura bem ao lado
Da que repousava a tal Maria Mulambo.
Na minha vida tive muitas mulheres 
Mas nunca me esqueci dela, Maria Madalena 
Que era conhecida como Maria Farrapo.
Depois da morte dela ouvi boatos
De gente que viu seu espírito,
Boatos de que ela em sua forma de moça amalucada
Continuava por zanzar por essas bandas.
Muitas moças afirmavam ter visto
Mas eu mesmo nunca.
Ah como ansiava por uma visita dela...
Mas pelo visto ela se esqueceu de mim.
Ah Maria Farrapo... Que saudade...




🌹 6. Minha Mãe

Tinha dez anos 
Quando aquela mulher veio até 
A casa de minha avó.
Me Lembro como se fosse hoje
Era bonita de um modo diferente,
Vestido vermelho vivo,
Cabelos negros volumosos.
Minha avó fez cara feia 
E perguntou grosseira 
"Que diabos faz aqui em plena luz do dia? Não quero que os vizinhos vejam esse tipo de gente aqui."
A mulher respondeu com calma 
"Vim buscar o menino."
Vovó ficou ainda mais brava
"Buscar pra quê?"
A mulher sorriu triste 
"Para se despedir."
Vovó olhou para ela com receio 
"Mas Dona Padilha, ela está..."
"Está. Quer ver o menino. Eu o trarei de volta em breve."
Vovó fez uma malinha 
Com algumas roupas minhas
E entregou a mulher,
Depois me disse para ir com ela.
Obedeci e fui, entrei em uma carruagem 
A mulher bonita que agora sabia ser 
Dona Maria Padilha 
Sorria para mim as vezes 
Mas não disse nada,
Havia tristeza em seu olhar.
Chegamos em um casarão,
Dentro era lindo como um 
Castelo de contos de fada.
Haviam muitas mulheres lá,
Todas lindas.
Dona Padilha pegou a minha mão 
E me levou para o andar de cima.
Entramos em um corredor 
E ela me pediu para entrar em um dos quartos.
Entrei e vi uma mulher sobre a cama,
Estava pálida e com os lábios arroxeados.
Quando ela sorriu para mim a reconheci,
Era minha mãe.
Fazia uma ano que ela não me visitava 
E nem sequer escrevia.
Eu sabia que era ela que pagava 
As contas da casa de vovó,
Era ela que comprava minhas roupas 
E pagava minha escola.
Mas eu nunca soube que ela morava
Em um Palácio.
Mamãe abriu os braços e corri para ela
Em um abraço apertado.
Logo uma tal de Rosa Vermelha 
Entrou no quarto trazendo 
Um pedaço de bolo de chocolate para mim
E um copo com remédio para mamãe.
Vovó chamava mamãe pelo nome, Soraya,
Mas as mulheres dali a chamavam de Sete Saias.
Perguntei o motivo 
E mamãe contou que era por causa
De seu vestido favorito.
Colocaram uma cama de armar
Ao lado da cama dela
E eu dormi ali.
Mamãe não conseguia levantar 
E quando tossia levava o lenço a boca
E ele se tingia de vermelho.
Muitas mulheres vieram ver mamãe
Todas eram deslumbrantes.
Ela sorria e agradecia as visitas.
Um médico careca veio também
Examinou e partiu.
No terceiro dia mamãe piorou 
Não conseguia nem sentar na cama
E ardia em febre.
Ela pediu que ficasse abraçado com ela
E fiquei.
Ela dizia  repetidas vezes que me amava muito 
E constantemente me pedia perdão.
Não entendia porque ela pedia isso,
Nunca havia feito nenhum mal comigo.
De manhã falou aos cochichos 
"Nao queria que fosse assim..."
No meio da tarde senti que ela estava gelada
E corri la fora para pedir para alguma 
Das mulheres mais um cobertor.
Rosa Vermelha estava no corredor 
E quando pedi isso 
Ela entrou correndo no quarto
E tocou o pescoço de mamãe,
Depois sorriu para mim e disse
Que iria procurar um cobertor 
Mas que eu devia ir para a cozinha
Comer mais bolo.
Fui e dali a pouco dona Padilha 
Se sentou ao meu lado 
E me disse 
"Sua mamãe estava muito doente, sofrendo muito, mas agora ela foi morar no céu, ela infelizmente teve de ir. Você quer ver ela mais uma vez antes que eu te leve de volta para a sua avó?"
Deixei o garfo cair no chão com estrondo 
Enquanto encarava Dona Padilha.
"Minha mãe... morreu?"
"Sim... Ela se foi."
Saltei do banco  e corri o máximo 
Que podia escada acima 
Quando cheguei vi o quarto tomado 
Por mulheres, todas da casa estavam lá.
Mamãe estava na cama agora mais arrumada
Alguém havia trocado sua roupa 
E penteado o cabelo. 
Enfiada naquele vestido chique 
Com as mãos cruzadas sobre o peito 
Ela parecia a bela adormecida
Daquele livro que vovó lia pra mim.
Me aproximei e toquei o rosto pálido,
Estava rígido e frio.
Chamei ela uma vez, duas vezes, três vezes 
Mas ela não abriu os olhos.
Então gritei, agarrei ela pelos ombros 
E gritei o máximo que pude.
Nada, ela não se mexeu.
Rosa Vermelha me tirou do quarto
Me pegando no colo enquanto 
Eu berrava.
Minutos depois estava na carruagem 
Com minha malinha e Dona Padilha
Sentada do meu lado.
Ela segurou minha mão 
E cantarolou alguma coisa.
Entre os soluços adormeci,
Acordei quando ela me disse
Que havíamos  chegado na casa de vovó.
Padilha se abaixou para ficar 
Na minha altura e disse que 
Assim que me tornasse homem
Era para voltar para aquele casarão 
Pois ela iria me dar algo 
Que minha mãe tinha deixado pra mim.
Vovó perguntou sobre o dinheiro 
E Padilha garantiu que ela mesma
Prosseguiria arcando com as despesas.
O tempo passou e eu cresci 
Virei homem estudado 
Doutor com diploma na mão.
Assim que pude voltei aquela casa,
Agora adulto tive consciência 
De que era um cabaré.
Quando cheguei pedi para falar 
Com Dona Padilha,
A principio ela não me reconheceu
Mas quando me apresentei 
Ela sorriu e me levou para cima
Para seu quarto.
Sentei na beirada da cama,
Ela abriu o guarda roupas e tirou de lá 
Um grande embrulho de papel pardo e me deu,
Em seguida saiu me dando privacidade.
Desatei os barbantes e tirei 
A primeira camada de papel,
Dali  caiu um envelope do qual abri
E li a carta que continha.
Passei meus olhos sobre ela 
E as lagrimas começaram a cair.
A carta era de minha mãe,
Nela havia o relato de sua vida,
Dos motivos de ter ido parar na prostituição,
Das violências que sofreu
E de sempre ter de resolver tudo sozinha.
A carta era grande e ao terminar de ler 
Meu corpo se tremia inteiro
Pela dor que me atingia o peito.
Cuspiram em sua cara,
A chamaram de puta para lhe reduzir a nada,
Era vista como um ninguem.
Passou fome e frio, sozinha.
Teve de se vender para não morrer
E quando ficou grávida de mim
Se culpou muito e se recusou
A me largar no orfanato.
Achou vovó, que para minha surpresa 
Não era parente e sim uma mulher 
Paga por ela para me criar 
Longe da vida suja daquele cabaré.
Na última linha da carta 
Ela me pedia para nunca contar 
Para ninguém quem ela era
Pois ela temia que eu fosse descriminado
Por ser filho de alguém da noite.
Acabei de ler e guardei a carta
No bolso interno de meu paletó,
Então removi a segunda camada
De papel do embrulho 
E tirei dali uma saia de corte espanhol,
Tinha sete Barrados em vermelho e Negro.
Estendi a saia sobre a cama e 
Passei os dedos sobre as costuras,
Entendi de imediato,
Era a a roupa dela, a que lhe deu
O nome de Sete Saias.
Recolhi aquela peça de roupa 
E fui embora viver minha vida.
Nunca contei para ninguém sobre aquela carta
Ou sobre ela.
Me casei e tive minhas filhas e minhas netas.
Um dia quando estava muito velho 
E já adoentado 
Minha neta mais nova 
Encontrou entre as minhas coisas 
Aquela saia tão bonita 
E perguntou de quem era.
E finalmente eu contei 
Que era de minha mãe,
Minha corajosa mãe 
Da qual eu desesperadamente
Sentia saudades.
Orientei com firmeza 
Que ninguém da família 
Sentisse vergonha dela,
Pois ela foi uma valente guerreira 
Vítima das maldades do mundo.
A saia ficou para a família 
E uma noite quando meu corpo idoso
Parou de resistir,
Tive o imenso prazer 
De ver minha mãe novamente 
Jovem e bonita ali no meu quarto 
Sorridente como sempre foi
Dizendo que tinha vindo me buscar.
Me vi menino de novo 
Abandonando o corpo de velho sobre a cama
Saltei dela em forma de moleque 
Segurei na mão de minha mãe com força 
E então partimos juntos para outro lugar.




