BÚFALO SANDARA - CAP. 12

 





Capitulo 12
"Olontoki"


☆I
Meli estava tão cansada que seus pés doíam, os calcanhares rachados em ardência, havia andado pelos últimos três dias parando apenas para descansar dez minutos a cada duas ou três horas enquanto o sol estava no céu e dormindo nas matas ou nos gramados das clareiras cheias de sereno gelado. O macaco ia sentado em seu ombro tal qual um marajá na corcova de um camelo, fingia a incentivar, mas na verdade a faria prosseguir a todo custo.
— Pé dói... — Meli diminuiu o ritmo ao chegar em uma região da mata onde o mato era rasteiro e as arvores eram belas agonandras.
— Falta pouco... menos de dez quilômetros, — Kikelomo apontou para frente, uma montanha gigantesca com o cume Branco de neve se erguia no horizonte azul claro da manhã e eta visível entre as timidas copas folhadas — Ali no pé da montanha é a cidade de *Ifofodô*, lá você poderá descansar a vontade. — O macaco respondeu.

Meli estava já a ponto de cair quando chegaram aos pés da montanha, agora era Kikelomo quem segurava a boneca pois a menina ja não tinha mais braços para segurar nada. Ao lado de uma majestosa queda d'água do rio Erinlé havia uma grande entrada de caverna, pelo formato não era natural e sim escavada pelo homem, um buraco de feitio árabe como um portal islâmico.
— Ondi tem cidadi? — Meli semicerrou os olhos.
— Ifofodo é debaixo da terra, subterrânea. Temos de entrar ai nesta caverna.
— Meli cansada...
— Só mais um pouco, entre lá, tenho uma amiga na cidade, vamos para a casa dela, você poderá dormir em uma boa cama essa noite, descansar as pernas.

Meli prosseguiu, encheu os pulmões de ar e marchou rumo a caverna, subiu os mais de dez degraus escavados na terra e ao adentrar o portal de rocha percebeu pedras azuladas incrustadas nas paredes que emitiam uma luminosidade tênue.
— Quê isso?
— São *Okuta- amaloji*, pedras que Olokun criou para iluminar o fundo do mar, Erinlé comprou dele uma porção delas para iluminar a cidade subterrânea.

Meli constinuou a caminhar, a iluminação indicava qual direção seguir. A caverna era de teto alto e piso inclinado, ela desceu por alguns minutos, era possível sentir uma brisa leve vindo do interior, ao chegar no fundo ela se deparou com um espaço aberto, o teto da caverna era tão alto que ali dentro poderia caber o *prédio do Banespa* tranquilamente, na tocha escura e úmida do teto pedras grandes azuladas despontavam em forma de  quartzos emitindo uma luz intensa que tornava o ambiente tão claro como o dia lá fora, a largura do lugar era imensurável, Meli observou centenas de casa de madeira organizadas em quarteirões separados por ruas estreitas, vielas e becos, seus olhos humanos não possuíam capacidade de enxergar o final e as laterais da caverna, era uma verdadeira cidade, quiçá um Reino. Nas ruas haviam muitas pessoas vestidas com tunicas, camisas, calças e *filás* de cores vivas, no teto da maioria das casas era possível ver pequenas estátuas africanas pintadas de prata e ornadas com muitas flores e folhas vivas.
— Oooh... muto glande... — Meli se admirou.
— É, você não viu nada, toda a montanha é oca, lá para o fundo tem uma Cachoeira imensa com a água tão cristalina que quase não se vê.
— Meli qué vê.
— Depois, agora vamos para a casa de minha amiga. Você não está com fome? Lá poderá comer a vontade, tomar banho com agua quente e tudo mais.  — Kikelomo apontou para a direita — É por ali, vamos.

Na décima quinta travessa da rua principal Meli entrou em um beco, o piso era todo de paralelepípedos verdes e azuis, ela imediatamente comparou com as pinturas que seus vizinhos em Monte D'avila faziam no asfalto na epoca de copa do mundo, mas sua mente aguçada sabia que o motivo daquilo era que as cores que mais agradavam o senhor daquelas terras eram justamente estas. As casas eram grandes e coladas umas as outras, as pessoas olhavam para Meli com certa estranheza ao ve-la tão mal vestida, mas ela parecia não perceber ou não se importar.
— É aqui, a casa com janelas redondas. — Kikelomo indicou.

