Búfalo Sandara - Capítulo 13
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Queridos leitores,
Antes da história começar se faz necessário contar a vocês uma lenda de Candomblé. Ora essa, eu sei que a maioria de vocês leitores desse conto são do Candomblé, mas há aqueles leitores que não são e portanto não sabem destes mitos.
Se conta que os Orixás muitas vezes encarnaram em corpos humanos, viveram como gente nesta terra. Em uma destas vidas dois Orixás femininos nasceram como irmãs, eram Oxum e Oyá, viviam como princesas na cidade de Ijimu.
Oxum desde muito cedo aprendeu a lidar com feitiçaria, já Oyá nesta vida não era dada ao sobrenatural, gostava mesmo era de viver de modo simples.
Oxum era extremamente vaidosa, constantemente elogiada e admirada, já Oyá não era dada a vaidades, vivia vestida de forma singela.
Certo dia Oyá entrou no quarto de Oxum e ficou impressionada com um artefato, um espelho de metal polido. Oyá nunca antes havia visto seu reflexo no espelho e ali naquele momento descobriu que era bonita. Ao se mirar, nasceu dentro de si uma vontade de ficar ainda mais bela, e ela então se banhou e se adornou com boas roupas e jóias cheias de pedras preciosas.
Logo o povo da cidade estava a dizer que Oyá era mais bela que Oxum.
Oxum não gostou disto, odiou ter concorrência no quesito beleza, isso para ela era algo que jamais havia acontecido antes.
Tomou então uma atitude drástica, foi ter com Ikú (a morte) e a ela pediu que produzisse um presente para Oyá, que iku fizesse um espelho. Iku fez, entregou a Oxum o espelho de metal negro coberto por um manto e orientou que ela não olhasse. Oxum assim fez, levou o espelho para o quarto de Oyá.
Quando Oyá entrou e viu aquela grande coisa coberta pela manta, obviamente que a descobriu, e então mirou o espelho. Oxum que aguardava do lado de fora do quarto, ao ouvir os berros correu e trancou a porta. Oyá berrava pois o que via no espelho não era seu reflexo, não, o que o espelho mostrava eram as coisas mais terríveis, mais imundas e cruéis já feitas no universo. Ninguém sabe dizer exatamente o que eram essas coisas, nem mesmo Oyá ousa relatar, mas o que se sabe é que a alma divina não suportou estar naquela presença, tentou sair do quarto mas não conseguia abrir a porta, e então ela como sendo deusa logo deixou o corpo de carne e sua alma fugiu para o Orun. Quando encontraram o corpo morto desta Oyá, perceberam que era o espelho a causa do mal, e para todo sempre ele foi mantido longe dos olhos de qualquer um.
Tendo em mente está lenda, vamos então adentrar ao capítulo de hoje:
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☆I
Sandara sorriu para a feiticeira, Saramagbo era uma mulher petulante, arrogante e orgulhosa, porém inegavelmente engraçada.
— Você fala de coisas que não compreendo. Sabe, nunca entendo as palavras que saem da boca de vocês. — Comentou Sandara.
Ela sorriu delicadamente piscando as pestanas.
— Meu caro, lhe tenho em mais alta estima, mas você é homem, e sinto muito dizer, choverá pregos o dia que um homem puder ter a agilidade mental como a de uma mulher. Você não compreender é normal.
Sandara ia responder aquele gracejo mas parou no ímpeto de falar quando observou a cabeça da feiticeira se virar para o leste com uma expressão atônita.
— *Ajé Akepá*... — ela sussurrou.
— O quê? — ele perguntou mas não houve resposta.
Saramagbo se ergueu do assento com tamanha agilidade que o ar deslocado por suas asas empurrou Sandara para trás, ela planou como uma águia floresta a dentro, o corpo a centímetros do chão.
Sandara a seguiu com passos largos mas quando ouviu os berros agudos passou a correr.
— Pela fúria de Iyá *Oro-Modi-Modi*... — Saramagbo falou pasma com a cena.
Sandara a alcançou em poucos segundos e também ficou pasmo ao ver aquilo, em um círculo perfeito estavam caídos os corpos de muitas mulheres pássaro que berravam e se debatiam como galinhas agonizando, no centro do círculo haviam duas figuras, uma em pé e outra caída abraçando o próprio corpo a urrando a plenos pulmões.
— É... É o Ed...
— Ed? — Saramagbo olhou para Sandara — O seu amado Edmundo?
— Ele mesmo.
— Que interessante... ele tem os dons obscuros de Oxum... você sabia?
— Sabia... sabia mas nunca tinha visto em ação.
— Impressionante. Não é um décimo do que Oxum é capaz mas ainda assim é impressionante. Vá lá e faça ele parar com isso, senão eu mesma irei.
Sandara temeu, Saramagbo era uma feiticeira de poder equivalente a dos Orixás e ao contrário deles ela não possuía qualquer senso de ética e isso a tornava extremamente perigosa.
— Ed! Ed olhe pra mim! — gritou mas Edmundo não se manifestou.
Sandara estava firme, costas eretas e face em uma mascara de determinação, mas por dentro o coração batia rapido, a aura que envolvia o lugar era demasiado pesada. Ele se aproximou enrolando a capa de couro de búfalo a cintura pois até aquele momento se encontrava nu.
— Ed! Ed olhe pra mim! Sou eu, Sandara! Você tem que se acalmar!
Mas ele disse isto sem crer realmente que o rapaz se acalmaria. Lembrou-se de ouvir muitos anos atrás uma conversa de Zeniba com Enobária, a conversa era sobre as origens de Edmundo. A frase mais marcante da conversa ainda ecoava em sua memória, Enobária falou a irmã aos sussurros "ele tem dons fantasticos, mas descontrolou, os pai fazia umas maldades com o menino sabe, então um dia os poderes dele despertaram, o homem literalmente gritou até morrer afogado em dor excruciante, Edmundo é fantástico mas... não se controla.".
Pedir calma a ele era inútil. Quem sabe então um susto? Um choque?
Sandara se aproximou mais.
— Ed, sou eu, sei que você lembra de mim? Sou o homem que você... amava.
Edmundo desviou o olhar de Tanya e lentamente seus olhos encontraram os de Sandara.
Que visão aterradora!
Sandara viu o rosto de seu amado transfigurado em uma mascara cinza e de fixa expressão sádica, e então sentiu, sim não há como dizer exatamente o que ele sentiu mas foi algo como a sensação de ter mil pregos enfiados em seu corpo e em seguida ter uma corrente elétrica adentrando pelas pontas dos dedos e pela língua, sentia os ossos rachando por dentro do corpo, uma espada em brasa adentrando pelo ânus, os cabelos sendo arrancados com puxões violentos e os olhos lavados com ácido sulfúrico.
Saramagbo revirou os olhos de chateação ao ver Sandara ali caindo e berrando tal qual um bebê com as fraldas sujas — Que decepção... — , caminhou a passos largos para frente na direção de Edmundo.