🌹 7. A Dona da Casa

Eu vi ela morrer.
Ali a alguns passos de mim 
Mas não fiz nada.
Por décadas fui contrariada 
Por sentimentos que hora me 
Acusavam  de covardia e hora
Me dizem que assim foi certo.

Maria Quiteria foi a numero um,
Ela que comprou aquele casarão 
E fez ali o cabaré.
Era portanto a dona e chefe 
De todas as moças.
Eramos todas muito novas
Porém uma ou outra 
Ja se destacavam.
Maria Padilha era a que mais brilhava,
Tinha dezoito anos apenas,
Deslumbrante e sedutora.
Me Lembro daquela noite 
Como se fosse hoje,
Quitéria em pé perto do bar 
Com a vista atenta sobre as moças 
Que entretiam os homens 
Sentados nas mesas do salão.
Eu fui até ela informar que
Ana ia subir para o quarto 
Com um cliente 
Mas ela não me ouviu,
Repeti e ainda assim ela ficou imóvel.
Olhei para seu rosto e ela estava 
Com os olhos arregalados e as sobrancelhas 
Erguidas, o maxilar trincado
Em uma expressão de fúria.
Segui seu olhar, caia direto sobre
Um homem alto e louro 
Que aparentava aproximadamente 
Quarenta e poucos anos e que tinha
Padilha sentada no colo 
Rindo de algo que ela dizia.
Quitéria me ignorou completamente
E com muita pressa subiu as escadas,
Ouvi o baque da porta 
Quando ela se trancou no quarto.
Isso se repetiu todas as vezes
Que aquele homem veio até o cabare.
Uma manhã eu estava passando 
Pelo corredor e ouvi vozes exaltadas
Vindo do quarto de Quitéria.
Me aproximei da porta e ouvi 
Ela falanda gritando 
"Aquele porco alemão! Ele foi a causa da minha desgraça! Você vai fazer o que eu mandei!"
Padilha estava lá, a ouvi responder 
Com a voz cheia de medo
"Eu sei, eu sei que foi ele que te fez cair na vida, mas eu não sou uma assassina, eu não posso matar um homem."
Quitéria gargalhou ácida 
"Não é uma Assasina? Vai se apegar a moral agora?"
"Tudo tem Limite Quitéria!"
Ouvi um estalo forte,
Me aproximei mais e pela fresta 
Da porta entreaberta vi Padilha
Protegendo o rosto.
Era o que eu pensava,
Quitéria a havia esbofeteado.
"Quem define os limites sou eu! Sua vadiazinha ingrata... depois de tudo que fiz por você... te tirei da rua, te dei um teto, ja se olhou no espelho? Enfiada nesses vestidos de seda feito uma princesinha... Eu fiz de você quem você é, eu te criei e posso te destruir se quiser. Preste bem atenção, só existe duas opções, ou você é minha aliada ou minha inimiga. O que vai querer? Quer me desafiar?"
"Não é questão de desafiar, você está exigindo o impossível".
Quitéria se virou nervosa
Fazendo a saia rodar.
"Ou é pela suas mãos que ele morre, ou é você que morre pelas minhas, fui clara?"
Vi Padilha mover a cabeça lentamente 
Anuindo com os olhos assustados
Então Quitéria foi até a penteadeira 
E pegou um pequeno vidro cheio
De pó branco e estendeu ele para Padilha 
Que o apanhou e escondeu 
No decote do vestido.
Quitéria riu 
"Você sabe o que fazer."
Na ponta dos pés corri para trás 
Da cortina de uma das janelas
A tempo de me esconder 
Quando Padilha saiu do quarto
Visivelmente abalada.
Poucos dias depois q cidade estava 
Em polvorosa pois um rico homem 
Chamado Alexsandro Goutha 
Havia sido encontrado morto
Em sua casa.
Não haviam sinais de violência,
O delegado constatou que havia sido 
Mal subito
Mas eu sabia a causa da morte, veneno.
Os Anos passaram
O cabaré prosperou muito
Mas Dona Quitéria já começando 
A envelhecer não estava bem.
Não existiam mais clientes para ela,
Nenhum homem queria ir para o quarto
Com uma mulher que tinha idade
Para ser sua mão até mesmo sua avó.
Diversas vezes eu a vi se mirando 
No espelho com ar de tristeza, de derrota
Ao examinar as marcas de expressão
Que surgiam por todo lado.
Ela sempre foi boa conosco,
Tirando os dias de mal humor
Onde era uma verdadeira megera
Ela geralmente cuidava de nós
E era honesta com os ganhos.
Certa vez na cozinha quando
Eu sovava a massa de pão 
Para o café da manhã do dia seguinte 
Ela veio me ajudar.
Enquanto eu abria a massa sobre a mesa
Ela salpicava sal para penetrar aos poucos.
Foi a primeira e única vez que conversamos 
De verdade, como se fossemos amigas.
Ela me contou que veio da França 
Fugida por conta da tal inquisição.
Então ficou parada olhando para fogão a lenha
Para a chama que crepitava esquentando o forno
Com ar de terror como se o fogo
Tivesse feito a ela alguma desfeita.
"Dona Quitéria? A senhora esta bem?"
"Sabe Serafina, minha mãe foi queimada na fogueira."
"Na França?" Eu perguntei.
 "Sim. Aqui eu ouço as vezes o povo comentando sobre isso, fazem até piadas sobre a estaca de fogo. Mas eu vi, era só uma menina mas vi eles amarrem minha mãe e minha tia na pilastra de pedra no meio da vila em que morávamos, forrar Madeira  e palha nos pés delas e acender o fogo. Não tenho palavras pra descrever o horror que foi, os gritos... e principalmente o cheiro... o cheiro igual ao que sai do forno quando o assado passa do ponto, mas era a carne da minha mãe que queimava, a gordura do corpo derreteu e escorreu como manteiga... "
Quando ela percebeu que havia
Falado mais do que devia 
Se calou e continuou a me ajudar 
Sem dizer mais nada.
Eu sabia porque daquele olhar de medo,
Outro dia quando todas as moças haviam saído 
Para ir encomendar vestidos na modista
eu voltei para o cabaré pois havia
Esquecido minha bolsa de dinheiro,
E foi então que eu ao passar pela cozinha 
Ouvi aquela voz trêmula que vinha do porão.
O porão estava sempre trancado,
Mas a Porta estava aberta naquela hora.
Abri devagar e desci a escada,
Ah meu mal era ser bisbilhoteira, sei disso.
Vi ela lá, nua diante de uma estátua de madeira
Lendo em voz alta coisas 
Daquele livro amarelado
Cheio de simbolos estranhos,
Falava em uma lingua que 
Eu nunca tinha ouvido antes.
Quitéria era uma bruxa.
Eu nunca disse nada para ninguém,
Se ela fosse pra fogueira 
Com certeza todas as moças da casa
Iriam junto.
Então veio a bomba,
Uma Mulher foi queimada na fogueira 
Na Praça da cidade a menos de um quilômetro 
Do Cabaré.
A pobre foi acusada pelo marido
De ter enfeitiçada suas partes íntimas...
Ah coisa de homem, por a culpa na mulher
Por ter se tornado brocha.
Mas Quitéria ficou muito assustada,
Ela achou que no Brasil isso jamais aconteceria,
Mas logo as notícias de mulheres 
Queimadas em São Paulo 
Se tornaram populares.
Quitéria parou de se expor,