Meli parou diante de uma casa de dois andares, tinha forma de caixote feita de tábuas de madeira avermelhada, era de muito bom gosto com oito janelas redondas de armação de ferro vermelho vivo. Kikelomo desceu do ombro de Meli e correu até a porta, a socou levemente com os punhos minúsculos.
— Cecélia! Cecélia Oshoyelú sou eu, Kikelomo Kolobô!
Não demorou nadinha, a porta foi aberta e uma mulher alta, preta retinta, quadris largos evidentes em calças justas de um macacão de tecido branco semi transparente, sorriu para o macaco, seu rosto redondo em meio ao cabelo black power volumoso era jovial e infantil.
— Pelos dezesseis Odé! Kikelomo! Eu não acredito, quanto tempo! — Ela se abaixou e beijou o topo da cabeça do macaco.
— Trouxe uma amiga — Ele apontou para Meli.
— Uma? Eu vejo duas. — Cecélia ficou em pé e olhou para a boneca que Meli agora abraçava.
— Sim, duas, podemos entrar?
— Claro, venham.

☆II
Tanya e Edmundo desceram do lombo do Búfalo, haviam viajado os últimos três dias montados no  animal, a distância percorrida havia sido dez vezes mais longa do que se fossem a pé, ao chegar em uma clareira no meio da floresta decidiram que era o lugar ideal para a pernoite.
— Não entendo porque não podemos ir pela estrada Real. — Edmundo reclamou.
— Confie em Awada, ele sabe o caminho mais curto. Onde estamos? — Tanya perguntou.
Edmundo abriu um mapa, o papel de bordas douradas estalou endurecido, ele passou o dedo sobre a folha e contou as aldeias as quais haviam já passado.
— Estamos na região de *Iruwé*.
— Esse mapa é maravilhoso.
— Tudo que minha mãe me deu é maravilhoso! — Edmundo abriu os braços e girou o corpo, usava agora um robe de seda dourada sem mangas que ia até os joelhos, cinto azul claro e amarrado em um laço lateral, nos pés um par de sandálias de tiras de couro dourado reluzente, no pulso direto trazia um bracele em formato de peixe e nas orelhas um par de brincos com minusculas safiras.
— Me refiro as coisas úteis, — Tanya revirou os olhos — não que eu não aprecie um bom tecido, mas estamos em missão, o que foi valioso realmente foram os presentes práticos, o mapa, os vidrinhos com poções, a saca de comida e as espadas.
— Eu gostei muito mais das roupas. — Edmundo deu de ombros.
Estava realmente satisfeito com os presentes que Oxum havia lhe dado.
— Estamos na metade do caminho então. Vamos montar acampamento. — Tanya se pôs a trabalhar.

Sandara sentiu alívio quando removeram as barragens de suas costas, ele em forma de búfalo era grande e forte mas búfalos não nasceram para burro de carga, não são cavalaria, estar naquela posição já havia começado a chatear, porém ele admitia para si mesmo que carregaria Edmundo até o fim do mundo, estar assim tão proximo do rapaz era de uma satisfação imensurável.
A noite caiu, após uma refeição caprichada, Tanya e Edmundo dormiram nas esteiras, Sandara dobrou sobre as patas e deitou próximo a dupla.
De manhã acordou ouvindo o som de água, era o aquele chuá-chuá familiar, som de um rio, levantou confuso pois tinha certeza que a clareia em que estavam ficava a uma distância considerável de qualquer braço do rio de Oxum, mas antes que pudesse ver sentiu o cheiro, era de água e de... sangue. Então viu, seus olhos negros de búfalo se encheram de horror pois a menos de dez metros corria um rio de água azulada e límpida, um tom de azul não natural a água doce corrente. Sandara emitiu um bramido para acordar os dois ali ao lado, mas assim que olhou para as esteiras percebeu que só Tanya estava deitada, ao olhar para a margem do rio viu Edmundo abaixado, as mãos dentro da água.
Sandara bramiu novamente, Tanya se levantou rapido mas Edmundo apenas olhou por cima do ombro e ignorou, então Sandara fez o impensável, com um tranco saltou para frente removendo a capa de búfalo, agora em forma de homem gritou a plenos pulmões:

— NÃO TOQUE NA ÁGUA!

