BÚFALO SANDARA - Capítulo 11
Queridos, infelizmente o corretor ortográfico não anda muito competente, os textos vem sido publicados sem revisão, e eu que escrevo feito um bêbado fico parecendo que não fui alfabetizado corretamente quando vocês lêem todos os erros de ortografia e concordância no meio da historia.
Então gostaria de pedir que quando notarem um erro, deixem nos comentários para que perceba e corrija. Agradeço o apoio.
☆I
29 de Março de 2008
Durante o ato tudo foi rápido e certeiro. É como se instinto de sobrevivência tomasse conta, não havia o que pensar, só havia o agir. Depois porém, Sandara sentiu como se o peso do mundo estivesse sobre suas costas. Ele tinha as mãos cheias de sangue, e para aqueles que ja viram sangue fruto de violência sabem como a cor vermelha escurece após alguns minutos se tornando um vinho quase marrom, endurecido e pegajoso, o cheiro leve de ferro se torna mais intenso a cada segundo.
Não só as mãos estavam ensanguentadas, o corpo inteiro estava, porém as mãos e os braços eram os unicos lugares cujo o sangue não era dele próprio.
Estava ali caminhando por uma estradinha de terra, ia mancando de uma perna e com um grande corte aberto nas costas. Ia lento, caminhando como se estivesse morto, ia sim, mas não ia só, estavam na beira da estrada, ele e ela.
— Tem certeza? Precisa mesmo disso filho?
Sandara parou e virou o corpo com certa dificuldade pela dor, viu novamente aquela mulher, a deusa dos raios e das tempestades, Oyá. Era deslumbrante, usava um vestido longo vermelho sem alças e de tecido esvoaçante, descalça pisando na terra com argolas de cobre como tornozeleiras, os pulsos com nove pulseiras de cobre em cada, no pescoço fino uma garantilha de Búzios e um colar longo de pedras terracota, seu rosto era um misto de jovialidade e dureza, tinha o maxilar mais marcado que o habitual para mulheres mas isso a fazia ainda mais bela, os lábios eram cheios de tal maneira que o inferior exibia um pequeno vinco no centro, os olhos vermelho alaranjados como a cor do fogo, os cabelos soltos e tranças finas e cumpridas caindo até a cintura em um tom de marrom escuro, tinha na cintura um cinto de couro negro onde se prendia um *Iruxin* de pelo negro azulado.
Sandara suspirou mais um vez, jamais imaginaria que sua mãe, seu Orixá, viria lhe ajudar pessoalmente.
— Mãe, a senhora sabe como estou grato por ter vindo em meu auxílio, mas eu... eu não poderia viver sem olhar para ele uma última vez.
Oyá assentiu movendo a cabeça lentamente, então ergueu os olhos e observou a estrada enquanto uma rajada de viaturas passava a toda levantando poeira com as sirenes ligadas.
— Não se preocupe, não deixarei que eles lhe vejam. — A deusa sorriu para o filho.
Sandara continuou a caminhar sem que nenhuma viatura desse conta que havia ali um homem ensanguentado dos pés a cabeça.
Quando chegaram no meio da estrada ele já não podia andar mais, por mais que a deusa houvesse estancado o sangramento, o corte na coxa esquerda e a queimadura na panturrilha direita eram dolorosos demais para continuar se movendo.
— Mãe... a senhora se importa se esperarmos aqui?
— Tudo bem. — Oyá lancou-lhe um sorriso simpático — Seu amado já está vindo.
Nao demorou muito, nada superior a quinze minutos, ele avistou a bicicleta cor de rosa vindo pelo norte, Edmundo pedalava alegre e movia os labios, sinal que estava a conversar com Meli, os bracinhos gorduchos da menina agarrando-lhe pela cintura.
— Você quer... se aproximar? — Oyá perguntou.
— Como eu poderia? Assim como estou?
— Posso fazer com que ele não possa te enxergar, então você pode chegar mais perto. É melhor que só ver ele passar.
— Eu... eu quero sim mãe, realmente quero isso.
A bicicleta foi se aproximando, assim que estava passando diante deles Oyá ergueu um braço e estalou os dedos, Sandara piscou e quando percebeu o que havia acontecido mal acreditou.
— Vá lá, eu espero aqui. — Oyá deu um passo para trás.
Sandara se adiantou, e lá estava Edmundo e Meli congelados como estátuas, o cabelo da menina parado na posição que o vento jogava para trás, os lábios de Edmundo abertos em um sorriso, algumas pombas no céu paradas em posição de vôo, a grama do acostamento sinuosa ao ser paralisada enquanto a brisa a movia.