Mal saia a rua e toda vez
Que alguém batia a Porta 
Ela se tremia inteira.
Lembro que uma tarde 
Ela pegou uma pá e foi para o terreiro 
Nos fundos do casarão,
Observamos espiando pelas janelas
Ela com muita dificuldade cavar a terra
E enterrar as estátuas e o livro
Como se quisesse se livrar das provas.
Uma noite ela nos reuniu no salão 
E informou que havia decidido
Fechar o cabaré, iria vender o casarão.
Disse que estava velha demais 
Para ficar naquela vida,
Que queria se mudar para
Algum lugar calmo e ter paz.
Eu sabia que na verdade ela tinha medo.
Nós ficamos estarrecidas,
Não tínhamos para onde ir,
Ela ia nos atirar na sarjeta e ir fugir.
Todas protestamos
Gritamos e esperneamos
Mas Padilha fez o oposto,
Com um ar de quem compreendia 
Deu dois passos para frente 
E apertou as mãos de Quitéria sorrindo,
Deu a ideia de fazer uma festa de despedida
Para selar o fim do Cabaré 
Em grande estilo.
Todas olhamos para Padilha incredulas
Mas ela não deu importância.
Quitéria achou uma ótima idéia.
Organizamos a festa então,
Todas em clima de tristeza.
A festa foi desanimada, 
Não abrimos o cabaré,
Foi um momento só nosso.
No meio do festejo 
Padilha trouxe uma bandeja cheia 
De taças de vinho 
A maioria de cristal 
Mas uma era de reluzente prata,
A taça de Quitéria.
Quitéria sorriu e bebeu 
Tudo em um gole só como costumava fazer 
Para não arder a língua. 
O pernil foi servido,
Nós sentamos todas juntas 
Na mesa da cozinha 
Que era grande para todas sentarem
E Quitéria na cabeceira 
Sorria para nós.
Não demoro muito ela 
Engasgou, começou a tossir,
O rosto avermelhando.
Pediu água para Dama da Noite 
Mas ela despejou o conteúdo da jarra 
De água dentro da boca do fogão.
Quitéria olhou para ela
Com ar de aterradora compreensão.
"Ve... Veneno? Colocaram veneno no meu vinho?"
Ela se levantou cambaleando 
E foi para o salão 
Derrubando cadeiras e esbarrando nas mesas
Enquanto passava, quando chegou 
Na beira da escada
Rosa Caveira entrou na frente 
A impedindo de subir.
"Saia da minha frente! O antídoto está no meu quarto!"
"Eu sei." Rosa Caveira disse sem sair do lugar.
Quitéria tentou passar por ela
Mas rosa vermelha e pegou pela cintura 
E a arrastou para o meio do salão.
Todas nós formamos um círculo 
Em torno dela, caiu de joelhos,
Tossia muito, a garganta estava fechando.
Padilha foi a que se aproximou,
Quitéria puxou um punhal de dentro 
Do espartilho mas Sete Saias
Correu e com um tapa a desarmou.
Padilha começou a falar
"Nenhuma de nós vai a lugar nenhum, essa é nossa casa."
"A casa é minha!"
Quitéria respondeu socando o próprio peito
Com profundo ódio.
"Não é mais." Padilha disse séria.
"Eu construí isso, eu... eu sou a dona!" 
Quiteria falou chorosa.
"Você Madame ganhou rios de dinheiro conosco e agora só porque tem medo de ir parar no fogo, e sim eu sei o que tu faz no porão, vai nós atirar no meio da rua como se não fossemos nada. Com a mesma frieza que você quis nos mandar pra rua da amargura eu estou te mandando pra sepultura."
Padilha atirou no chão na frente de Quitéria 
O vidrinho cheio de pó branco 
Sorrindo e disse mais
"Lembra? Só existe duas opções, ou você é minha aliada ou minha inimiga."
Quitéria ergueu a cabeça 
E olhou para ela
Estava furiosa, os olhos fogueando
De tão vermelhos.
"Ninguém? Ninguém vai me ajudar?"
Quitéria perguntou entre violentas tosses 
Olhando pausadamente para cada uma de nós.
Rosa Vermelha se adiantou e falou
"Vaca velha se esquece que um dia foi Bezerra não é? Nós somos jovens e temos de nos proteger Quitéria."
Quitéria berrou furiosa entre tosses e perdigotos 
Vermelhos de sangue 
"Se proteger? Se proteger pra vocês é morder a mão de quem as alimentou?! Andem! Subam no meu quarto e peguem o antídoto!"
Uma a uma nos viramos o rosto 
Em uma clara negativa.
Quitéria torceu os lábios 
Em uma careta monstruosa
Tornado suas feições delicadas 
Em uma carranca assustadora.
E então um vento frio soprou no salão,
As janela de toda a casa abriram
Batendo com estrondo.
Quitéria ergueu a mão com o dedo 
Apontado para Maria Padilha 
E falou com a voz absolutamente clara 
Berrou tão alto que os lustres tremeram
Com o impacto da voz
"Eu a Amaldiçoo! Eu as Amaldiçoo! Cada uma! Morte! Desgraça! Amaldiçoo, a natureza as vai rejeitar! As vai repudiar! Se existe Diabo no Inferno que ele seja minha testemunha nesta hora! Que o Diabo seja minha testemunha nesta hora! Ouçam bem! Ouçam! Ouçam! Que me escutem os deuses da discórdia! Que me endossem os Deuses da Vingança! Que gravem em pedra a minha maldição! O destino dos malditos é a eterna encruzilhada! Nem céu nem inferno, é aqui no meio do caminho que hão de ficar!
E após dizer isso engatou a rir
Desordenadamente como se estivesse 
Completamente louca,
Jogou a cabeça para trás e gargalhou 
Por um bom tempo,
Eu e as moças trocávamos olhares
Amedrontada com a cena.
No fim ela abriu a boca o maximo que 
É possível escancarar um maxilar 
E soltou um grito agudo 
Enquanto seus olhos reviraram,
Eu cobri meus ouvidos com as mãos 
E me encolhi diante do som aterrador.
Então ela caiu com um baque surdo no assoalho,
Morta.
Mulambo abraçou a si mesma
E falou com a voz trêmula 
"O que nós fizemos..."
E Padilha bateu o pé no chão 
E respondeu "Fizemos o necessário."
Figueira e Rosa Vermelha 
Enrolaram o corpo em uma manta,
A cova ja estava cavada
No meio da mata, em uma clareira.
Quando o ultimo punhado de terra
Foi atirado sobre ela
Nós acreditamos que o assunto 
Estava encerrado.
Mas não estava.
Ela nos perseguiu,a todas nós
De um modo que não me atrevo
A descrever.
Nenhuma reza ou amuleto 
Pode nos proteger da fúria daquela Mulher
E eu atesto isto como verdade
E um dia saberão que sim.
Padilha se tornou a dona da casa
E todas as outras escolheram 
Seus próprios caminhos.
Mas todas nós vivemos assoladas
Pela sombra daquela bruxa
Até o fim dos nossos dias.
Quando o casa ficava escura 
O vulto andava estalando o assoalho.
No reflexo dos espelhos 
Das taças e das garrafas.
Nos cômodos vazios
E principalmente no porão.
Eu não me envergonho de dizer
Que por mais de uma vez
Rezei agarrada a meu terço 
Quando sentia a presença 
Dentro do meu quarto.
E no fim, quando a vida nos abandonou 
E atravessamos para o outro lado 
Tivemos de lidar com ela face a face.





