Sou Filha de Minha Mãe

 


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Sabe o que me lembra

Mais minha mãe?

Os aniversários.

Sempre fomos pobres

Mas ela juntava dinheiro

O ano todo pra fazer 

Meus bolos de aniversário.

Eram bolos daqueles grandes

Que todo mundo comia

E ainda levava pra casa

Um pedaço pra comer mais tarde.

Minha meninice foi toda

Regada a bolos e guaraná.

Mas um dia eu parei de querer

Festas de aniversário.

Comecei a ficar adolescente

E comecei a sentir vergonha.

Eu tinha vergonha de minha mãe.

Minha mãe era pernambucana,

Preta e... macumbeira,

Vinha gente de todo canto

Pra ela benzer, pra ela rezar.

Dona Marialva de Yemanjá.

Mesmo ali nos anos 70

Quando viemos morar 

Em plena São Paulo

Ela continuava Macumbeira

E continuava exercendo sua fé.

Mesmo quando era ofendida

E excluída, ainda era pé firme

Com suas roupas brancas,

Turbantes e fios de conta.

Então nos anos 80 começou

A passar na TV o programa

do Chico Anysio onde ele

Fazia o personagem "Painho",

Todas as crianças do bairro

Passaram a rir de mim

Porque minha mãe era como ele.

Eu fui me distanciando de 

Minha mãe,

Achei que ela não percebia

Mas ela via tudo.

Não queria sair na rua com ela

Não queria que ninguém

Da escola soubesse que eu

Era filha da macumbeira.

Então de tanta vergonha 

Eu peguei as minhas roupas

De ir ao terreiro e meus fios

De conta e atirei em 

Um terreno baldio afim de

Nunca mais ter que usar.

Eli desprezei o fio de miçangas

douradas e tudo que me ligava

A meu Orixá, Oxum.

A adolescência passou

E eu ja me encaminhava pra

Idade adulta quando

A situação que mais de dói

Aconteceu.

Alguém da rua andou matando

Cachorros e gatos com veneno, 

Os bichos apareciam aos montes,

Mortos e duros.

Os vizinhos imediatamente

Suspeitaram de minha mãe,

Se juntaram na porta de casa

E chamaram a policia.

Eu chegava do trabalho essa hora

Quando vi a multidão ali

E a rádio patrulha na porta,

Minha mãe encolhida chorando

No meio de dois policiais

Que a tratavam de uma maneira 

Muito rude.

Minha mãe chorava e tentava

Explicar que não tinha feito nada,

Mas o povo continuava achando 

Que ela tinha feito "sacrifícios ao diabo"

E coisas do tipo.

Então uma vizinha olhou pra mim

E disse "Não é você que é filha dela?"

E eu prontamente respondi "não".

Dei as costas e sai de perto

Deixando minha mãe sozinha

No meio daquele povo.


Mais tarde quando voltei

Pra casa vi minha mãe lá

Na maquina de costura 

Trabalhando.

Ela não me disse nada,

Nao contou o que tinha 

Acontecido, com um sorriso

Fingiu que estava tudo bem.


Os anos se passaram, 

Me formei professora 

E me casei, 

Fui embora de casa.

Então fiquei grávida e

Minha mãe, agora já velhinha

Vinha todo dia na minha casa

Me ajudar no que podia,

Me acompanhar ao médico.

Vinha vestida sem nada

Que remetesse a religião 

Pois sabia que eu não gostava.

Minha gravidez não foi fácil

Quase perdi o bebê por duas vezes

Estava ja chegando aos nove meses

E minha mãe passou a dormir

na minha casa pois tinha medo

Que eu passasse mal.

Em uma noite que chovia muito

Comecei a sentir as dores,

Pedi a meu marido que me

Levasse ao hospital pois 

Sentia que era a hora.

Mas como? Nosso bairro alagava,

A chuva tomou todas as ruas

No entorno, haviam ruas

Que o alagamento chegava

A um metro e oitenta,

Era impossível passar.