— *Omokunrin*, pare com essa besteira. — disse impaciente.
Edmundo a encarou com os olhos arregalados, a beleza da mulher fisgou sua atenção, após alguns segundos a expressão em seu rosto passou de alucinada a surpresa pois Saramagbo não caiu e muito menos berrou.
— Não tente lançar esse truque idiota em mim, pare com isso antes que esses imbecis — ela apontou para Tanya e depois para Sandara — morram, eles ainda são feitos de carne, podem acabar tendo um enfarte.
— Porque você não cai? — A voz de Edmundo era baixa e rouca.
— Porque eu sou uma Iyami, você esperava me nocautear com um feitiço de sofrimento? Somos imunes a magia fraca.
— Elas caíram. — ele apontou para uma das mulheres pássaro que batia a cabeça no chão repetidas vezes para tentar afastar a dor.
— Elas não são Iyami.
— Não?
— Você tem muito o que aprender rapaz... Veja bem, nós somos duzentas e uma feiticeiras, sessenta e seis brancas, sessenta e seis vermelhas, sessenta e seis negras, uma princesa vermelha, que no caso sou eu, uma princesa negra que no caso é minha irmã, e uma rainha branca, que é minha mãe. Nós somos um grupo muito agitado, acabamos... matando umas as outras de vez em quando, então preenchemos nossas fileiras com candidatas dignas, mulheres que quando vivas foram feiticeiras na terra. Essas que você habilmente derrubou são digamos que estagiárias, poderão um dia ser Iyami mas no momento não são nada além de almas perturbadas. Agora pare com esse feitiço antes que eu faça parar.
— E quem lhe disse que eu quero parar? — Edmundo abriu um largo sorriso cheio de dentes cor de chumbo.
— Ah... entendo... Você é portador desta magia mas não de faculdades para controla-la.
— Eureka.
— Então vou ter de parar você sozinha.
— Tente. — Edmundo abriu ainda mais o sorriso.
Saramagbo ergueu o braço acima da cabeça e com a mão inclinada com o dedo indicador apontando para Edmundo falou suavemente:
— *Iwolulẹ*.
A primeiro momento não aconteceu nada, mas de repente Edmundo ouviu um zurro estridente e sentiu um puxão nas costas, imediatamente se viu sendo arremessado para o alto, ao olhar para baixo viu a floresta ficando pequena, seu corpo subia a toda no ar, quando estava a uns cinquenta metros de altura começou a descer mas de repente seu corpo foi empurrado para cima novamente por uma violenta lufada de ar quente, tão quente que ardeu sua pele, semicerrando os olhos ele viu a parte da floresta a que estava a pouco explodir em uma novem de fumaça, troncos de árvores eram empurrados para longe, corpos de mulheres pássaros desacoradas eram lançados a grandes distâncias, a destruição era tão massiva que a nuvem de poeira logo o atingiu nas alturas. Começou a cair, sentiu uma lasca de madeira cortar-lhe a face, estava pronto para o impacto com a terra quando de repente o colarinho de sua roupa foi suspenso, o tranco foi tão forte que parte do robe rasgou mas ainda assim não despedaçou, com o tranco no corpo Edmundo se livrou do transe causado pelo descontrole do uso de seu dom, assustado olhou para cima viu os beiços enegrecidos do búfalo e percebeu que... ele voava, sim Búfalo Sandara podia voar. Com todo cuidado o búfalo desceu até o solo e pousou Edmundo no centro do que agora era uma cratera.
☆II
Meli estava revigorada, havia se alimentado bem, tomado um demorado banho em banheira de espuma, recebido roupas novas e dormido por muitas horas em uma enorme cama em um quarto reservado a hóspedes.
Kikelomo entrou sorrateiro, viu a menina sentada na beira da cama penteando a boneca de porcelana.
— Ela nunca mais falou nada?
— Nada. Mais sei que ta qui dento.
— Onde está a roupa da boneca? — perguntou subindo no colchão.
— Meli lavo, tava muto suja. — ela respondeu.
— Muito bom. Escute Meli, tenho de lhe falar uma coisa.
— Que é? — Ela olhou para o macaco.
— Nós temos de fazer uma viagem...
— No quelo mais anda, mo pé dói. — franziu os labios em um bico de chateação.
— Não iremos andar, há uma meio de viajar sem precisar ir a pé.
— Calo? Tlem?
— Não, não é carro nem trem, é coisa de magia.
— Hum... meló assim.
— De fato é melhor, mas... nós vamos viajar através de magia profunda, e como você é detentora de poder eu não posso lhe obrigar a ir, você tem de estar de acordo.
— Donde é que nós vai?
— Vamos para a casa de Ikú.
— Ikú? A molte? — Meli se espantou.
— Ai eu não aguentando isso, esse jeito dela falar me irrita! — Cecélia entrou no quarto batendo a porta ao passar e estalando os saltos finos da sandália no piso, estendeu a mão para Meli exibindo ali um vidrinho cheio de líquido verde escuro. — Ande, beba isso.
— Que é isso?
— é *òògùn*, feito com valeriana colhida no inferno, asiménia-glóssa do jardim das Pythonisas e Malvarisco que roubei da Horta pessoal de Oyá, as três ervas juntas dão fluidez para a língua independente do que a tenha prendido.
— Como você conseguiu valeriana do inferno? — Kikelomo se espantou.
— Lembra da velha Nabucodonosor?
— Não me diga que...
— Digo, ela tem um metodo de correio extremamente eficiente. Agora beba menina, você precisa se expressar bem quando entrarmos no Palácio.
Meli virou o vidrinho na boca, não tinha gosto de coisa alguma, passou direto pela garganta.
— Agora me diga com clareza alguma coisa, vamos ver, descreva o que está pintado ali. — Cecélia apontou para um quadro na parede.
— Vejo ali uma mulher negra de vestido azul claro com uma coroa de prata e segurando um buquê de Rosas brancas. — Meli respondeu pronunciando as palavras com a elegância de uma locutora de rádio.
— Espantoso... — Disse Kikelomo.
— Não se espante com meus dons — Cecélia se gabou — Agora Meli, olhe bem para esse quadro, essa mulher é Rasoherina, a rainha de Ifofodo, nós teremos de nos encontrar com ela, e acredite quando digo que ela é uma puta, uma vaca, uma desgraçada...
— Ela é sua irmã. — Meli disse com toda a certeza.
Cecélia ergueu as sobrancelhas surpresa.
— Vejo que você possui o talento de Yemanja para pegar informações no ar, está certa, eu sou irmã de Rasoherina, e por isso sei melhor do que ninguém quem ela é.
☆III
— Me solte Sandara! Me solte já! Fique longe de mim! — Edmundo berrou se debatendo.
Sandara em forma de búfalo largou o rapaz a meio metro do chão o deixando cair sentado em cima de escombros.