Edmundo virou o rosto e encarou Sandara ali logo a diante, seu rosto exibia a mais mortificada expressão.
— Sandara o que está fazendo?! — Tanya perguntou assustada.
Mas Sandara não respondeu, com o corpo nu correu até Edmundo e o agarrando pelo braço ordenou:
— Agora corra! Corra o mais rápido que puder!
— C-omo... eu... era você o tempo todo...
— Corra! Tanya leve ele pra longe! Nao desfaça o acampamento, só corra! Eu as segurarei o máximo que der!
— Correr? Porque? Vai segurar quem? — Tanya estava confusa.
— Esse é o rio Olontoki! — Sandara gritou.

Ao ouvir aquele nome ela não pensou duas vezes, correu até Edmundo e o puxou pelo pulso, eles correram por entre as arvores deixando Sandara para trás.
— Vamos Ed! Vamos rápido! Elas vão aparecer a qualquer momento! — Tanya arfava correndo o máximo que podia.
— Você sabia que Awada era Sandara? Sabia e não me disse? — Edmundo corria frouxamente.
— Escute! — Tanya parou e apertou o braço do amigo com força — Depois falamos disso, você não ouviu o que ele disse? Aquele era o rio Olontoki!
— Olontoki? — Edmundo repetiu sem entender, seus olhos desfocados mostravam grande confusão, mas um segundo depois a clareza se fez e seu olhar mudou para algo cheio de medo.
Ele se lembrou de Enobária a lhe contar uma lenda, o mito sobre as feiticeiras chamadas *Iyami Oxorongá*. Para quem não se lembra eu hei de relembrar que nas muitas lendas de Candomblé há uma que fala sobre o momento em que as terríveis Iyami, as feiticeiras, tomadas por um sentimento de inveja exigiram que Olodumare desse a ela o mesmo domínio que haviam dado as Orixás femininas, elas queriam um rio. Olodumare lhes fez então o rio Olontoki, um rio de águas malditas e que qualquer um que o tocasse iria atrair para si a ira das bruxas. Edmundo recordou de quão violentas e cruéis as feiticeiras podiam ser e seu sangue realmente gelou, estava sim muito abalado com a visão recente de Sandara revelando ser o búfalo Awada, mas como poderia pensar nisso agora? Se não fugisse estaria em sério perigo.
— Tanya... a parte do mito do rio Olontoki que fala que as Iyami comem carne humana... É verdade? — Ele disse enquanto corria atrás da amiga.

— É verdade sim...  — uma voz rouca soou acima deles.
Os dois pararam e olharam para cima, fitaram com horror as criaturas empoleiradas nos galhos de uma figueira branca.
— Merda! Corre! — Tanya berrou e Edmundo correu com ela para a esquerda.
— O que foi? Uuuh uuuh! — uma das criaturas chirriou como uma coruja.
Tanya corria olhando para cima, eram muitas, dezenas empoleiradas nos galhos das árvores, eram do gênero feminino com certeza, ostentavam seios grandes e redondos que brotavam no peito emplumado, sim elas eram penosas como uma ave, suas pernas cumpridas dobradas sobre o corpo, os enormes pés de três dedos com garras longas e curvadas e espora com um agulhão de ossos no lugar da unha agarraram os galhos, tinham asas de penas cumpridas como as de um falcão, o corpo então era uma completa aberração, mas o pior eram as cabeças, similares a de mulheres humanas mas com olhos extremamente grandes com pupilas minúsculas de um vermelho intenso e olhar fanático, tinham uma penugem fazendo a vez de cabelo, faltavam as orelhas. Os lábios eram finos a ponto dos dentes afiados e brancos como sal saltarem para fora da boca.
— Huuu Huuu! Cheiro de medo... — Uma pendurada em galhos de uma Jucá zombou.
— Corram corram! — uma outra berrou.
— Ora... não é uma graça esses humanos correndo? — uma outra de voz muito rouca zombou enquanto se acomodava em um galho de pau-de-ferro.
— Deus abençoe os pequeninos! — outra gritou, a fala evocou uma gritaria cheia de gargalhadas de todas.
— Nós não queremos problemas! Nós não lhes causamos mal algum! — Tanya tinha a voz trêmula enquanto avançava.
— Pare Já! — Uma das criaturas surgiu diante deles batendo as asas como um galo de rinha.