🌹 8. As Pedras Cessaram

E então ela morreu,
E dessa vez foi de verdade.
A porta de vidro da sacada estava trancada,
Ela trancou por fora.
Eu empurrei, bati,
Cheguei a quebrar alguns vidros 
Mas ela apenas olhou para mim e sorriu.
A taça na mão, ela girava como uma bailarina
Em pé sobre o parapeito
Sem se dar conta do enorme perigo.
Ela olhava para a lua e movia os lábios,
estava dizendo algo
Mas não entendi.
Bati mais, chutei a porta inumeras vezes 
Mas então aconteceu.
No auge da bebedeira ela perdeu o equilíbrio.
Seus cabelos revoaram para trás,
A camisola se encheu de vento esvoaçando 
Como a cortina da sala nos ventos de verão
E diante dos meus olhos ela desapareceu.
Desci as escadas rapidamente, 
Corri sentindo meus pés latejarem
Sobre os sapatos de salto alto.
Lá em cima ela voou como uma gaivota, uma águia 
E o que encontrei no jardim
Foi nada além de um corpo, casca vazia.
Ela despencou mais de quinze metros,
Velha demais para resistir 
Ao baque do solo.
Ela já não estava bem fazia muito tempo.
Eu tinha quarenta anos quando cheguei lá,
Rosa Vermelha notando que a minha jornada
Dentro do Cabaré estava no fim
Me ofereceu esse oportunidade,
Ser acompanhante de uma velha louca.
Quando cheguei na mansão 
Mal acreditei,
Era um Palácio.
Estátuas de mármore ladeando portais,
Taças de cristão veneziano,
Sofás forrados com pura seda chinesa.
Mas quando conheci a tal mulher 
Me surpreendi muito.
Conheci sim Madame Helena, a senhora 
A qual eu cuidaria.
Mas nela eu reconheci uma outra pessoa,
Uma mulher que mais de vinte 
Anos atrás foi uma prostituta 
Do mesmo cabaré que eu,
Uma mulher chamada Dama da Noite.
Tinha pra lá de sessenta anos,
Os cabelos brancos como algodão,
O corpo miúdo mas com boa postura.
A primeira vista era uma senhora normal
Da alta sociedade,
Mas a convivência me mostrou que não.
Certa vez os moleques na rua
Acharam uma casa de marimbondos
Em uma árvore bem em frente a mansão,
Na besteira habitual da molecagem
Eles atiravam pedras na arvore
E então corriam rindo.
Procurei Madame Helena, era hora dos remédios,
Mas não achei  em lugar nenhum.
Mas ao entrar na sala de jantar 
Ouvi soluços vindos de debaixo da mesa.
Me abaixei e ergui a toalha,
Lá estava ela, encolhida com 
Os olhos cheios de medo.
Tentei puxar ela para fora 
Mas ela começou a berrar,
Mas não eram berros grosseiros,
Ela não ralhava comigo,
Na verdade os berros eram nada mais 
Que pedidos chorosos 
Implorando que eu não a machucasse.
Fiquei sem saber o que fazer
E mandei o filho da cozinheira ir chamar
Rosa Vermelha no cabaré.
Rosa chegou e se abaixou ali 
Estendeu as mãos para Helena
E disse calmamente "as pedras cessaram, já é seguro sair."
Levamos ela para o quarto
A coloquei na cama e ela adormeceu.
Perguntei a Rosa Vermelha que diabos 
Tinha sido aquilo e ela contou 
"Helena perdeu a mãe muito cedo, ficou sozinha no mundo. Tinha quinze anos, sem proteção alguma os homens da aldeia se aproveitaram, a estupraram. As mulheres da aldeia interpretaram aquilo como promiscuidade, se reuniram para expulsar Helena de lá, e fizeram isso atirando pedras nela. Ela teve de correr, fugir.Por isso o som das pedras na arvore a deixaram assim. Entenda Amélia, Helena suportou muita coisa, passou pelo inferno, mas agora ela transbordou. Tenha paciência com ela, você não faz idéia do que ela viveu."
Eu achava que a minha vida 
Tinha sido horrível 
Mas percebi que comparada a dela
Tinha sido até pacífica.
Os dias correram, os anos correram,
Helena passou a confiar em mim.
Com sua voz fraquinha me contava 
Das coisas de seu passado,
Dos dias em que foi Dama da Noite,
A cortesã Mais aclamada da época,
Dos dias em que foi amante de homens ricos
E de aventuras que viveu.
Ela havia enricado devagar mas substancialmente
A ponto que nunca mais precisou se vender.
Mas o dinheiro não pôde apagar as marcas.
Marcas de profunda violência.
Ela comia pouco mas exigia que a dispensa
Estivesse sempre abarrotada,
Isso é coisa de quem ja passou fome.
Não gostava de esbanjar,
Sempre preocupada em garantir o amanhã 
Como se tivesse medo de voltar 
Aos tempos de necessidade.
Quando completou sessenta e seis anos
Quis fazer uma festa para comemorar.
Peguei o caderno de endereços 
E fui falando nomes de gente granfina
A qual ela devia convidar,
Mas Helena sacudiu a cabeça em negativa 
"Não Amélia, não, não gosto dessa gente. Quero que chame elas, todas elas."
Fiquei confusa "elas quem?"
"Ah... Maria Padilha... Maria Mulambo... Figueira... Sete Saias... Farrapo... Rosa Caveira... ah e claro, Rosa Vermelha. Chame também a Menina Júlia, ela é engraçada, chame Quitéria, mas duvido que ela vem. Ah chame todas, quero uma noite das moças."
Ela falou os nomes com ar tão sonhador
Que mordi os lábios aflita 
Sem saber como falar, mas tive de dizer.
"Helena, Rosa Vermelha e Rosa Caveira eu vou chamar, mas as outras... Helena elas já são falecidas, não lembra?"
"Falecidas ? Ora não seja boba Amélia, que besteira."
Não discuti, mas enviei apenas dois convites.
Rosa Vermelha e Rosa Caveira 
Vieram, beberam com ela
Riram e se foram.
Do madrugada acordei com o som da voz dela,
Helena Ria no salão.
Quando fui ver Helena estava 
Na sala bebendo, fumando e conversando sozinha.
Quando me viu disse
"Olhem essa parva, ela teve a coragem de dizer que vocês não vinham no meu aniversário porque tinham morrido! Há! Veja Amélia, elas vieram sim!"
Olhei em volta mas não vi ninguém.
Fui até ela e fiz companhia 
Até ela dizer que as tais convidadas 
Já tinham partido.
A levei para o quarto,
Ela havia bebido demais, 
Estava trançando as pernas.
Ela me disse que estava com frio 
Pediu mais um coberta.
Abri o armário para pegar 
Mas assim que me virei vi ela 
Saindo pela sacada e trancando a porta.
Corri até lá e pedi que abrisse,
Mas riu marota, encostou a testa no vidro e falou 
"Elas vieram me buscar, eu tenho que ir, o cabaré vai abrir daqui a pouco, não posso me atrasar... eu sou a Dama da Noite, não posso faltar."
E então gargalhou e girou abrindo os braços.
Tentei arrombar a porta 
A tranca de ferro era incorruptível.
Então fiquei aterrorizada quando
A vi subir na grade do parapeito,
Gritei o mais alto que pude, chutei a porta 
Mas ela só ria.
O perigo anunciado aconteceu, ela caiu.
Lá no Jardim enquanto eu vi o corpo caído.
Me abaixei e toquei em seu pulso, nada 
Estava fatidicamente morta.
Suspirei fundo para não chorar,
Eu precisava ser forte afinal estava sozinha,
Mas algo quebrou minha concentração,
Um som, era  música, 
Musica que vinha da casa.
Por instinto me levantei 
E fui até a porta da sala,
Quando abri fiquei sem ar,
Estavam todas ali, dezenas de pessoas 
Pessoas que eu sabia que já estavam mortas.
Todas as moças e muitos rapazes também 
Animados, fumando, bebendo e rindo.
No Centro delas vi a mulher de vestido dourado,
Era ela sem dúvida,
Jovem como nos dias do Cabaré
Sorriu quando me viu,
Já não era Helena, era novamente Dama da Noite.
Me tremi inteira,
Dei dois passos para trás e fechei  porta,
Quando reabri não havia nada
Além da sala escura.
De manhã Rosa Vermelha veio
Contei para ela o que tinha visto
E ela sorriu dizendo que tinha sido
Apenas a minha imaginação.
Mas sei que não.
Sei que Helena, ou melhor Dama da Noite 
Ainda está por ai 
Rindo e dançando
Sem mais sofrimentos
Sem mais dores,
Apenas sendo a Dama da Noite
Como vi naquela sala.