— Pare de gritar seu grande idiota, me ajude a sair daqui! — Tanya berrou.
Edmundo olhou em volta e viu um braço metálico acenando freneticamente, correu e se deparou com Tanya soterrada, apenas o rosto e um braço livres.
— Eu vou tirar você daí! Calma!
— Você não aguenta, deixe que eu tiro. — Disse Sandara agora em forma humana, apanhou a mão de Tanya e a puxou com força para cima, logo ela estava livre do entulho que a prendia.
— Obrigada cara, e você não grite com ele — ela se dirigiu a Edmundo — Se ele não tivesse se transformado em búfalo e te jogado pra cima, você agora seria uma poça de sangue, a bruxa estava mirando a urucubaca em você!
— Em mim? Você me jogou pra cima? Como foi tão rápido? Eu nem vi.
— Eu sou filho da senhora dos raios, a velocidade não é um questão para mim. — Sandara respondeu de costas.
Edmundo percebeu que ele mantinha a face de encontro a mulher alada.
— Acho que exagerei... — Saramagbo apareceu intacta sentada sobre o tronco tombado de uma árvore — Minhas subordinadas fugiram desesperadas, acharam que eu não iria polpa-las de meu próprio ataque.
— E você iria? — Perguntou Sandara.
— Não. — Ela respondeu com voz aguda — Mas agora tenho de concluir meu intento, venha cá garoto, vou lidar contigo.
Edmundo sentiu o corpo se elevar no ar como se ganchos o suspendesse pelas axilas.
— Deixe ele em paz! — Sandara berrou segurando o amado pela cintura e o forçando para baixo sem sucesso.
— Ele ousou atacar uma Iyami, sim, eu não caí sob aquele feitiço mas de toda forma me causou dor, sou forte o suficiente para resistir, porém ainda assim ele tem de pagar a afronta. Eu devia lhe castigar também Sandara, se não tivesse se transformado em Búfalo e tirado o rapaz do alvo eu o teria explodido como um porco rechado de pólvora, mas serei benevolente, não hei de te ferir e não se preocupe, não vou destruir a alma dele, vou só torturar um pouco, quem sabe arranchar a pele das pernas dele, eu amo comer pele humana frita em azeite branco.
— Mãe! Mãe! — Sandara berrou se agarrando com toda a força a cintura de Edmundo.
Tanya em sua forma de aço tentou se aproximar para também conter Edmundo que agora era arrastado pelo ar em direção a Saramagbo, mas a feiticeira com um breve aceno da mão a lançou longe.
— Não adianta gritar por sua mãe, ela não vai vir lhe ajudar, Orixás não se importam com tipos como vocês, Oyá não virá.
— É mesmo?
A feiticeira moveu a cabeça lentamente até olhar para seu lado direito, ali estava uma mulher surpreendentemente incomum, vestia-se com seda marrom enrolada no corpo em estilo de *saree*, seu cabelo trançado estava preso em um coque muito cheio no alto da cabeça, tinha muitas pulseiras de cobre avermelhado nos pulsos, em uma mão portava uma espada mas o mais ameaçador era seu olhar que reluzia como o fogo.
— Oyá? — Saramagbo não se dignou a fazer reverências.
— Que pensa que esta a fazer? Diga Abutre de chaminé, como ousa falar por mim? Solte o rapaz. — A deusa falou movendo com graça os fartos labios cobertos de batom vermelho.
Saramagbo moveu a mão displicentemente e Edmundo caiu sendo abraçado por Sandara.
— Porque se importa? Ele não é seu filho e nem essa é a sua terra. — Disse a feiticeira.
— Oxum vai chegar aqui em breve. — Oyá falou.
— Então porque veio meter o bedelho? Essa terra é dela, se alguém tem de...
— Ora cale essa boca! Se eu fosse deixar por conta de Oxum, quando ela chegasse você provavelmente teria matado o rapaz e depois fugido para debaixo da saia de sua mãe, então eu devo impedir que isso aconteça. Ande, suma daqui.
— Iyagba, você não pode me expulsar.
— Eu não vou repetir, suma!
— Pois eu não vou...
A feiticeira não pôde terminar a fala, quando deu por si tinha a lamina da espada fincada no peito bem entre os seios.
— Isso não vai te destruir mas vai causar uma dor lancinante. — Disse a deusa segurando o cabo da espada com força.
— Sua... maldita... a minha mãe... — Saramagbo olhava horrorizada para o ferro em seu peito.
— Diga a Odú que se ela quiser tirar satisfação sobre eu ter ferido sua filhinha, que venha!
— Nós... somos... mais poderosas... que... Você! — Saramagbo arfou tentando empurrar a lamina para fora de sua caixa torácica.
— Eu sei que vocês Iyami são fortes, mas eu não tenho medo de guerra. Escute Saramagbo, eu estou neste mundo pra matar ou pra morrer, não pra ter medo de você ou de sua família de penosas. Volte para seu ninho de palha e se recolha na vergonha de ser uma covarde.
A lâmina de Oyá bateu com um baque seco no tronco onde a feiticeira estava a pouco, Saramagbo desaparecera em um piscar de olhos. Oyá ergue a cabeça e gritou aos céus:
— Eu disse, uma covarde! Fuja Saramagbo! Fuja sua galinha de merda!
— É... ela fugiu mesmo... — Tanya se admirou.
— Olha essa bagunça... — Oyá olhou em volta — Oxum vai ficar mordida quando ver o que as galinhas fizeram nas terras dela... uma ferida deste tamanho na mata é algo extremamente triste.
— Mãe! — Sandara correu até Oyá.
Edmundo e Tanya ficaram supresos com a atitude, ele invés de se por ao chão em reverência, correu e se atirou sobre a deusa em um abraço apertado, ela imediatamente retribui o abraço rindo.
— Você raramente me chama, então quando chamou eu já sabia que era algo sério.
— Obrigado mãe, se a senhora não viesse...
— Saramagbo teria feito uma feijoada com as pernas do seu *ọrẹkunrin*?
— Acho que sim... — Sandara sorriu, deu um passo para trás, se inclinou e beijou a mão de Oyá.
☆IV
Kikelomo bufou insatisfeito olhando para o par de tecidos vermelhos dispostos sobre o sofá, era de fato belissimos, dois grandes cortes de algodão egípcio no tamanho de lençóis.
— Eu odeio ter de fazer isso. — Disse ele revoltado.
— Por Olodumare, acha mesmo que Rasoherina vai receber um macaco Kolobô dentro do Palácio? Ela tem horror a sua mãe e consequentemente a toda a sua espécie. Vocês ainda estão em guerra com Ifofodo.