— O quê a senhora fez mãe?
— Parei o Tempo. Eu sou a senhora dos espíritos, não se esqueça. Quando venho a terra para tratar de algumas almas desgarradas não posso fazer isto a vista dos homens, então simplesmente paro o tempo, se alguns homens acabarem por verem o que não devem eu apago da memória deles a minha presença.
— Déjà vu...
— Sim, eles ficam com a sensação de déjà vu quando passam pelos locais que estiveram e que eu removi de suas memorias. Mas basta de falar disto, vá se despedir, temos de partir o quanto antes.
Sandara mancou até a bicicleta, parou um instante e olhou para Edmundo com o maximo de atenção que podia, não poderia levar fotografias para o lugar a qual iria então tentava gravar na memória cada milímetro dele, cada detalhe. Ele acariciou o face do rapaz manchando a pele lisa daquele rosto com sangue, então ficou na ponta dos pés e o beijou na testa. Apoiando as mãos nos ombros de Edmundo ele acabou por dizer suas últimas palavras.
— Ed... eu sei que não está me ouvindo, mas eu me pergunto como vou seguir minha vida daqui por diante. Acabei de começar a viver, mesmo já sendo quase velho eu só comecei a viver de verdade depois que passei a te amar. Queria muito que estivesse ouvindo, o que quero que saiba é que quando você disse que me amava, saiba que eu te amo mais. Quando você diz que precisava de mim, saiba que eu preciso de você mais. Eu realmente te amo. Sei que você vai ficar assustado quando se deparar com o que eu fiz, mas eu fiz isso por você. Eu queria ter a chance de só mais uma vez deitar ao seu lado, eu poderia ficar lá eternamente. Você e eu fomos feitos pra ficar juntos. Os Deuses sabiam exatamente o que estavam fazendo quando me levaram até você. Eu nunca vou esquecer do seu rosto, e espero um dia ter a chance, mesmo que de longe, de te ver de novo.
Ele se afastou de Edmundo e mancou para junto de Oyá, ela fez um gesto suave com a mão na direção do rapaz e imediatamente as manchas de sangue deixadas em sua bochecha, testa e pescoço desapareceram. Então estalou os dedos, Sandara observou cheio de tristeza os pés de Edmundo voltarem a mover os pedais e a bicicleta prosseguir para seu destino e assim ir se afastando para o lado oposto da estrada como se ele e a deusa não estivessem lá.
— Quando ele chegar em casa e ver... eu não gostaria que ele visse.
— Ele é forte, mais do que você pensa. Filhos de Oxum tendem a ter a força oculta. Não se desespere por ele, sei que vai ficar bem.
— Espero que fique. Mãe... porque Olodumare não interveio? Ele deu a entender que sabia que Zeniba estava me enganando...
— Ele não deu a entender, ele admitiu, foi explícito quanto a isto. — Oyá suspirou.
— Então... porque?
— Olodumare não vê a humanidade com uma visão sentimental.
— Ele não nos ama? — Sandara se admirou.
— Amor não é a palavra certa. O que ele faz é prezar pela existência de vocês. A parte de amar a humanidade ele deixou para nós, Orixás.
— Eu estou... tão confuso...
— Não tenha raiva de Olodumare, ele nunca foi humano, para dizer a verdade ele não compreende coisas como dor e sofrimento. Mas eu compreendo, e agora vou me responsabilizar por você, nesta vida e em todas as outras. Podemos? — Oyá estendeu a mão para o filho.
— Sim mãe, vamos.
Assim que Sandara tocou o braço da mãe a dupla desvanceu até desaparecer, foi assim que ele deixou o Ayê sem saber se um dia poderia voltar.
☆II
De volta a 2019
Meli acordou assustada, abriu os olhos e fitou um céu que estava escuro, ela deitada em um gramado muito verde e macio sentia como se o corpo fosse muito mais pesado que o normal, com certa dificuldade inclinou a cabeça para a esquerda e vi ao alcance de suas mãos a boneca e o macaco.
— Ondi... ondi Meli tá? — ela quis saber.
— Estamos em *Pondan*, território do Orixá Erinlé-Ibualama. Andei o dia todo e parte da noite. — Kikelomo respondeu enquanto separava uvas verdes em dois cestos pequenos de palha.
— Maisi... maisi nois num ia pa vila di Opará?
— Íamos sim, mas Zeniba nos atacou. Você não viu é claro, estava desacordada.