🌹 9. Coroa de Louros 

Eu amei Figueira,
Amei de verdade sabe,
Mas ela era arredia demais
E preferiu o dinheiro ao amor.
Eu não a culpo, imagino que teve
Seus próprios motivos
Afinal era mulher e era sozinha no mundo.
Poderia contar a vocês mil histórias 
De coisas que ela fez,
Maluquices e perigos,
Mas o que mais me marcou 
Foi o que ela fez depois de morta.
Sim eu sei que parece absurdo,
Mas ela já falecida causou uma das 
Cenas mais marcantes da minha vida.
Eu era jardineiro, tal como meu pai e meu avô.
Costumava ir ao cabaré,
Era muito caro ir para o quarto 
Com uma das moças então eu geralmente
Ia só para beber e dar umas risadas,
Sabia que a vida delas não era fácil 
então gostava de ir lá papear.
Foi quando a conheci, uma mulher linda
Com uma postura similar a das Rainhas,
Pescoço longo e cabelos ondulados,
Era como uma estátua de anjo.
Ela era prostituta, mas eu me apaixonei.
Ora não sei explicar como, mas me apaixonei.
Então um dia tive um momento 
Que acreditei ser sorte, só depois 
Descobri que não.
Eu era jardineiro de uma casa de veraneio 
De um Conde Português.
Eu era nascido aqui mesmo 
Mas a terra era da coroa de Portugal,
Eles vinham pra cá sugar o que podiam.
O conde mandou construir a mansão pois
Brasil na época não tinha hotelaria decente.
Naquele dia ela estava passando em frente a casa,
Eu no Jardim podando as roseiras vi
quando ela de repente se sentou 
No meio da rua de terra e ficou 
A se abanar com um leque.
Achei bizarro, nunca tinha visto tal postura,
E então me veio a mente que ela
Poderia estar tendo um passamento.
Corri até lá e de fato estava pálida,
E não estava sentada, ela havia caído.
Ofereci ajuda e esperei recusa
Como faria qualquer dama honrada,
Mas ela era totalmente 
Despachada de salamaleques,
Grudou no meu braço e aceitou 
Que eu a levasse para dentro.
Lá sentada em uma cadeira na cozinha
Servi a ela um copo de água fresco
Tirado da moringa.
Ali descobri que a mulher falava mais
Que um papagaio
"Ora essa, esse calor dos infernos e eu tendo de andar socada dentro de dez quilos de pano! É crinolina, tule, cetim, algodão e renda, e ainda sou amarrada feito um saco de farinha neste espartilho, deus me livre! Queria ter nascido na Áustria, não nessa filial de casa de satanás! Não me admira que eu tenha tido um teto preto, estou fervendo! Fervendo!"
Me encostei na parede respondendo "oh... hum... Pois sim..." 
Sempre que ela parava para tomar folego
Antes de voltar a falar.
Era engraçada aquela uma, era sim senhor.
Mas a falação pausou assim que 
Abriram a porta da cozinha, 
E lá estava o Conde, tinha uns quarenta anos
E uma pança maior que a de uma grávida,
Um louro veneziano, que acho que hoje vocês diram ruivo.
Fiz uma mesura, ela também 
E para a minha desagradável surpresa
O desgraçado sorriu para ela.
Tive de voltar ao serviço 
Mas ela ficou lá papeando com o português 
Até o sol se por,
Ele também era um falador
Então pense na contação de lorotas.
Assim que ela se foi 
Entrei na casa tomado de um profundo ciúme
E contei que ela era prostituta,
Falei em tom para difamar
Crente que o Conde ia se enjoar dela
Mas o maldito deu de ombros e falou 
"Ela é dada a ganhar dinheiro com o corpo sim, ela falou disso. O que importa? Eu também não sou lá muito casto. O que importa é que ela é me diverte."
A história daí fica longa e para mim desagradável,
Mas basta dizer que eles se amaziaram.
Ele ficou ali por uns três anos até
Que teve de voltar a capital.
Os anos passaram, ele vinha as vezes ver ela,
Deu a mansão pra ela e tudo mais.
Porém o destino sorriu, mas sorriu pouco,
Ela foi acometida de um mal raro.
Hemofilia é uma doença que geralmente 
Só acomete os homens,
É muito raro que uma mulher 
Tenha os sintomas, mas ela coitada 
Foi uma destas raras.
Após uma década com o Conde
Ela engravidou.
Isso era esperado uma hora ou outra 
Mas a gravidez não vingou,
Ainda antes da barriga crescer muito 
O bebe morreu
E isso fez a hemofilia atacar.
Foram meses torturantes, 
Os medicos fizeram de tudo mas...
Não tem cura.
Quando chegou na hora crítica 
O conde veio e mandou chamar o padre
Para dar a extrema unção 
E todas aquelas moças do Cabaré
Para darem o adeus.
E é aqui que começa 
As cenas mais marcantes da minha vida.
Quando o padre entrou no quarto 
Estavam lá algumas moças
Entra elas aquela negra exuberante Mulambo
Que chorava mas toda hora mamava
No gargalo de uma garrafa de conhaque,
Rosa Vermelha que estava serena como sempre,
Maria Padilha andando de lá pra cá 
Como se pudesse achar em sua cabeça 
A cura para a doença,
Dama da Noite que fazia anos que eu não via
E parecia uma Dama da Corte
Dando tapinhas no ombro de Figueira 
Como se pudesse consolar.
Sentado em uma poltrona 
No canto estava o Conde e 
Ao lado dele, eu.
O padre olhou espantando para as mulheres 
E falou em tom um tanto rude
"Excelentíssimo Senhor Conde... fui informado que alguém de sua família estava nas ultimas horas e vim dar a bênção. Por favor me leve até essa pessoa."
O Conde apontou para Figueira 
Que estava Pálida afundada no travesseiro
"Ali minha esposa, Dona Lorena Figueira de Boaventura."
O padre arregalou os olhos
"Bo-Boaventura? O senhor que dizer que se casou... com ela?"
Todos nós olhamos para o Conde, 
Era mentira, a esposa dele estava 
Em Portugal, a condessa era viva,
E pela cara do Conde aquilo era uma tramóia.
Sorriu com ar tristonho e acenou para o padre
Se aproximar da cama, e neste momento 
Figueira olhou para mim, com a voz fraca falou
"Simão se lembra do dia que passei mal em frente a casa e você me ajudou? Pois então, não passei mal de calor, não, estava em uma crise de nervos. Uma moça muito nova faleceu no Cabaré, se lembra dela?"
Respondi imediatamente "A Menina?"
Ela assentiu e prosseguiu 
"Ela foi enterrada na mata, lá existe um cemitério não oficial onde se enterraram mulheres como eu. Mas eu não queria que Menina tivesse a mesma desgraça, então fui até a igreja pedir ao padre que permitisse o enterro dela no cemitério da cidade. Em toda a minha vida nunca fui tão humilhada como naquele dia, este padre me disse tantas coisas horrendas e me tocou de lá como um cachorro sarnento. As ultimas palavras dele foram que eu e as minhas jamais teriamos direito a descansar com dignidade, ele se recusa até hoje a nos dar covas dignas."
O padre elevou a voz 
"E a minha posição não mudou, nenhuma de vocês será enterrada no cemitério das almas!"
Então o conde se levantou da poltrona
"Tem razão Padre, ela não será enterrada no cemitério."
O padre sorriu crente que aquilo era apoio
Mas o Conde prosseguiu
"Ela não pode ter uma cova lá, isso é para gente comum. Ela sendo esposa de um Conde e portando uma condessa... onde ela seria enterrada?"
Todos na sala prenderam o ar 
Todos sabíamos a resposta,
Os membros ilustres da sociedade não eram
Enterrados no cemitério,
Eles possuiam a regalia de ser enterrados dentro da igreja,
Se removia o assoalho e a pessoa nobre
Ela sepultada ali diante do altar.
Os olhos do padre flamejaram de ira
"O senhor não está sugerindo que eu a ponha no lugar dos santissimos, está?"
O conde deu um sorriso torto 
"Não estou sugerindo, estou ordenando."
O padre se indignou 
"O senhor não pode me dar ordens!".
"Posso e vou!" 
Com o berro do Conde o Padre se encolheu.
"Mas... Mas..."
"Mas nada! Portugal é um estado católico e lá eu estou sob o julgo da igreja,  mas aqui não é Portugal, aqui é uma colônia e o Papa está muito, muito, muito longe para lhe socorrer. Seu Bispo esta no meu bolso, vive das migalhas que caem da minha mesa, seu arcebispo em Portugal nem sabe que Brasil existe e logo nem sabe sequer seu nome, então se quiser arcar com a minha ira arcará sozinho. Basta dizer a palavra não e conhecerá o inferno ainda em vida. Então eu agora pergunto, minha esposa sera enterrada no lugar dos santissimos, que é a cova que fica disponível para os nobres e que se encontra dentro da igreja sob o assoalho?"
O padre tremia feito bambu verde
"S-sim senhor Conde."
Figueira estava fraca mas 
Não fraca demais para não soltar um
"Ora eu agradeço a sua generosidade."
E todos no quarto riram, todos menos o padre.
Foi a morte menos melancolica que ja vi,
Figueira parecia Nao ter medo de morrer
Por isso apenas aguardou.
Infelizmente não teve de esperar muito,
Suas amigas irmãs ficaram lá por toda 
A semana até o momento chegar.
Figueira não amava o Conde, sei que não,
Mas foi muito amável com ele por aqueles anos,
Mas ainda assim me surpreendi muito
Ao ouvir o choro descontrolado dele
E depois o ver caído aos pés da cama 
Quando ela finalmente se foi.
A carruagem da Funerária chegou,
Trouxeram um caixão de madeira talhada
Com seis alças banhadas a Ouro e 
Na tampa uma coroa de louros dourada
Encrustada na madeira avermelhada.
Tudo foi arrumado,
Na manhã seguinte assim que o sol nasceu 
Estavam todos lá,
As portas da mansão havia umas cem moças 
Todas de negro e cobrindo a cabeça com véus,
Eram as moças do Cabaré da cidade
E também vindas de outros próximos.
O Conde apareceu montado em seu alazão,
Veio em farda azul marinha
Com a faixa verde vermelha e branca cruzando 
O peito onde exibia inúmeras medalhas.
Atrás dele uma comitiva 
De oficiais de baixa patente também a cavalo,
Todos fardados, a maioria carregando 
Coroas de flores 
E dois deles portando estandartes de Portugal.
A carruagem enfeitada com flores de todas 
As cores deu partida,
As mulheres do cabaré iam cantando 
Cânticos a Nossa Senhora 
Como um Grande coral harmonioso.
Assim que chegamos a igreja 
Mais uma surpresa, 
Todas as famílias nobres 
Da cidade estavam lá,
Nenhuma ousou declinar do convite do Conde.
O coral de coroinhas entoou agudos
Cânticos gregorianos que ecoavam
Nas paredes de pedra da igreja,
Os oficiais entraram carregando o caixão.
Quando entrei não pude deixar 
De notar as expressões de profundo horror
Estampadas nas caras dos porcos nobres
Que lotavam a igreja.
As mulheres dos cabarés preferiram não entrar
Mas eu fui acompanhar tudo.
O Padre estava vermelho e falava
Com a voz trêmula,
Fez as leituras tradicionais tremendo as mãos 
Ao mudar as páginas da bíblia.
No fim fez sinal para dois diáconos 
Abrirem  o alçapão diante do altar,
As longas portas de madeira se ergueram 
E o caixão foi abaixado para o buraco 
Sob uma chuva de aplausos que vinham 
Das moças dos Cabarés do lado de fora.
Estava feito, Figueira teve sua Vitória.
Ela não acreditava nos credos do Cristianismo,
Tampouco dava valor a opinião dos beatos 
Mas aquele gesto os forçou a dar a ela
Pelo menos uma vez
Um tratamento digno.
Eu estou velho agora,
O conde ja se foi,
A maioria das moças do cabaré também.
E relembro isto tudo por um unico motivo,
Meu neto mais jovem é coroinha da igreja
E o novo Padre pediu que ele me trouxesse,
Pois então aqui sentando no banco da igreja 
Ele veio me perguntar se eu sabia quem 
Era a pessoa dona do caixão da coroa de louros 
Guarda do no lugar dos santissimos
Pois eu sendo um dos membros mais 
Velhos da comunidade devia saber
Pois aquele era o caixão mais nobre
E não constava nos autos 
Não havia informação além da escritura
Gravada na tampa "Ad Vitam Aeternam"
E devido a reforma do templo 
Ele não sabia o que fazer.
Eu apenas respondi
"Nao mexa no caixão. Padre eu não me lembro o nome dela, mas sei que era da nobreza, quase que uma Rainha, se eu fosse o senhor não moveria nada, talvez um dia alguém nobre reclame e se encontrarem o túmulo vilipendiado..."
O padre acatou meu Conselho
E agora eu me vou pra casa 
Deitar no meu colchão de palha
E sonhar com dona Figueira,
Sonhar com seu sorriso 
E principalmente sua audácia.
Eu ainda a amo
Esteja a onde estiver ainda a amo.