Kikelomo abaixou o rosto a começou a cantarolar baixinho em ritmo de canção de ninar:
— *Emi ni ọbọ, Emi ti o gbọdọ jẹ ọkunrin, ti o wọ ẹlẹdẹ, ti o tan ẹnikẹni ti o ri mi jẹ... Emi ni ọbọ, Emi ti o gbọdọ jẹ ọkunrin, ti o wọ ẹlẹdẹ, ti o tan ẹnikẹni ti o ri mi jẹ...*
Após repetir o cântico sete vezes o corpo do macaco começou a aumentar, se tornou mais esguio, os pelos foram sugados para dentro do corpo, a cabeça se alongou, os polegares dos pés desapareçam e os dedos se rearranjaram, quando ficou em pé ele era um homem, um ser humano perfeito, sua pele preta era manchada de branco nos exatos lugares onde a pelagem de macaco era alva porém aos olhos de qualquer pessoa aquilo passaria por vitiligo sem levantar suspeitas.
— Sinto nojo de mim mesmo. — comentou examinando as mãos grandes e humanas.
— Que lisonjeiro de sua parte deixar tão frisado seu nojo por nós humanos. — Cecélia apanhou os tecidos sobre o sofá.
— Além de tudo ainda vou ter de usar roupas...
— Claro que vai, este tecido maior é para fazer o *sarongue* e o menor para o *alaká*, eu vou lhe vestir, venha.
Cecélia enrolou habilmente o tecido na cintura do agora homem kikelomo fazendo ali uma perfeita saia Sarongue, depois dobrou o segundo tecido em uma faixa e o deixou caído sobre o ombro direito transpassando pelo tronco e acabando em um nó folgado junto ao quadril.
— Me diga, a menina sabe o que vai acontecer? Quero dizer, você vai levar ela para a casa de Ikú, mas ela sabe o motivo?
— Não. Ela acha que lá é um lugar seguro para manter a mãe dela, a mulher presa dentro da boneca, só isso. — Kikelomo passou as mãos pela cabeça raspada fazendo mais uma careta de desgosto.
— Mas não é isso que vai acontecer não é? O que vão fazer na casa de Ikú?
— Dar um motivo para Sandara se juntar a nós.
— Há... eu ja entendi tudo.
— Entendeu? — Ele se admirou.
— Claro... — Cecélia se aproximou a falou ao pé do ouvido — Você vai ameaçar atirar a menina no *daradara-opin*, destruir a alma dela por completo. Imagino que a mulher presa dentro da boneca seja Enobária...
— Você é perspicaz...
— Apenas lógica, sempre soube que aquilo era Enobária.
— Achei que soubesse iria tentar quebrar a boneca. Você e ela sempre se odiaram.
— O único ser que gosta daquele lixo é Yewá, mais ninguém suporta Enobária. Mas eu... tenho meus motivos para querar ela viva de novo.
— Vai começar aquele papo bizarro de novo?
— Fique tranquilo, não sou repetitiva. E é obvio que em uma trama envolvendo dois dos filhos adotivos de Enobária ela estaria no meio. Eu aposto que você quer usar a capa de couro de búfalo que Oyá deu a Sandara, aquela capa pode metamorfosear qualquer pessoa, não só em bufalo mas no que se imaginar, inclusive transformar uma boneca em uma mulher... estou enganada?
— Não está.
Cecélia se afastou e apanhou sobre a mesinha de chá um colar de pedras verdes.
— E imagino que após ter a capa, você e Enobária vão de qualquer modo atirar Meli e Sandara no daradara-opin...
— Possivelmente. O que é isso? Esmeraldas?
— Smeraldinas... — ela colocou o colar no pescoço de Kikelomo — um presente.
— E porque me presenteia com algo tão caro? Esmeraldas levam milhares de anos para se formar no solo do Ayê.
— É um sinal, vamos dizer um convite para o futuro. Haverá um futuro glorioso banhando a luz verde.
— Futuro glorioso?
— Uma nova era... a quarta era.
— Quarta era? Do que está falando Cecélia? Você vai começar com as bizarrices? Acabou de dizer que não era repetitiva.
— Eu menti. A primeira era foi quando o grande Sé criou os mundos e os dragões, a segunda era foi quando os deuses governaram as raças inferiores...
— Como por exemplo Você, humana de raça inferior.
— Vou ignorar isso nao quero me zangar. Mas prosseguindo, nós vivemos a terceira Era, a era do Cristianismo. A querta Era virá, é inevitavel. Mas não pense nisso agora.
— Você é muito esquisita Cecélia.
— Sim sou, e amo ser assim. Agora vá chamar a menina, temos de ir, Rasoherina costuma jantar antes antes do sol se por, e essa é a nossa única chance de entrar no palácio.
☆V
— É uma satisfação estar em sua presença, Iya Mesan L'orun. — Edmundo e Tanya foram ao chão em reverência a Oyá.
— Eles são bem educadinhos... — A deusa comentou com Sandara — e vocês ja se acertaram? Já deram uma amassos? — ela piscou para o filho.
— Mãe... nós não tivemos chance nem de trocar meia dúzia de palavras, a coisa aconteceu tão rapido que...
— Não há o que acertar. — Edmundo falou bruscamente, então olhou para Oyá e abaixou o rosto — Desculpe.
— Você não quer nem conversar Comigo? — Sandara perguntou.
— Não.
— Cara ele salvou sua vida, e já é a segunda vez. — Tanya comentou.
— Agradeço, mas eu tenho mais o que fazer, tenho de ir até Yemanjá e...
— Mas você — Oyá agora se dirigiu a Edmundo — já não está ciente da inocência de meu filho na chacina de sua família?
Edmundo já com as orelhas muito vermelhas respondeu olhando para os pés.
— Sim, eu já soube disso.
— Então você e meu filho vão ser um casal de novo?
— De modo algum! Eu jamais... — Ele parou quando percebeu que havia gritado.
— Que descontrole...
— A senhora não compreende... nós humanos temos pontos de vista...
Oyá piscou para Sandara e ele anuiu, depois ela olhou fixamente para Edmundo, tinha as sobrancelhas juntas ao analisar o rapaz.
— Você é o quê? Um eunuco? Um capado? Ou uma garotinha melindrosa?
— Senhora? — Edmundo a olhou espantado com o linguajar.
— Se o homem está aqui na frente, o homem que você ama, e eu sei que ama pois posso ver o rosto dele estampado em todos os seus pensamentos, qual é o caralho que te impede?
— O quê? — Edmundo se espantou.
— Mas que caralho, porque me olha assim? Ah já sei, é por eu falar uma palavrões que se espanta?
— Eu... eu não sabia que... quero dizer, hum, é que fui ensinado que todos os santos...
— SANTOS? — Oyá tornou um rosto uma máscara de deboche.
— É modo de dizer, eu quis dizer Orixás...
— Brasileiros sendo brasileiros... Olha aqui, sei que vocês adoram essas porras de Santos católicos, mas eu não sou a filha-de-uma-puta da tal Santa Bárbara. Espera ai, veja se pareço som aquela sonsa. — Oyá apanhou o cabo da espada com a mão esquerda e magicamente fez aparecer uma taça de ouro na direita, encurvou um pouco as costas e inclinando levemente a cabeça fez no rosto uma expressão tal qual de um retardado mental olhando para o nada — E então? Pareço ela?