Tanya e Edmundo pararam, ela imediatamente tornou o corpo metálico tomado o aspecto de mulher de aço, Edmundo se escondeu atrás dela.
— Filha do Valente? Ela é de *irin* senhoras, uma agraciada filha de Ogun! — uma outra iyami atrás deles riu.
— Sabe querida, o ferro de Ogun é forte, insuperável em quase todos os ambientes, invulnerável a quase tudo. Só ha uma exceção, uma única arma que parte o ferro de Ogun. Sabe qual? — a Iyami do galho mais alto da árvore a frente perguntou.
— Na-não sei. — Tanya gaguejou.
— Esta arma aqui. — A Iyami ergueu a garra de seu pé direito mostrando resquícios prateados presos ao esporão, todas as outras gargalharam — Você não é a primeira a quem Ogun da o dom da pele de aço, mas o outro, o filho dele... Como era mesmo o nome?
*Ogunṣakin*! — alguma delas falou.
— Isso! Esse mesmo, Ogunṣakin achou que podia peitar as Iyami. Nós matamos ele, abrimos ele como nossas garras como se fosse uma lata de atum! —As Iyami explodiram em gargalhadas.
— Comemos ele, não a carne, pois ele ja era desencarnado, mas comemos a alma. Ele ja existe mais.
— Não existe mais! — Todas berraram em uníssono.
— Iyá *Buburu*! — A maior das mulheres pássaro olhou para a direita a procura de uma entre suas iguais.
— Sim Iya *Dajasilé*? — Uma de nariz pontiagudo como um bico de corvo respondeu.
— Diga os crimes que estes dois cometeram contra nós! Não quero mais esperar, quero comer! Quero comer!
— Sim eu digo! Eu vi! — Buburu sacudiu as penas do pescoço tal qual uma maritaca — Eles cuspiram e defecaram nas águas de Olontoki! Depois mantiveram relações sexuais dentro da água! Depois disseram palavras odiosas contra Olodumare, o chamaram de porco de rebanho muçulmano!
— Mentira! Essas coisas nunca aconteceram! — Tanya berrou furiosa — Nunca dissemos ou fizemos essas coisas!
— Tanya... não adianta, — Edmundo cochichou — Não se lembra? As Iyami quando querem prejudicar alguém, mentem, a acusam de coisas absurdas para justificar a vingança.
— A humana nos chamou de mentirosas! — uma outra entre as mulheres passaro berrou.
— Sim e verdade, eles agora passaram dos limites... criminosos! — Iya Buburu riu cheia de maldade.

☆III
Sandara foi até a margem, já sentia as rajadas de ventos atingindo o rosto e ouvia o farfalhar de asas, porém não via nada, mesmo que sentisse em seu âmago a presença dela.
— Se é a minha atenção que queria Saramagbô, então já a tem.
— Que gentil de sua parte. — a voz da mulher soou aveludada, então apareceu, seu corpo surgiu do nada, não era como as outras feiticeiras, esta de avê ostentava apenas grandes asas vermelhas tal qual as de uma arara que brotavam das costas, o corpo era humano e estonteante em perfeição, cabelos longos e lisos como uma nobre egípcia, tinha a pele em um marrom claro como a cor da amêndoa, seus seios e genitália eram cobertos por um tecido vermelho semi transparente, tinha pernas mais longas que o comum, os olhos adornados com intensa maquiagem negra.
Saramagbô pousou na margem bem ao lado de Sandara, deixou sua asa roçar no braço do homem.
— Búfalo Sandara...
— Não gaste meu nome, não tenho outro. — Ele respondeu aborrecido.
Saramagbo sorriu graciosa.
— Queria muito lhe ver.
— Claro que queria, não teria deslocado seu rio até aqui se não fosse importante. Meus amigos estão em segurança?
— Eu não sei, e tampouco me importa, vim ver apenas você.
— E o que a princesa das Iyami quer comigo?
— Ah... é uma pergunta difícil de responder... mas digamos que pressagios tiraram a minha paz.
— Presságios? — Sandara olhou impaciente para a floresta.
— Tenha atenção em mim, os outros hão de sobreviver alguns minutos, nossa conversa será rápida.
— Então conversemos. — Ele a olhou nos olhos.