🌹 10. Obrigado Por Tudo

Ela morreu.
Tinha de morrer uma hora,
Ainda mais naquela época 
Onde raro os que chegavam a velhice.
Trabalhei no Cabaré por mais de vinte anos
Até a época em que já não dava mais,
Eu não tinha mais idade 
E principalmente paciência
Para atender os clientes na Prática.
Mas eu era Boa nas finanças,
Fui uma das poucas afortunadas
A ter algum acesso aos estudos.
Primeiramente achei estranho 
Pois era Ela mesma junto com
Rosa Vermelha que faziam a repartição 
Dos lucros 
Mas Padilha estava diferente.
Ela sempre foi altiva, deslumbrante,
E não era absurdamente atraente 
Só por ser uma mulher bonita,
Não, o jeito dela era o que a fazia
Tão especial, era como uma rainha 
Sempre de queixo erguido.
Mas ultimamente estava retraida,
Distraída.
Tudo começou meses antes quando
Mulambo estava no pequeno palco 
Ensaiando antes do cabaré abrir.
Ela começou a cantar a plenos pulmões 
"Dói, dói dói dói dói, um amor faz sofrer, dois amor faz chorar..."
Padilha estava no salão e a corrigiu 
"Sua louca, pare de mudar a musica, é "desamor faz sofrer, dor de amor faz chorar".
Mulambo deu de ombros 
"Acho que do meu jeito é melhor, vai cair na boca do povo você vai ver."
As duas começaram a rir 
Mas no meio da risada Padilha teve 
Uma crise de tosse que a fez perder o fôlego.
Após isso as crises se tornaram frequentes.
Uma noite todas as moças do Cabaré 
Desceram para o salão afim de trabalhar,
Eu já não atendia mais os homens 
Mas ficava no bar, no caixa.
Foi então que o Doutor Chegou,
Doutor Manuel era o Medico da cidade.
Foi até o bar e sorriu para mim,
Achei que ele queria ou bebida ou uma das moças
Mas se debruçou sobre o balcão 
E em voz baixa falou
"Eu vim falar com Dona Padilha, ela mandou me chamar."
Sorri para ele sem entender muito bem 
"Doutor a Dona Padilha já não atende mais, se é que me entende, mas escolha uma das nossas moças, são todas lindíssimas."
Ele me encarou e então pousou 
Sobre o balcão a sua maleta preta de couro,
E um Medico somente levava sua maleta 
Quando ia fazer consulta.
Meu sorriso vacilou quando compreendi,
Ele estava de serviço.
Olhei para a porta do Cabaré e 
Lá estava Miguelito, o rapaz que 
Guiava a carruagem de Padilha,
E ele acenou para mim indicando 
Que ele é quem havia chamado o Doutor.
Levei o Medico para cima até o quarto de Padilha
E Deus me perdoe por ser futriqueira
Mas entrei com ele.
Padilha estava lá,
Mas não era ela mesma,
Estava com círculos roxos em torno dos olhos
E os cabelos oleosos,
Deitada na cama em uma camisola Branca 
Ela parecia outra.
O médico a pôs sentada,
Com examinou a respiração,
Ela tossiu algumas vezes,
Depois a deitou e enfiou as mãos por de baixo
Da camisola, foi fazendo pressão 
Em alguns pontos
Até que ela deu um grito quando
Ele tocou nas costelas.
"Hum... Eu acho que é um tumor no pulmão, ou um coágulo, não sei dizer exatamente mas de toda forma sendo no pulmão é grave."
Ela assentiu desanimada 
"E como eu trato? Como eu me curo?"
O médico a encarou por um longo momento 
Em silêncio
"Bem... Aqui é só uma colonia, não ha opção  de tratamento por estas bandas. Brasil não tem acesso a grandes médicos. Para tratar teria de ir para a Inglaterra ou para a França. Mas eu não acredito que sobreviveria a oitenta dias em um navio."
"Então o senhor está dizendo que não sabe o que tenho e que é para eu simplesmente ficar deitada esperando a morte?"
"Receio que sim."
O médico de foi, Padilha ficou lá na cama 
Olhando para o teto.
Desci com ele e voltei para o bar
Mas não comentei nada com ninguém.
Os dias passaram, Rosa Vermelha e Mulambo
Obviamente sabiam da condição 
E ficavam com ela todo o tempo.
Mas isso começou a cansar Padilha,
Ela odiava ser tratada como uma doente.
Ela sempre foi a líder, a pessoa forte e inabalável
E agora estava sendo tratada como uma 
Boneca de vidro,
Ninguém a deixava sozinha,
Tiraram dela o fumo e o álcool
E nem o espartilho lhe permitiam usar.
Mas isso a aborreceu muito.
Não importava se estava morrendo,
Ela queria viver do jeito que sempre viveu.
Foi então que uma noite ela sumiu,
Simplesmente sumiu do quarto.
Quando Rosa Vermelha soube
Mandou chamar Miguelito para saber
Onde a tinha levado 
Mas ele informou que a carruagem 
Estava no conserto
E que portanto não tinha como
Levar Padilha a canto algum.
Então onde ela estava? Onde?
Mulambo suspirou fundo
E disse no meio de todas
"Eu sei onde. Vamos lá."
Seguimos a pé para a cidade,
Ja estava anoitecendo
Então eu, Mulambo e Rosa 
Que eramos a únicas realmente cientes 
Caminhamos juntas na Estrada de terra,
Chegamos na cidade e Mulambo indicou
O cemitério da Igreja.
Entramos todas juntas 
E ela estava lá, Linda, bem maquiada 
Bebendo licor de menta direto de uma garrafa
E fumando sua cigarrilha favorita.
Estava em pé diante de um tumulo de marmore negro,
Ao me aproximar li o nome "Antenor" na lápide.
Rosa Vermelha se admirou 
"É o tumulo dele, do Tranca Ruas..."
E sim, era o túmulo dele.
Ele e Padilha tiveram uma... História
Se é que assim posso dizer.
Ah os homens em sua maioria são uns porcos,
Mas Tranca Ruas era alguém que valhia a pena sabe,
Então todas nós entedemos
Ela ter ido lá ver a lembrança dele.
Fomos até Padilha, ela estava bêbada
E ria para o túmulo 
Como se visse alguém lá.
Quando nos viu arregalou os olhos
Tentou dizer algo mas cambaleou e caiu ajoelhada.
Nós corremos para acudir,
Ela estava ardendo em febre
Quando levantou do chão deu alguns passos bambos
Mas logo teve de ser amparada por nós.
Ela reclamou dizendo que tinha ido até lá sozinha 
E que estava bem,
Mas era nítido que estava muito mal.
Quando chegamos a entrada do cemitério 
Ela ja não conseguia andar.
Pedimos ajuda a varias pessoas da cidade,
Ao vendedor de quitutes, aos homens do café,
Até aos transeuntes 
Mas ninguém ajudou, 
Ninguém queria ser visto com as prostitutas.
Sim eles iam ao cabaré para desfrutar 
Mas quando nos viam na rua 
Fingiam que não conheciam.
Então aquela mulher estranha se aproximou,
Ela estava bebendo cerveja e nos observando
Mas logo veio Trazendo um lençol Branco,
Era a tal Maria Farrapo, uma com fama de maluca
Mas que veio nos ajudar sem pensar duas vezes.
Não sei de que varal ela roubou aquele lençol 
Mas nós deitamos Padilha nele 
E cada uma pegou em uma ponta,
Suspendemos e começamos a carregar ela pela rua.
Padilha delirava balbuciando coisas sem nexo
E nós iamos em passo largo
Levando ela para casa.
Então o Primero relampago varou o céu
E em instantes a chuva deitou sobre nós.
Os vestidos daquela época eram pesados,
Pelo menos dez quilos de tecido
E agora molhados pesavam o triplo.
Era difícil carregar Padilha encharcada, ainda
Conseguir andar com nossas roupas molhadas 
E pisar no barro lamacento da rua.
Estava muito pesado
Mas nós não desistimos,
Mesmo com as mãos já doendo e formigando
Agarradas ao pano.
Padilha respirava devagar
Eu prestava atenção naquele som de respiração.
Nesta hora uma carroça passou do nosso lado 
Indo pela esttada 
Nós gritamos por ajuda
Mas ignoraram nossos gritos.
Então Mulambo começou a falar
"Vamos lá, estamos chegando, estamos quase lá, não desanimem!"
Nisso Padilha que até agora estava avulsa 
A toda situação de repente falou
"Parem, parem com isso... Me deixem aqui, eu... quero morrer, já é a minha hora..."
Rosa Vermelha retrucou
"Não diga besteiras, vamos te levar pra casa e vai ficar tudo bem, não desista agora!"
Mas Padilha apenas suspirou e respondeu 
"Eu lutei a vida toda, nunca tive um dia sem que tivesse que lutar por mim e pelas outras. Eu estou cansada Rosa, muito cansada. Escutem, escutem isso agora, isso não é  um fim, nós vamos nos ver de novo na hora certa, mas agora meu momento aqui acabou. Fiquem juntas, cuidem da casa... e... não se esqueçam... de mim."
Nisso vi algo que nunca tinha visto antes
E nunca mais tornei a ver,
A Forte e dura Rosa Vermelha
Chorando silenciosamente, não fazia som 
Mas seu queixo tremia
E as lagrimas se juntavan a chuva 
Lavando o seu rosto
Mas ela não soltou a barra do lençol.
Para Rosa chorar era porque algo realmente
Horrível tinha acontecido 
E então percebi  que o som da respiração 
De Padilha tinha parado.
Olhei para ela ali deitada,
Os olhos fechados, pálida, imóvel... Morta.
As lágrimas invadiram meus olhos tambem,
Não pude resistir.
Padilha foi a pessoa que me estendeu a mão 
Nos momentos que eu precisei,
Era dura sim mas sempre a pessoa
Na qual todas nós tínhamos eterna gratidão e confiança.
Me lembrei dela rindo,
Dançando com os rapazes no salão,
Enfrentando perigosos
E sobrevivendo a todos.
Mas infelizmente ninguém é vive para sempre
E ela se foi.
Já era possível ver ao longe 
As luzes do Cabaré
Quando nossa força acabou
E todas caímos ao chão
Sob a chuva torrencial 
Enchendo nossas saias de lama.
Mulambo segurou a cabeça de Padilha 
Como se quisesse proteger do impacto,
Então entre lágrimas falou
"Sua desgraçada, sempre foi minha rival, sempre me enchendo a paciência pondo defeito em tudo... Mas o que vou fazer sem você? Eu... Eu não consigo sozinha... Você não pode me deixar aqui sozinha... Você não é Bruxa? Sempre disse que era... Então volte a vida, volte..."
Mas ela não voltou.
Não existe feitiço para reviver os mortos,
Tudo o que é vivo... Morre.
Ficamos ali no chão tomando fôlego 
Ate que ouvimos o som de passos estalando na lama
E logo elas chegaram, as outras moças do Cabaré 
Que tinham nos visto da varanda e vieram correndo ajudar.
Ninguém disse nada, nem uma palavra.
Eram muitas, e cada uma pegou em uma
Parte da barra do lençol e levantaram Padilha nele,
Rosa Vermelha, Mulambo, Farrapo e eu
Ficamos em pé e mesmo exaustas 
Fizemos questão de também segurar
Na Barra do lençol,
Era um último gesto,
Uma última homenagem a ela.
Um passo de cada vez,
Pé ante pé, nós a carregamos até o fim.
Levamos para dentro da casa 
Onde ela foi limpa e vestida com seu melhor vestido.
No dia seguinte sepultamos ela
Em um cortejo com muitas mais de nós
Vindas de todos os cabarés da região.
Enterramos sim
Mas não só ela,
Naquela cova foi enterrado junto 
Um pedaço de cada uma de nós.
Padilha levou junto nosso coração.
Depois que ela se foi
Muitos contaram sua história, disseram 
Coisas românticas e heroicas,
E sim, ela esteve em situações românticas 
E de bravura mas
Os que falam dela nunca falam da dor.
E foi a dor que fez de Maria Padilha 
Quem ela foi 
E quem ela é.
Todas nós do Cabaré
Tivemos medo de esquecer dela,
De um dia buscar na mente e não achar
Mais aqueles olhos verdes.
Então juntamos dinheiro, 
Cada uma deu um bocado 
E encomendamos uma pintura
De um rapazote que fazia as artes na cidade.
Demorou três meses mas finalmente chegou,
E no grande quadro que penduramos
No salão do Cabaré 
Estava lá ela retratada
Da forma que ela realmente era,
A mulher linda com uma coroa adornando a cabeça 
Maria Padilha, a nossa Rainha.
Um dia eu segui meu rumo,
Fiz minhas malas, me despedi 
De minhas companheiras
E quando desci a escada rumo a saída 
Olhei para aquela pintura
E dela também me despedi.
Obrigada Maria Padilha, Obrigada por tudo.