— Não senhora. — Edmundo respondeu muito constrangido enquanto Tanya e Sandara riam da zombaria da deusa.
— Você sabe porque eu desgosto de ser comparada com a Bárbara? Não precisa fazer essa cara de parvo, eu não gosto pois acabei por conhecer a sonsa, é, ela está preservada, quero dizer a alma dela, e eu a conheci em um lugar chamado "seio de Abraão", que é onde o tal Jesus mora agora, um vale florido onde o pai dele o colocou. Quando vocês brasileiros vieram com essa onda de sincretismo católico eu primeiramente achei bem um barato, Oxum ficou puta com o povo lhe chamando de Aparecida, mesmo que ela seja bem "Aparecida" se é que me entendem, mas eu adoro essas ondas novas que os humanos criam, ai fui atras de saber quem era a Bárbara, e... olhe meu caro basta dizer que peguei nojo da fulana.
— Más porque mãe? — Sandara perguntou contendo o riso.
— A fodida é de fato santa! Eu digo literalmente, ela quando era viva foi martirizada sabe? Os turcos queriam que negasse a fé cristã, ela não quis, então arrancaram-lhe os dois peitos. Vocês creem que a rapariga até hoje não tem os peitos?
— Mas quando se morre... a alma pode ostentar uma versão perfeita da imagem humana, não pode senhora? Pessoas que por exemplo foram carbonizadas, quando acordam nos mundos espirituais tem ali a sua aparencia intacta, estou certa? — Tanya perguntou.
— Sim está, mas a santa se orgulha de ter perdido os peitos em nome do Cristo! Dá pra entender? Ora se na época em que eu era humana alguém me dissesse "ou você nega a olodumare e professa que a dona creuza vendedora de batatas é a verdadeira deusa ou lhe arranco os peitos" eu gritaria "Ave Creuza! Como ela não tem ninguém!".
Sandara e Tanya gargalharam, Edmundo esboçou um sorriso ainda muito surpreso com o comportamento despachado da deusa. Ela continuo a falar.
— Então eu quando fui conhecer a mulher levei para ela presentes, mesmo que segundo a hierarquia eu como deusa não tenha que agradar uma simples alma humana, pois os santos católicos são apenas almas, levei os presentes como sinal de boa amizade. O vinho de palma que dei ela se recusou a beber, porque segundo ela não bebe, mandei uma caixa com pó de ostra do mar de Olokun para fazer chá, que é um chá afrodisíaco que deixa qualquer mulher com a bacurinha feito uma fogueira, ela recusou porque, pasmem, é virgem! Ela morreu virgem e agora depois de morta não trepa nem com Deus nem com o diabo! E então quando por ultimo dei a ela um raio rosado ela não soube dominar! Toda a fama dela dominar raios é falsa vocês acreditam? A tal chuva de raios que caiu no dia que foi decapitada foi só uma coincidência, ela não sabe nada, só ser uma beata sem sal nem açúcar, se substituissem ela por uma boneca de cera não faria a menor diferença, só fica lá sentada aos pés do *Inri* rezando dia e noite.
— Eu não imaginava que a senhora era tão... — Edmundo comentou.
— Tão o quê?
— Hum... diferente. — Edmundo falou com a voz fraquinha.
Oyá sorriu simpática e ficou em silêncio por alguns segundos.
— Calma menino, eu gosto de falar essas coisas quando encontro pessoas da *diáspora*, é só para dar um choque sabe, não costumo falar palavrões no meu dia-a-dia e o português nem é minha língua nativa para que eu tenha essas palavras na minha boca.
— Dar um choque?
— É. Vocês chegam aqui no Orun com uma ideia muito... muito complicada sobre nós Orixás, para falar a verdade a maioria de vocês que acham que nos conhecem... não conhecem. Muito chegam aqui achando que eu sou aquela figura que grita "heeeey" e que põe as mãos na cintura, que vivo enfiada em um vestido enorme com a saia tal qual um bolo de casamento, e eu não sou assim. Eu sou eu sou livre, totalmente livre. As vezes dou uma de doida quando encontro alguns de vocês aqui, como disso para chocar, mas também porque é extremamente divertido ver a cara que fazem quando eu digo "caralho".
— Mas... se a senhora não é como achamos que é, porque quando está incorporada dentro dos terreiros do candomblé se comporta daquele jeito?
Oyá tamborilou os dedos no queixo pensativa, deu alguns passos para trás e abaixou, fez sinal para Edmundo se aproximar, ele se abaixou ao lado dela.
— Vê isso? — A deusa apontou para uma fila de formigas que seguiam carregando pequenos pedaços de folhas, iam ruim a um formigueiro destruído.
— Sim.
— Olhe só. — com a ponta do dedo ela traçou uma linha na terra cortando a fila das formigas, elas imediatamente se dispersaram sem entender onde estava a fila e qual rumo seguir — Assim são as pessoas, não só da sua terra e sim de todo o mundo, elas criam percepções sobre as coisas, inclusive sobre os deuses, e quando a realidade vem sobre eles o que acontece é exatamente o que aconteceu quando tracei a linha aqui no chão, elas se comportam como as formigas que não sabem lidar com um desvio de rota, ou seja não sabem lidar com qualquer coisa diferente do que esperavam. Se eu dentro de um terreiro de candomblé parar de fazer o que esperam que eu faça... uma grande parte das pessoas que diz que me ama vai me dar as costas pois o que elas amam é a Oyá que inventaram em suas mentes baseadas no padrão que vem observando, mas eu de verdade sou algo totalmente diferente.
— É tipo o que diz a bíblia? Fiz me de tolo para ganhar os tolos?
— Eles não são tolos, são cegos, mas o princípio é exatamente este.
— Entendo.
— E entendeu também o real motivo de eu querer te dar um choque?
— Tem um motivo por trás disso tudo?
— Claro que tem. — Ela ficou em pé — O que quis lhe mostrar é que as vezes aquilo que você tem como concreto nos seus pensamentos pode ser só um equívoco.
— Está falando...
— Estou falando que isso também se aplica a suas opiniões a respeito de seus sentimentos por Sandara. Não é melhor rever isso e assim parar de perder tempo?
— Hum... acho que sim. Mas... posso fazer uma pergunta?
— Faça.
— A senhora realmente não gosta de Santa Barbara?
Oyá abriu um largo sorriso.
— Detesto, mas não é implicância, a real é que ninguém que a conhece pessoalmente gosta dela, acho que nem o cristo tem paciência mais com a beatisse exagerada. Mas me diga você, agora que já lhe mostrei quem realmente sou, que tal você mostrar quem realmente é?
— Quem eu sou? Como assim, senhora?
— Ora essa, você sabe do que estou falando.
— Não sei não... desculpe senhora mas realmente nao sei do que está falando.