Então minha mãe segurou minha

Mão tranquilamente e disse que

Não tinha o que se preocupar,

Que ela ia fazer o parto.

Eu bem sabia que minha avó

Havia sido parteira em Pernambuco

E que minha mãe também 

Já havia feito alguns partos,

Mas ainda assim me deu medo.

Para quem é homem ou é mulher 

Que não teve filhos sei que não

Vai entender o que digo,

Mas quem é mãe sabe do que estou

Falando, a dor vinha de um jeito

Tão forte e constante que eu

Não agia, apenas fazia o que

Minha mãe pedia.

O parto não acontecia, eu ali

Empurrando e o bebê não saia.

Então minha mãe pegou sua bolsa

E tirou de dentro dela

Dois fios de conta, um de cristal

e um dourado, 

Colocou em mim e disse

"Eu sei que você não gosta delas filha, mas só elas podem te ajudar, elas são mães, elas podem ajudar se você pedir".


E no meu sofrimento máximo

Me agarrei naqueles fios de conta

E clamei pelo socorro de Oxum 

E de Yemanjá.

Minha mãe rezava baixinho,

Já eu gritava pela ajuda delas.

E ai desmaiei.

Então sonhei, eu me vi no meio

De uma multidão de pessoas

Que me olhavam feio

E dois policiais me emparelhando.

Então olhei pra multidão

E vi no meio deles uma mulher 

Tão exuberante, tão linda

Em um vestido dourado, usando

joias e flores no cabelo.

Eu olhei para ela e gritei por ajuda,

Mas então alguém da multidão

perguntou a ela "Não é você que é mãe dela?"

E quando a mulher respondeu,

Não foi a voz dela que ouvi,

Na boca dela saiu a minha voz 

Que disse um alto e sonoro "não".

Então acordei do meu desmaio,

E entendi o quão tola e ingrata eu era

Com minha mãe que estava ali

A meu lado a vida toda.


Olhei para minha mãe

E do fundo do meu coração

Disse:

"Me perdoa mãe, me perdoa por ter lhe deixado sozinha"

Ela apenas balançou

A cabeça disse que

Não tinha nada que perdoar,

Que era coisa passada.

Mas eu disse:

"Pede a elas mãe, elas não vão me ouvir, eu não mereço. Mas se a senhora pedir elas vão vir, pela senhora elas vem!"


Minha mãe me olhou

Então fechou os olhos

E disse com toda a fé

"Se não por ela, por mim, preciso de auxílio minhas mães, preciso salvar minha filha e meu neto".


Nesse momento me senti

Fria, aquela sensação gostosa

De quando o dia é muito quente 

E a gente entra em uma piscina

De água bem fria.

Senti exatamente isso, como

Se estivesse dentro da agua.

A dor passou e meu relaxamento

Só foi interrompido por um som,

O choro do meu bebê.

Minha mãe me entregou 

A criança, um bebê grande

E perfeito, e me disse

"É uma menina, é uma menina linda."

E quando ela me deu

O bebê eu olhei para cima

E vi atras de minha mãe

Duas luzes, duas figuras iluminadas

Que não pude identificar forma

Mas que ao mesmo tempo sabia

Exatamente quem eram.


De manhã

A enchente abaixou e

O carro ja podia passar,

Tínhamos de ir ao hospital.

Meu marido me ajudou a sair

E chegando na calçada,

Antes de entrar no carro

Uma vizinha, a mais fofoqueira

Da rua, veio correndo

Ver o bebê.

Imediatamente bateu o olho

Nos fios de conta que ainda

Estavam em meu pescoço

E perguntou:

"Não sabia que você era macumbeira"

E eu respirei fundo,

Sugurei na mão de minha mãe

E respondi:

"Eu sou, sempre fui, sou filha de minha mãe."


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Felipe Caprini, Memórias de Terreiro

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Muito obrigado!

Comentários

  1. Felipe vc não tem ideia de como eu chorei quando li sobre as festas de aniversário e bolos, pois minha mãe é pernambucana e faz o mesmo, sds.. ��

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