Saramagbô rodopiou na ponta dos pés, então atrás de si como que por encanto surgiu um banco de mogno talhado, sentou-se e começou:
— As estrelas dizem coisas pertubadoras sobre os dias que virão.
— As estrelas? Não sou do tipo que bota fé em astros.
— Filhos de Oyá sempre tão práticos.
— O que você quer de verdade?

Saramagbo ficou em silêncio por um momento, olhava a água do rio fluir.
— Quero que fique do meu lado quando a hora chegar.
— O que quer dizer com isso?
— Haverá um momento em que... todos terão de escolher um lado. Em breve acontecerá. Quero que se junte a mim e as minhas irmãs.

☆IV
Meli não conseguiu nem sequer ser educada, entrou na casa e desabou em um sofá vermelho de veludo, era um móvel rococó de madeira com tinta cor de areia e isso ja denotava que a dona da casa ao contrario da massiva população daquele mundo, não era africanista.
A sala de visitas era ampla e arejada por grandes janelas, contava com papel de parede cor de rosa em um tom claro e suave e os móveis todos eram franceses estilo Luis XIV.
— Sua casa realmente é um espanto. — Kikelomo saltou para sobre uma mesa de chá.
— Porquê? So porquê não quero viver em casas com móveis rústicos como todo o resto de minha gente? — Cecélia sentou a mesa e serviu chá gelado em dois copos altos de cristal.
Kikelo deu um peteleco com um deles e imediatamente o copo surgiu na mão de Meli que passou a beber com vontade.
— Não... — disse ele — O fato de você se negar a ter qualquer ícone africano não é um gosto, é um protesto. Ainda ressentida por ter sido escrava? Já faz trezentos anos amada...
— Oh principe dos macacos, no dia que vossa alteza real for escravizado eu aceitarei sua opinião no assunto, do contrário não. — Ela zombou.
— O que é isso? — o macaco apontou para um envelope aberto sobre a mesa, a carta em papel cor de rosa havia sido recolocada dentro de modo desleixado de modo que era possível visar a assinatura do remetente — M.D.B?
— Não é da sua conta. — Cecélia apanhou a carta e a atirou na lareira atrás de si, a lenha disposta dentro no nicho estava apagada mas a carta ao toca-la se tornou uma bola de fogo.
— M.D.B Cecélia? Esta metida com Milena Diva Belladonna? A viajante? Sabe que ela é uma pária entre os deuses.
— Eu não pauto minhas relações com base na preferência de Deuses. Belladonna busca aliados para os dias sombrios que virão.
— Dias sombrios? Do que está falando?
— Ora essa? Não sabe? Muitos sinais tem sido revelados, para você ter uma ideia pouco tempo atrás Oxum foi invocada, pasme, por um anjo!
— Um Maleika? — Kikelomo se espantou.
— Pois sim, foi invocada em templo no Brasil, ele estava acompanhado do receptáculo daquela... como é mesmo nome? A tal de olhos verdes fulgurantes?
— Smeralda?
— Ela mesma. E se acha pouco eu lhe conto mais, a velha Ubabaya Padmavathi foi assassinada, e tudo leva a crer que foi por uma tal Madame Marte, mãe do referido receptáculo.
— Ubabaya... morta? Tem certeza? — Kikelomo se espantou.
— Absoluta. A vagabunda tinha quase um milênio de existência e morreu a base de machadadas.
— Por todos os macacos...
— Sabe como é, ela estava caduca, e... bruxas, por mais poderosas que sejamos... acabamos sempre mal.
— De fato.
— Nós, feiticeiras antigas, não sabemos exatamente o que vai acontecer, mas do jeito que a terra anda se agitando, provavelmente será um novo giro.
— O que quer dizer "novo giro?"
— O mesmo que aconteceu com Cristo, quando ele veio para a terra, a presença dele mudou o mundo e consequentemente marcou até uma divisão no calendário. Nós chamamos isso de giro, a terra girou trezentos e sessenta graus e quando voltou ao mesmo ponto tudo era diferente. Não foi o primeiro giro, o primeiro foi milênios antes quando Sé foi morto.
— Está louca? — Kikelomo berrou — Sabe que não se pode citar esse nome aqui! Olodumare não suporta.
— Não suporta o nome do próprio pai? Pois bem, não direi nada deste nome, mas a questão é que um terceiro giro está para acontecer, uma nova divisão no calendário, uma nova religião subrepujando as demais, e tudo se repetirá, todas as mazelas que os cristão fizeram em nome de Cristo serão refeitas em nome de outro deus, e nós que somos espertas vamos arranjar um jeito de lucrar com isso.
— Eu não me importo com o que acontece na terra, nunca fui lá e nem pretendo, eu só me importo com o reino de minha mãe.
— Falando nisso, qual o motivo de sua visita? Você nunca vem a troco de nada.
— Vim lhe cobrar uma velha divida.
— Pois diga, se eu devo, pago. O que quer?
— Quero ter acesso ao Digi-ṣokunkun.
Cecélia arregalou os olhos e apertou os lábios.
— O espelho negro está protegido no Palácio de Erinlé, eu não vou entrar lá para roubar.
— Não quero que o roube, eu quero atravessar, passar por ele.
— Mas o único local que aquele espelho leva é a casa de Iku. Se quer ir lá, o que te impede de ir? Você é um Kolobô, vocês podem saltar entre os Orun.
— Eu posso, mas ela não. — ele apontou para Meli.
— Isso é muito arriscad o. Se nós pegarem podemos acabar muito mal.
— Eu tenho de arriscar.