— O fato de eu ter feito toda esta finta com palavrões e bobagens foi como eu ja disse, um choque, mas o que quero é que além de que você se confronte com as minhas verdades, se enfrente também as suas, sobre o amor, sobre meu filho mas tambem sobre si mesmo. Você é um bruxo.
— Bruxo?
— Ai... — Oyá suspirou — Porque vocês filhos de Oxum tem as mesmas manias dela? Principalmente essa mania irritante de responder perguntas com outras perguntas? Deixa pra lá, o que importa é que você é sim um bruxo e sei que sabe o que isso realmente significa.
— Um bruxo? Ah desculpe, não queria responder com perguntas, acho que é um hábito. Mas por favor senhora, se eu sou isso, porque minha mãe não me disse nada quando me encontrou?
— Edmundo, e se sua mãe não lhe disse com todas as palavras é porque ela o ama demais para isso.
— Um bruxo?
— Por Olodumare, pare de perguntar isso.
— Desculpe. Eu ainda não compreendo.
— Vai compreender em breve.
☆VI
Cecélia estava deslumbrante, em um vestido branco de alças finas e brincos de corrente em ouro branco, Meli foi presentada com um vestido da mesma cor porém com saia godê, levava a boneca dentro de uma bolsa de couro marrom claro. Ela a princípio estranhou um pouco a figura humana de Kikelomo mas logo se acostumou, os três foram juntos por entre as ruas estreitas de Ifofodo até chegarem ao exato centro da cidade onde havia uma grande piscina em forma de octógono toda em azulejos verde limão.
— Onde está o Palácio? — Meli perguntou.
— Lá dentro, temos de passar pela água para entrar nele. — Cecélia apontou para a piscina — Há um feitiço na água, apenas pessoas convidadas podem entrar.
— Mas nós fomos convidados?
— Sim, eu como irmã da rainha consto como uma... princesa — pronunciou como se a palavra causasse amargor em sua boca — , tenho direito de levar comigo quem eu quiser nas visitas e isso faz de vocês dois meus convidados.
Ela entrou na água, seu corpo foi baixando em pequenos solavancos.
— Venham, e prestem atenção dos degraus.
Kikelomo evitou bufar ou resmungar, mesmo que suas costas humanas tremessem em espamos quando adentrou a água, macacos kolobô odiavam se molhar.
Meli adentrou tranquila, com seus podered aquáticos não corria o risco de se afogar em águas tão calmas e límpidas. Desceram por uma escada caracol, kikelomo prendeu a respiração desnecessariamente pois a água era tão encantada que se fazia possível respirar sob ela.
A piscina não tinha mais de quatro metros de profundidade, ao chegarem no fundo os azulejos de uma das paredes se abriu dando passagem ao trio, eles entraram e imediatamente estavam totalmente secos dentro de uma ampla sala verde com as paredes e piso adornadas pelos mesmo azulejos verde limão.
— Pronto, já estamos no Palácio. — Cecélia abriu os braços teatralmente.
— Olá Cecélia, quem são essa boa gente? — perguntou uma mulher idosa que havia surgido por uma porta camuflada em verde da mesma cor de todo o resto.
— Você... você é uma Lin? — Kikelomo se espantou com as orelhas de gato despontando pelos cabelos grisalhos da anciã.
— Sim, me chamo Krunalin.
— Mas... mas... — Kikelomo olhou aflito para Cecélia — Lins são demônios! Como pode ter uma Lin aqui?
— Nós não somos demônios — Krunalin corrigiu — Minha especie foi a terceira tentativa do ser criador que tentava povoar os planetas deste mundo. Infelizmente nos Lin temos dificuldade em nos reproduzir, então fomos abandonados e substituidos pela nova espécie chamada de humana. Se existem Lins no Infenro a serviço de Lucifer é pelo motivo de não termos um lar, nós acabamos espalhados por muitos mundos. O Orixá Erinlé, senhor deste reino, me encontrou muitos séculos atrás em uma situação muito ruim, se compareceu e me trouxe para cá. Erinlé é bom com todos, até com os Lin.
— Confesso que estou muito surpreso.
— É compreensível. Mas por favor, qual a sua graça?
— Está é Amélia de Yemanjá e este é Ki... Luís de Obaluaye. — Cecélia se adiantou a apresentar.
Kikelomo sorriu rangendo os dentes de desgosto ao ter que usar um nome humano.
O Palácio era enorme, percorreram extensos corredores até chegar a sala de jantar, um salão de teto alto sustentado por colunas de quartzo Branco, no Centro uma mesa retangular de doze lugares, onze cadeiras estofadas em veludo branco e um trono de prata na cabeceira.
— Por favor sentem-se, Rasoherina se juntará a nós em instantes. — Disse Krunalin.
— Estou ficando meio tonto, acho que é claustrofobia. — Kikelomo resmungou observando a ausência de janelas.
— o Palácio se encontra no leito rochoso de Ifofodo, temos dutos de ar que ligam ao topo da montanha bem acima de nós, não se preocupe, a ventilação é excelente. — Krunalin sorriu.
Sentaram-se todos em silêncio até que uma porta de folha dupla aos fundos se abriu e dela surgiu uma magestosa figura, vestia uma túnica branca com pequenos passaros bordados em fio de prata, os cabelos densamente cacheados e volumosos em um castanho claro quase louro, a pele negra escura, na fronte um diadema com o símbolo de dois elefantes de marfim segurando um búzio branco, os olhos eram grandes e cor de ambar, nas mãos anéis de prata que combinavam com as unhas cumpridas e metalizadas, logo atrás dela um jovem casal vestido e adornado de maneira similar porém modesta.
— A rainha! Rasoherina de Ifofodo e sua dama de pagem de companhia. — Krunalin anunciou.
Todos se puseram de pé.
— Vejo que Minha irmã trouxe convidados. Que sorte, acreditava eu que seria um jantar solitário. — Rasoherina falou com tilintante.
— Nunca é solitário, você sempre tem esses dois patetas pra ficar te abanando. — Cecélia falou.
O casal de acompanhamento soltou risinhos debochado.
— Deixe meus bebês em paz Célinha. — Rasoherina sentou em seu trono.
— Não me chame assim.
— Voce me chama de "você" mesmo eu sendo vossa majestade, então te chamo como quiser. Agora por favor, apresente esses dois garbosos convidados.
— Este é Luís de Obaluaye e Amélia de Yemanjá, são do Brasil.
Kikelomo apertou as mãos sobre o colo de raiva.
— Nossa, agora brasileiros chegam aqui aos montes. — Rasoherina comentou.
— E isso é ruim? — Meli perguntou.
— De certo modo sim. Antigamente, me refiro a quatrocentos anos atrás, todas as almas que entravam e saiam dos nove Orun's haviam habitado o continente africano. Era um povo muito diferente entre si mas no geral homogêneo, como um só povo. Hoje em dia não, até japoneses andam entrando aqui agora. Brasileiros não são pessoas más, nem eles nem os cubanos, haitianos, caribenhos, norte americanos, mas eles...