🌹 11. Você ainda ouvirá Falar de Nós 

O som do fogo crepitando,
Da Madeira em brasa estalando,
Tudo aquilo era tão terrível 
Que eu garanto que não sei como sobrevivi.
Seis meses antes os homens do Rei vieram 
Falar com Dona Rosa Vermelha.
Sei bem pois eu, que era a mais jovem das moças 
Da casa e uma das poucas letradas 
A acompanhei durante o encontro com eles no salão.
Os homens eram da parte do 
Administrador de São Paulo 
Que queria o terreno do casarão 
Para fazer a estrada que ligaria 
A cidade deles com as minas de ouro no norte
E o porto no sul.
Rosa pensou muito, eles voltaram mais duas vezes 
E no fim ela aceitou vender.
Confesso que não fiquei surpresa,
Rosa já tinha pra lá de oitenta anos,
Isso se já não tivesse seus noventa,
Até para descer as escadas ela precisava de ajuda.
Logo o contrato de venda foi lavrado 
E o prazo para a desocupação do imóvel 
Era de sessenta dias.
Uma a uma as moças foram indo,
A maioria implorando a Rosa 
Que não fechasse a casa,
Que mesmo vendendo aquele imóvel 
Comprasse outro e continuasse,
Mas ela foi irredutível em dizer não.
Então todas se foram
Mas não foram de mãos abanando,
Rosa deu a cada uma parte do dinheiro 
Da venda da casa e sendo assim 
Todas partiram satisfeitas.
Mas eu fiquei até o último dia
A pedido dela.
Foi então que aquela noite pavorosa aconteceu,
A última noite do Cabaré.
A lua chegou cheia, era sábado 
De grande calor no mês de Janeiro.
Ela me pediu um favor,
Que eu fosse com ela até o quintal dos fundos 
E que levasse uma pá.
Lá no meio do terreiro 
Ela me pediu para cavar.
Sinceramente achei uma maluquice,
Mas Rosa estava pagando pela minha ajuda
Então fiz o que pediu.
Após alguns golpes na terra 
Ouvi o som ouco de madeira,
Era sem dúvida um baú.
Rosa me observou sentada em 
Uma cadeira velha ali perto
Enquanto eu desenterrava a caixa.
Quando ergui a arca ela falou
"Isso esta enterrado ai a quase sessenta anos."
Perguntei o que era aquilo e ela torceu os lábios 
"Ah... O livro de uma bruxa, o livro de Maria Quitéria."
Olhei espantada para o baú 
Então Rosa mandou levar para dentro,
Para o grande salão.
Coloquei o bau sobre o uma das mesas 
E tentei abrir 
Mas estava selado de um modo que não pude,
Então rosa veio caminhando lentamente 
Com seus passinhos de anciã
E só de se aproximar o baú simplesmente abriu.
Ela foi até ele e retirou de dentro 
Um livro desmantelado de capa de couro 
Folheou e então ergueu o queixo e me encarou dizendo 
"Luana, eu preciso que fique comigo até o máximo que puder. Coisas terríveis vão acontecer está noite, mas eu te peço, e peço por ter confiança, só me deixe quando for a hora certa."
Não entendi mas garanti que ficaria.
Meu erro, eu devia ter saído dali correndo
Mas como eu poderia imaginar?
Rosa apanhou um candelabro sobre uma das mesas
E posicionou o livro sobre a chama
Pronta para queimar,
Fechou os olhos e murmurou 
Alguma reza que não compreendi 
Mas assim que o primeiro fio de fumaça 
Saiu da capa uma voz de mulher
Estrondou no salão 
"Não se atreva!"
Rosa abriu os olhos imediatamente 
E respondeu com a voz forte 
"Eu me atrevo! Quitéria este ciclo acaba aqui, eu sou a última viva, todas ja se foram, só eu restei, e eu vou encerrar com isso aqui e agora."
A voz de Quitéria pareceu tão alta
Que fez a casa estremecer 
"A Casa vai prosseguir, é a minha casa e vai durar para sempre!"
Rosa dessa vez gritou
"Não, não vai! Você fez de todas nós amaldicoadas! Vocês fez de todas nós Bruxas! Nós mantemos em segredo isso por toda a vida, mas agora que minhas irmãs estão mortas eu as vejo, eu as ouço! Maria Padilha não está em paz! Maria Mulambo não está em paz! Nem Figueira, nem Dama da Noite, nem Rosa Caveira, nem Sete Saias! Até sobre Farrapo e Menina tu lançou suas garras! Todas bruxas nascidas na barra da tua saia! Mas eu serei a última! Nenhuma mulher há de entrar nesta casa nunca mais, não, nunca mais alguma pobre alma vai ouvir os seus sussurros! Acaba aqui!" 
Então rosa abaixou o livro até a chama da vela 
Mas antes que pegasse fogo
Uma mulher saiu das sombras, era alta e magra 
Usava um vestido roxo, linda como uma rainha,
E correu como se flutuasse ate Rosa Vermelha,
Agarrou os pulsos dela a impedindo de atear fogo ao livro.
Me encostei em uma das paredes e me encolhi de horror,
Era ela, a bruxa Morta Maria Quitéria!
Aquilo era impossível! Quer dizer,  
Eu ja tinha ouvido lendas sobre fantasmas 
Mas não tinha acreditado até ver com meus próprios olhos.
Quitéria forçava os braços idosos de Rosa Vermelha 
Até que a fez derrubar a vela e o livro,
Mas logo a situação piorou 
Pois outra voz ecoou no salão
"Solte ela! Não toque nela!"
E quando me virei, logo atrás de mim 
estava ela, a mulher que tantas vezes
Admirei na pintura pendurada no salão,
era Maria Padilha, a segunda dona do Cabaré,
Morta a mais de vinte anos.
Ela era deslumbrante 
E se encaminhou até Quitéria 
Que logo soltou os pulsos da Rosa 
E foi peitar a recém chegada.
"Ousa me enfrentar? Maldita! Depois de tudo ainda crê que é galo de briga? Então vamos lá, uma contra a outra."
Antes que Padilha pudesse responder 
Outra voz falou, uma voz fina  
"Ela não está sozinha."
Era uma linda adolescente usando um vestido rosado
Que estava em pé no alto da escada.
Quitéria argueu a cabeça e preguejou
"Menina dos infernos, volte para o buraco sujo que te enterraram, isso não é  da sua conta."
Outra voz ecoou vinda de cima do pequeno palco
"É da conta dela sim, é assunto de todas nós."
Era aquela mulher de vestido Flamenco, Sete Saias.
Nisso o salão teve aparições de todos os espíritos,
Todas as nove estavam presente.
Uma mulher negra de feitio majestoso 
Se aproximou de Quitéria, era a tal Mulambo
"Quitéria pare com isso, já não valhe a pena ficar aqui."
Ela olhou para Mulambo com tristeza
"Mas se eu não puder habitar minha casa... Para onde vou? Sabe que o espírito das feiticeiras não se eleva nem se afunda, permanecemos nesta terra."
Mulambo sorriu gentilmente 
"É você não vê? Há muito o que se fazer ainda nesta terra, pessoas que precisam de nos do outro lado dessas paredes, que precisarão de nós através dos séculos."
Quitéria olhou para Mulambo, depois
Para a idosa Rosa Vermelha e suspirou pesadamente
"Eu não... Ah pelos Deuses... Acha que consegue fazer isso?"
Rosa Vermelha apanhou o livro no chão 
E respondeu com firmeza 
"Eu posso não ser a mais velha, a melhor feiticeira ou a mais rica, mas eu sempre fui a mais forte desta casa."
Todas as nove murmuraram em concordância,
Então Rosa apanhou outra vela em um candelabro perto 