☆V
— O que faremos agora? — Tanya perguntou.
— Acha que elas vão nos atacar? De verdade mesmo? — Edmundo colado as costas dela cochichou.
— Tenho certeza.

Uma das Iyami saltou sobre os dois enquanto as outras grasnavam, Tanya ergueu os braços para se proteger mas as garras afiadas cortaram a pele metálica como faca em uma peça de queijo, Tanya gritou de dor e abaixou os braços, o sangue vermelho vivo vazava dos cortes.
— Retalhe eles! Esquarteje! — as Iyami gritavam animadas.
— Por favor! Por favor parem! — Edmundo pediu — Não há nada que possamos fazer para apaziguar vocês? Não queremos problemas!

Uma Iyami gorda e com tufos de penas saindo das bochechas tal qual uma galinha *Araucana* gorjeou de modo a calar todas as demais, ao obter silêncio disse:
— Nenhum católico nos apazigua rapaz. Vocês não nós conhecem.
— Nós não somos católicos, somos candomblecistas. — Tiago falou com firmeza.
— Ah é? Então vou lhe fazer uma pergunta, que animal é sagrado para Oxalá?
— O pombo branco. — Edmundo disse rapidamente.
— Católico! — Todas as Iyami responderam em uníssono.
— Não, eu ja disse que não sou católico. — Ele revidou sem muita segurança na voz.
— O animal que Oxalá tem como amigo é o elefante, e o animal que ele come é o *Igbin*, a ave que pousa em seu ombro direito é o *Odidé* e a que pousa em sua coroa é o *Egá*! O pombo é a ave que um dia foi chamada de *Ẹiyẹko* mas que agora é *Ẹiyẹlé*! Mas Ẹiyẹlé é livre, não pertence a ninguém! Quando vocês, brasileiros, dizem que Oxalá é que anda com os pombos brancos é porque são um bando de idiotas católicos! São católicos sem perceber que são! Comparam Oxala com o maldito Cristo! É a porra da pomba do espírito santo que gostam de ver!
— Maldito Cristo! — todas as outras berraram um uníssono.
— Fale mais *Iyatàn*! —  Uma das Iyami gritou para que a que falava prosseguisse.
— Eu não compreendo, — Edmundo olhou para o alto e encarou  Iyatàn —  Porque esse papo sobre o pombo? Você sabe muito bem que no meu país houve a escravidão, muita coisa ficou confusa após ela, lá nós fazemos o maximo que dá, e se confundimos um pássaro... É só um passaro, tanto faz!
— Oh oh... — Tanya cochichou — Você não devia ter dito isso.
— Só... um... pássaro? Tanto... faz? — Iyatan repetiu com horror estampado no rosto e na voz.
— Nós somos pássaros — Dajasilé falou — Então nós somos da categoria "tanto faz"?