— Não São africanos. — Kikelomo respondeu.
— Sim, é essa a questão. — A rainha falou.
— Em quais partes a senhora viveu? — Meli perguntou.
— Quando em forma humana?
— Sim.
— Eu nasci em uma aldeia Chamada Ekoende na Nigeria em 1455. Na epoca nem a aldeia se chama Ekoende e nem o país se chamava Nigéria, mas o local foi este. Eu fui uma sacerdotisa do culto do Orixá Erinlé. Morri e vim para cá, para o Orun. Em 1618 nasci na cidade de Ikurin, ali perto de Ekoende, na mesma família a qual havia pertencido na vida anterior. Nesta vida eu soube através de u,a sacerdotisa de Oxum que grandes e terríveis acontecimentos se lancariam sobre a região, então eu migrei para Madagascar junto com minha irmã, Adeo...
— Cecélia, meu nome é Cecélia.
— Desculpe, havia esquecido que não gosta do seu nome Yoruba. — Rasoherina prosseguiu — Cecélia e eu fomos para Madagascar. Na nossa terceira encarnação voltamos a terra juntas, nascendo novamente Na Nigéria, em Eko.
— E ali fomos escravizadas e vendidas para a França. — Cecélia falou em tom de dar um ponto final a conversa.
— Sim. — Rasoherina lançou a irmã um sorriso simpático, o qual não foi retribuído.
— Creio que é melhor servir o jantar. — Krunalin falou e logo três homens de porte atlético entraram na sala e depositaram sobre a mesa tres bandejas, uma contendo uma grande terrina com ensopado de carne de arraia, uma outra com uma espécie de miscelânea de verduras refogadas e uma terceira com um tipo de farofa com frango e grão de bico.
Krunalin serviu água e vinho tinto em taças para todos a mesa, inclusive para si mesma.
— Se essas terras são de Erinlé, como existe uma rainha? Não era para ele ser rei? — Meli perguntou com inocente dúvida enquanto bebericava de sua taça de vinho.
Rasoherina sorriu percebendo que não havia maldade na menina e sim apenas o verdadeiro não saber.
— Quando Olodumare fez os nove Orun's ele dividiu cada um em muitos territórios, quatrocentos e um territorios para ser exata. Era da vontade dele que cada Orixá fosse rei em um dos territórios, porém nem todos os Orixás gostam de usar coroa ou de sentar em trono. Erinlé jamais teve sequer intenção de governar aqui nas terras dele, então escolheu quatro entre seus mais fieis filhos para governar as quatro maiores cidades de seu território e gerenciar todas as outras. Eu Rasoherina sou a rainha de Ifofodo como você já sabe, e meu reinado existe para poupar Erinlé de estar aqui.
— E onde ele está?
— Com Ogun, Osanyin e Oxóssi, estes vivem embrenhados nos matos do terceiro Orun.
O jantar seguiu tranquilo, Rasoherina visivelmente se agradava da enxurrada de perguntas de Meli, era uma vaidade monárquica amar ser foco de qualquer interesse. Porém logo a rainha passou a cobrir a boca com a mão com certa frequência.
— Minha senhora? Está tudo bem? — Krunalin perguntou.
— Estou Ótima, porque a pergunta?
— A senhora está... bocejando.
Rasoherina arregalou os olhos e se aprumou em seu trono enquanto abria a boca involuntariamente em um novo bocejo.
— Bocejando? Achei que vocês espíritos não dormiam. — Meli comentou.
— O QUE VOCÊ FEZ COMIGO?! — A rainha se ergueu e esmurrou a mesa com força fazendo várias taças tombarem.
— Enfeiticei o seu vinho assim que a gata o serviu em sua taça. — Cecélia admitiu.
— Como ousa fazer isso comigo?! Eu não sou apenas sua irmã, eu sou a rainha!
— Para o diabo com a porra da sua coroa. Você nem a merece se quer saber. Se você fosse esperta teria sentido o gosto do pó das conchas que coloquei no seu vinho, meu amor você vai dormir por muitos dias.
— Porquê? — Rasoherina bocejou novamente —
Porquê lançou essa magia em mim?
— Porque nós três vamos la em baixo usar aquele espelho.
— O quê? Não está falando sério, não pode estar...
— Claro que estou. — Cecélia riu.
— Mas... Isso ultrapassa uma ofensa a mim ou a coroa de Ifofodo, quem guardou aquele espelho foi Erinlé, se ousar entrar no quarto, se ousar... ele pessoalmente vai te castigar! Pode até lhe expulsar do Orun!
— Ele não vai ter tempo, quando perceber o que fiz vou estar longe. Adeus minha irmã.
Rasoherina abriu e fechou a boca algumas vezes sem conseguir falar, Cecélia, Meli e Kikelomo ja estavam no corredor quando ouviram o som do corpo da rainha batendo contra o tampo da mesa.
— E os três lá? A gata e o casal? — Kikelomo perguntou olhando para trás.
— Não farão nada. — Cecélia continuo a caminhar de queixo erguido.
— Eu não acredito no que você fez, porque contou a Rasoherina o nosso plano? Era mais fácil ter deixado ela dormir sem dizer nada.
— Kikelomo eu aproveitei essa oportunidade para fazer algo que já pretendia. Meu tempo no Orun acabou, vou com vocês para a casa de Iku e de lá seguirei meu caminho.
Kikelomo não soube o que dizer, não entendia como Cecélia, que era nada além de uma alma, iria deixar aquele local sagrado, mas ele já havia aprendido que aquela mulher era alguém fora do comum, então não questionou.
Desceram por muitas escadas, atravessado largos corredores, até que chegaram diante da porta de madeira negra.
— É aqui. — Cecélia girou a maçaneta.
O quarto era amplo e totalmente vazio, as paredes de pedra ecoavam até mesmo os sons dos passos, no fundo coberto por um lençol branco estava o espelho.
— O famigerado Daradara-Opin... — Cecélia se adiantou e cruzando o aposento se pôs diante do espelho — Ouçam, conseguem ouvir? Ele fala...
— Ele não fala, quem fala são as vocês do outro lado. — Kikelomo segurou a mão de Meli com força — Ta certo, Meli você tem de fechar os olhos, esse espelho é maligno, não o olhe de jeito nenhum, quando eu levantar o lençol...
— Mas se eu olhar... o que acontece?
— Você morre. — Cecélia respondeu seca.
— É verdade? — Meli olhou para Kikelomo.
— Sim.
— Temos de ir logo, os guardas fazem rondas nessa parte do Palácio de hora em hora e Krunalin ja deve ter mandado avisar Erinlé. — Cecélia os apressou.
— De olhos fechados, bem fechados Meli, não importa o que aconteça, não abra. — Kikelomo pediu.