E ergueu novamenteo livro sobre a chama
E então os espíritos  das moças se aproximaram
Ficando em círculo em torno dela
Que começou a atear fogo a capa do livro.
Rosa olhou para o espírito da que estava diante dela,
Uma mulher cujo metade do rosto era crânio exposto 
"Rosa Caveira, minha amiga, já é hora de por o pé na estrada, já é hora de partir, que a encruzilhada seja sua casa!
O espírito de Rosa Caveira tremeluziou
E assim que a capa do livro pegou fogo
Chamas apareceram no topo da escada 
E lamberam corrimão abaixo, era um incêndio.
Rosa Vermelja continuou, olhou agora para aquela 
Adolescente com ar de miss 
"Menina, cara de anjo e coração de serpente, já é hora de abandonar laços e fitas, a encruzilhada é o teu lugar!"
O espírito de menina reluziu e então 
As portas do corredor do andar de cima 
Se abriram todas de uma só só vez 
E os quartos se encheram de fogo.
Rosa Vermelha olhou para Farrapo
"Maria Farrapo, é hora de fazer suas zoadas em outro canto, a encruzilhada te guiará!"
O espírito de farrapo tremeluziu
A várias páginas do livro pegaram fogo
Seguido de chamas se espalhando pelo teto do salão.
Rosa falou alto olhando para a próxima 
"Sete Saias, é hora de girar sua saia em outras freguesias! A encruzilhada te dará o rumo! 
O espírito de Sete Saias tremeluziu 
E as cortinas por de trás do palco arderam em chamas.
Eu sabia que tinha de sair dali, mas minhas pernas
Não obedeceram, fiquei paralizada onde estava 
Vendo o desenrolar da cena.
Rosa Vermelha continuou 
"Dama da Noite, existe muito ouro e prata a sua espera nas casas que já vem. A encruzilhada é tua morada, vá!"
Parte do salão se banhou em chamar imediatamente 
E o livro teve mais páginas queimadas.
"Maria Mulambo eu te digo, serás grande entre as mulheres! A encruzilhada é sua espada, lute!"
O livro foi quase todo tomado por chamas
E uma bola de fogo foi cuspida 
Da porta da cozinha em direção ao salão 
Revelando que lá já ardia.
Rosa prosseguiu Valente mas eu vi
Sangue vazando de suas narinas.
" Figueira, a vencedora! Em verdade vos digo que ainda hoje estaremos soltas no mundo. A encruzilhada é a sua casa agora!"
O espírito de Figueira também tremeluziu 
E todas as mesas a minha volta se tornaram
Como que fornalhas.
O calor do fogo mesmo a alguns metros 
Queimava minha pele.
"Maria Padilha, senhora das Almas! Rainha do coração de muitas! A encruzilhada agora é seu reino!"
O espírito de Maria Padilha reluziu 
E a casa inteira estalou como se agora o fogo
Corresse por dentro das paredes.
O livro agora era quase uma bola de fogo
Na mão de Rosa Vermelha 
Mas ela prosseguiu 
"Maria Quitéria, Feiticeira das agulhas! A encruzilhada é teu enredo, abandone esta casa e vá costurar almas!"
O assoalho do salão foi empurrado para cima
E várias labaredas sairam por entre as frestas das taboas,
Aquilo era fogo no porão com certeza.
O libro era agora uma bola de fogo.
Foi então que Rosa Vermelha caiu ajoelhada
E cuspiu um punhado de sangue pela boca.
Todas as moças juntas deram um passo a frente 
Naquele círculo e apontaram o dedo indicador 
Para rosa Vermelha,
E em um coral de muitas vozes disseram
"Rosa Vermelha, braço de ferro, nós vamos, e se nós vamos, tu que é uma de nós vem também. A encruzilhada te espera."
O corpo idoso de Rosa Vermelha tombou 
Flácido no chão 
E sobre ela pairou a figura de uma mulher 
Lindíssima, era o espírito de Rosa Vermelha 
Que se mostrava no esplendor da juventude.
Ela rapidamente se virou e olhou para mim.
"Luana arraste meu corpo para fora, por favor me sepulte. Saia rapido."
Eu tremia dos pés a cabeça 
Mas caminhei entre as chamas
Que por incrível que pareça
Não me fustigaram.
Elas era todas assombrosas,
Meio transparentes, quase que labaredas.
Engoli seco e puxei o cadáver de Rosa Vermelha 
Pelas axilas, fui arrastando,
A porta se abriu sozinha e assim eu a puxei para fora,
Na varanda peguei o corpo no colo e fui até o meio da rua 
Então me virei e elas estavam lá
Vi as silhuetas delas através do fogo.
Eram as dez primeiras de muitas outras que ainda iriam vir.
A porta do Cabare fechou 
E o casarão em chamas veio abaixo,
Desmoronou em uma explosão de fogo vermelho.
Fiquei ali na rua chamuscada de fuligem
Sem reação.
Coloquei o corpo dela no chão 
E observei a coluna de fumaça que se erguia 
Até as nuvens soltar pequenas brasas vermelhas.
Tive medo que me queimassem, aquelas brasas
Iam chover sobre mim e sobre tudo em volta,
Mas quando caíram fiquei chocada,
Estendi uma mão para frente e apanhei 
Uma delas bem na palma.
Não eram brasas, eram pétalas de rosa, de Rosa Vermelha.
Como podia ser aquilo?
Eu não sei.
Só sei que eu contei para as outras moças 
O que tinha presenciado,
Logo no enterro de dona Rosa eu 
Já comecei a narrar tudo,
E para a minha eterna surpresa
Nenhuma das minhas companheiras duvidou.
O povo do Rei veio e limpou o terreno do Cabaré,
Do Antigo casarão não sobrou nada.
Todos dias eu passava ali para ver a estrada sendo
Pavimentada com paralelepípedos,
E no fim quando ficou pronta eu entendi.
Ali no exato lugar onde um dia havia existido o cabaré 
Não havia uma estrada, haviam duas,
Era o encontro de duas, era uma encruzilhada.
Os anos passaram e eu envelheci,
O tempo não perdoa.
Um dia passava a noite ali por aquela rua
Quando vi uma vela Vermelha acesa 
Bem na calçada diante da encruzilhada,
Ao lado meia dúzia de meninas depositavam flores,
Uma garrafa de vinhos e uma carteira de cigarros.
Achei muito curioso mas nada perguntei,
Segui meu rumo mas então eu senti o cheiro,
Aquela aroma inconfundível de perfume.
Olhei para trás e lá estava ela, as meninas não a viam 
Mas eu vi, Rosa Vermelha no meio da encruzilhada.
Ela caminhou até se aproximar 
E então disse
"Não somos só uma boa história Luana, nós ainda existimos. Você ainda ouvirá falar de nós."
Sorri para ela e me virei para partir 
Mas entao ouvi a gargalhada, 
E não era gargalhada de fantasma, 
Aquilo era voz de gente.
Olhei para atrás e vi cinco daquelas meninas 
Ajoelhada diante de uma, 
E esta uma com as mãos na cintura gargalhava 
E sacodia levemente os ombros.
então ouvi as meninas a saudarem dizendo em coro
"Salve! Salve Rosa Vermelha!"
E Rosa Vermelha através daquele moça 
Responder "boa noite..."




"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini, 2019.

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Espero que tenham gostado
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Muito obrigado































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