Edmundo percebeu o grave erro que havia cometido, desmerecer pássaros diante de mulheres harpia foi de uma tolice sem tamanho.
— Me perdoem a indelicadeza, eu não quis ofender...
— Me diga seu porco marrom, qual é o passaro de Logun Edé? — Iyatàn perguntou seca.
— O pavão?
*Agbe* é o pássaro de Logun, voces putinhas de carnaval botam as penas do pavão por serem maiores e mais chamativas, mas para se mostrar em pompa e glória perderam o axé do Agbe.
— Mas... mas... — Edmundo não sabia o que falar.
— E qual é o pássaro de Oxum? — Iyatàn perguntou.
— A coruja?
— Seu merda! Seu merda! Oxum é senhora de muitos pássaros, mas a *Owiwi*  não pertence a ela! Vocês brasileiros vendo fotos de bruxas europeias em revistas de banca de jornal passaram a falar que Oxum tinha uma como nas gravuras que vem nelas, seus merdas! Vocês não sabem nada de pássaros!
— Não sabem nada! — Iya Buburu falou.
— Vocês merecem morrer de uma maneira lenta, muito lenta! — Iyatan berrou furiosa.
— A conversa está enveredando pra um lado totalmente sem sentido, cuidado Ed, elas são bancam as malucas falando essas besteiras mas na verdade são apenas sádica, brincam com nós como um gato com rato entre as patas. — Tanya sussurrou.

Edmundo teve de tomar uma decisão rapida, mesmo quando dias atrás foi atacado por Ajagunmale ele sabia que havia chance de fugir, mas ali não havia chance, eram muitas inimigas e era possível sentir no ar crueldade que emanava delas. Ele não queria fazer isto, em toda sua vida havia usado aquela ferramenta uma única vez, mas as circunstâncias eram as mesma, caso de vida ou morte.
— ESCUTEM! — a voz saiu tão potente que as Iyami pararam imediatamente e o encararam abismadas.
— Voz... voz de bruxa... o rapaz é filho daquela miserável... — Iyatan falou.
— Aparentemente são imunes ao ferro de Ogun, como mostraram ao ferir minha amiga, mas eu sou filho de Oxum, e tenho dela dois poderes nas cordas vocais.
— Poderes da mulher dourada? Que piada! Você pode ter a influencia dela, mas não os poderes. — disse uma das Iyami.
— O primero dom que me foi concedido é imperativo sedutor, eu posso fazer muitos seres me obdecerem a minhas ordens, mas sei que isso não vai funcionar com vocês.
— Como funcionária?! — Iyatan grasnou — Se fomos nós que ensinamos sua mamãe este feitiço!
— Vocês sabem que minha mãe Oxum é senhora da vida, ela trás os filhos dos homens ao mundo através do utero das mulheres, ela envia as abelhas para polinização das florestas, ela choca os ovos dos ninhos das aves.
— Quer se gabar de sua mãe? Isso não vai lhe salvar. — Iyatàn bateu os dentes ameaçadoramente.

Edmundo suspirou aborrecido mas prosseguiu:
— Sabem também que minha mãe não tem apenas o poder da dar a vida, de atrair a fertilidade ao mundo, mas também tem o poder de remover isto.
— Não somos Oxalá para ter medo das maldições de sua mãe! — Uma das Iyami berrou.