Meli fechou os olhos e se deixou guiar pela mão, Kikelomo a puxava com firmeza.
— Tenha atenção na boneca, a segure com força com seu outro braço. — Cecélia falou.
Os três se posicionaram diante do espelho, Cecélia e Kikelomo fecharam os olhos enquanto ela estendia o braço e agarrava o lençol.
— Eu vou puxar agora, tenham a certeza de não olhar.
Meli ouviu o som de tecido esvoaçando, e então sentiu os ouvidos se encherem de um zumbido estranho, Cecélia tinha razão, o espelho falava.
*— Não! Não vai levar ela! — Uma voz de mulher berrou.*
Aquela voz... Meli conhecia aquela voz...
*— E você vai me impedir como?*
Meli reconheceu essa segunda voz, era de Enobária.
— Meli ande, temos de atravessar o espelho, fique de olhos fechados, um pé na frente do outro, vamos... — Kikelomo a puxava pela mão.
* — Me devolva minha filha! Me devolva! Gabrielle! Gabrielle!*
A voz vinha do espelho, e dizia aquele nome.
Gabrielle? Meli reconheceu aquele nome, reconheceu sim pois aquele era seu nome.
* — Não gosto de Gabrielle, acho um nome feio. Vou mudar... acho que Amélia é um nome mais bonito. *
Meli ouviu Enobária falar, e sua mente entendeu. O espelho estava a refletir uma lembrança, algo que ela mesma pensava ser um sonho, uma mulher de nome Juliana que vendia cocadas em uma feira de uma pequena cidade no interior do Acre, uma mulher de nome Juliana que tinha uma bebê com síndrome de Down, um bebe de nome Gabrielle.
Meli sabia a que aquelas vozes se remetiam, ao dia que Enobária a levara embora. Estava no berço, em pé encostada no gradiu quando viu aquela mulher se transformar em uma serpente enorme.
*— Não! Não! Não! Por favor! Não! *
Meli sabia, ela lembrava, não queria ver aquilo de novo, não queria mas precisava, precisava ver para ter certeza que não havia enlouquecido, que aquilo não era um devaneio, ela tinha de ver para saber se a cena que tantas vezes voltava a sua mente era real.
— Meli? Ande! Só mais um passo. — Kikelomo a puxou.
— Macaco, acho que ela está se deixando levar pelas artimanhas do espelho. — disse Cecélia.
Foi então que o berro veio, um grito fini e agudo mas tão cheio de horror que estremeceu o ambiente.
Kikelomo ainda segurando a mão de Meli deu asg costas para o espelho e abriu os olhos.
— Não... Meli...
— O que foi? — Cecélia perguntou aflita.
— Ela olhou.
Meli tinha os olhos abertos, arregalados, olhava fixamente para o espelho, a boca escancarada como se ainda gritasse porém já não emitia som.
Abriu os olhos achando que veria a sua mãe biológica, que testemunharia a morte dela mais uma vez, mas não, o que viu naquela espelho foram as coisas mais perversas e imundas que existem, as coisas que são tão podres que apodrecem quem as olhar.
Foi naquele segundo, naquele milesimo de segundo quando Meli abriu os olhos que ela morreu.
Ficou em pé, o coração batendo, o corpo plenamente saudável, mas estava morta por dentro.
Aquele foi o momento que a doce Meli teve sua alma destruída.
Ainda era humana, ainda era consciente, mas estava morta.
Aquele foi o momento em que Meli se tornou algo muito diferente do que sua real natureza indicava.
Aquele foi o instante em que a doce Meli se tornou alguém que um dia seria conhecida como "A Bruxa dos Olhos de Prata".
Seus lábios se contorceram em um sorriso estático.
Aquele foi o momento em que Meli se tornou... Má.
📚Glossário:
1. Ajé Akepá: feitiço de destruição.
2. Oro-modi-modi: Nome da Rainha das Iyami segundo a mitologia afro brasileira.
3. Omokunrin: rapaz, homem jovem (literalmente "filho homem").
4. iwolulẹ: demolir.
5. òògùn: remédio ou medicina em Yoruba.
6. Saree: ou Sari, roupa tradicional feminina Hindu.
7. ọrẹkunrin: uma brincadeira linguística, namorado em Yoruba se diz Omokunrin, já namorada se diz ọrẹbinrin, ali a deusa diz ọrẹkunrin como quem diz "sua namorada homem".
8. Rasoherina: uma das mais famosas rainhas de Madagascar.
9. Sarongue: Sarong, uma saia cumprida até os pés feita a partir de um tecido enrolado ao corpo, é uma das vestimentas tradicionais da ilha de Sumatra.
10. Alaká: conhecido no Brasil como pano-de-alacá ou pano-da-costa, é usado de diversas formas mas a referente a história é o modo de se deixar sobre o ombro, apenas pessoas que ocupam alguma relevância dentro das tradições afro brasileiras usam o pano-de-alacá no ombro.
11. Daradara-opin: poço do fim.
12. Inri: Sigla I.N.R.I., do latim " Iēsus Nazarēnus, Rēx Iūdaeōrum cuja tradução é "Jesus Nazareno Rei dos Judeus".
13. Diáspora: dispersão de qualquer povo ou etnia que deixa seu local de origem e se espalha pelo mundo, no caso citado está se falando de religiosos de Orixá que praticam sua fé fora da África e por isso são considerados adeptos da fé da diáspora Yoruba.
Tradução do cântico de Kikelomo:
○Emi ni ọbọ, Emi ti o gbọdọ jẹ ọkunrin, ti o wọ ẹlẹdẹ, ti o tan ẹnikẹni ti o ri mi jẹ
● Eu que sou macaco, eu que devo homem ser, que me vista de pele de porco, que iluda à quem me ver.
Eu to perdendo os capítulos, toda vez me esqueço de vê o blog. MAS AMEI ESSE CAPITULO ❤
ResponderExcluirQue agradável! ♡
ResponderExcluirQueria muito vê desenhos dos personagens, Eu imagino eles muito fofinhos!
ResponderExcluirEu nunca gostei da meli mesmo, e também achava irritante o jeito dela falar.
ResponderExcluirCaprini, primeiramente muito obrigada pelo seu trabalho. Estou de repouso devido ao alto risco de minha gestação. Quase perdi meu BB, mas quando a ansiedade aperta eu leio suas histórias e elas me distraem. Sei que vc tem esse blog como um hobe. E sei que não dá pra fezer o trabalho muito rápido. Mas estou muito ansiosa pela continuação tanto de tabuleiro de xadrez quanto de búfalo sandara. Queria saber como a "cretina" da Diva virou uma viajante... E como tudo vai se encaixar na história de esmeraldina. Eu estou lendo outras publicações suas mas estou ansiosa. Fazer o que né. Vc realmente é fantástico e agora é responsável por todos que cativou. Assim como eu. Que minha mãe Oxum abençoe sempre.
ResponderExcluirMuito obrigado
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