Edmundo ergueu o queixo e as encarou uma a uma:
— No passado minha mãe foi desprezada por Oxalá e pelos demais orixás masculinos, e então contra atacou afligindo o mundo com a ausência de amor, de fertilidade, de esperança, de vida. Ou seja, o que minha mãe fez foi isto... — O rosto de Edmundo se tornou cinza como o de um cadáver, seus dentes enegreceram e ele sussurrou levemente uma simples palavra — *Ijiya*...

O que aconteceu em seguida foi um coral de berros ensandecidos, as Iyami despencavam dos galhos das árvores a caiam ao chão se retorcendo, batendo as asas a esmo, chutando o ar, as bocas arreganhadas em expressão de profundo horror. Tanya olhava em volta, involuntariamente deu alguns passos para longe do rapaz, a aura de pura malignidade que emanava dele era densa demais, era como se fosse a irradiação do próprio cerne do desespero, ela já havia ouvido a lenda de que Oxum, a Orixá da vida, tinha um lado extremamente obscuro, que certa vez colocou toda a África doente apenas para provar para os outros Orixas que era necessária, mas quando se fala em maldições em lendas é muito diferentes do que presencia-las.
Uma Iyami pequena e magra deu um berro agudo e passou a vomitar um liquido preto.
— Ed, acho que ja chega, elas estão caídas, nós podemos fugir agora. — Tanya pediu.

Edmundo nada respondeu, ela deu alguns passos para o lado até estar em posição de ver o rosto do amigo, ele sorria, tinha a pele do rosto e pescoço naquela cor putrida e os dentes negros com gengiva roxa aparente, sorria como se sentisse um imenso prazer em estar torturando as divindades.
— Ed! Ed Você tem de parar!

Edmundo olhou para Tanya e ela percebeu no olhar do rapaz que ele não a reconhecia.
— Ed? Ed Você está bem?
Quando os olhares se encontraram ela berrou, um grito tão alto e tão desesperado que parecia não ter fim, caiu no chão se debatendo, Edmundo lançara sobre ela a maldição do sofrimento.

📚Glossário
1. Ifododô: ifofo+Odo = espumas das águas de um rio.
2. Okuta Amaloji: pedra azulada/cor índigo.
3. Prédio do banespa: Edifício Altino Arantes, popular arranha céu paulista que de 1939 á 2001 foi cede do banco Banespa, conta com 35 andares e cerca de 160 metros de altura.
4. Filás: filá significa chapéu em Yoruba.
5. Oshoyelú: Oṣóyẹ̀lú - "Feiticeira da cidade" em Yoruba.
6. Iruwé: flor em Yoruba.
7. Iyami Oxorongá: Iyami Oṣoronga, em Yoruba "minha mãe feiticeira", são divindades femininas ligadas a bruxaria.
8. Ogunṣakin: Oruko de filhos de Ogun, quer dizer "Ogun me agrega valor".
9. Buburu: malignidade.
10. Dajasilé: causar discórdia, fomentar desavença.
11. Digi ṣokunkun: espelho negro
12. Araucana: raça de frango comum no Chile, é famosa por botar ovos de casca azul.
13. Igbin: caramujo achatina, também chamado caramujo-gigante-africano.
14. Odidé: Papagaio-do-Gabão.
15. Egá: pequeno passaro Africano.
16. Ẹiyẹko: pássaro da floresta.
17. Ẹiyẹlé: pássaro da cidade, nome atual do pombo em Yoruba.
18. Iyatàn: mãe/mulher que engana (iya+tán).
19. Agbe: turaco azul.
20. Owiwi: coruja rasgadeira.
21. Ijiya: sofrimento.

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  1. Amei mas desrespeita jesus e olodumare e amigo de Jesus se você satânico aí já não minha culpa mas não bota os orixás contra Jesus porque não e asim tá kkkkk

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    1. É uma ficção, e eu ponho nela o que é bom para a história. Nao confunda sua fé pessoal com uma historia de ficção.

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  2. Ela faz a linhagem dela! A gataww!

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