— Discoldada? — Meli se espantou.
— Você desmaiou no rio, usou demais seus poderes de água. Zeniba nos surpreendeu logo em seguida, perto de Ijimu. Não tive segurança para seguir para a vila de Opará, decidi que era melhor vir para as terras de Erinlé, aqui ela não nos encontrará.
Meli se aproximou do macaco, gemia de dor a cada movimento, ele lhe entregou um dos cestos com as frutinhas e uma cabaça cheia de agua.
— Meli qué Tanya e Dimundo. — disse chorosa.
— Eu sei que quer, mas você tem de fazer uma escolha. Se voltar para junto deles... eles vão matar a bonitinha, e se isso acontecer a culpa será sua. Você consegue arcar com a culpa de ter deixado ela morrer? De ser de certo modo a assassina dela?
— No... no... — Meli abraçou a boneca e deitou novamente na grama — Ningué vai machuca a bonitia...
Meli Sentia frio mas não disse nada, apenas ficou ali em silêncio de olhos fechados fingindo que dormia, mas não dormiu nada, passou a noite chorando baixinho para que o macaco não pudesse escutar.
— Meli medo... muto medo... — ela sussurrou baixinho para a boneca, mas como esperado não houve resposta.
☆III
Oxum Karê caminhou em silêncio, apenas movia a cabeça em acenos sutis para os muitos filhos que a cumprimentavam no trajeto, Edmundo a seguia de perto esperando o momento em que ela começaria a falar.
— Tenha paciência, meu palácio é logo mais a diante. — a deusa tinha a voz suave.
Quando Edmundo viu a opulência da construção boquiabriu-se, era uma cúpula dourada, sim como o fundo de uma cabaça mas totalmente de ouro, o brilho metálico reluzia sob a luz do sol de tal maneira que parecia ter luminosidade própria, o que mais chocava além do formato e do material empregado era o tamanho, a cúpula seria comparada ao espaço de talvez dois ou três estádios de futebol e a altura era como a de um edifício de sete ou oito andares. Ao se aproximar mais ele pôde ver que haviam grandes janelas redondas de vidro dourado por todo o entorno da estrutura, pela quantidade de fileiras era possível dizer que haviam cinco pavimentos e que todos eram de pé direito muito mais alto que os convencionais.
— A senhora mora ai? — ele se admirou ao chegar no portal ovalado da entrada principal.
— Não, isso é muito humilde para ser uma residência fixa. — Oxum moveu os ombros rindo da pergunta.
— Humilde? Eu não vejo nada de humilde.
— Aquela velha com cara de ameixa seca mora em Palácio no seu mundo com setecentos e setenta e cinco cômodos, porque eu me contentaria com menos que ela?
— Está falando do Palácio de Buckingham?
— Justamente. Humanos não podem ter maos opulência que os Deuses, não é certo. Esse Palácio aqui para mim é nada alem de um *Petit Trianon*, minha residência oficial é o Palácio de *Oxenibuomi*, isso aqui é só para quando venho a esta cidade por questões de administração. — A deusa respondeu cheia de classe.
Quando entraram no Palácio a primeira sala era de piso rebaixado e havia um palmo de água cristalina a qual refletia luz nas paredes de pedra branca.
— Eu... eu tenho de molhar os pés? — Edmundo olhou inseguro para a água.
— Espera pisar nas dependências de meu Palácio com os pés sujos? Tire essas botas horrorosas, de longe sinto o cheiro de imundície vindo delas, foi aquela *Ko-ni-eti* que lhe deu isso? — Oxum fitou as botas e as roupas de Edmundo horrorizada.
— Obá foi muito gentil conosco mãe.
— Quem vê cara não vê coração. Mas longe de mim falar mal de uma outra deusa, eu não gosto de falar mal de ninguém, mesmo que na mim na humilde opinião a deusa em questão seja mais suja que o carvão da pira de queimar lixo, mas quem sou eu pra julgar? Olodumare fez cada um dos Orixás a seu próprio modo, alguns saíram perfeitos... — Ela apontou para si mesma com o polegar — Já outros saíram... como se diz? Ah sim, ralé. — Ela tocou a orelha esquerda e riu.
Edmundo lavou os pés e então a seguiu até o centro do edifício, ali adentrou em um jardim e olhando para o alto percebeu que o centro da cúpula era oco de modo que toda a construção se dava como uma rosca e não como algo plenamente redondo como ele havia imaginado. O Jardim era enorme, próximo as paredes douradas estavam todo o tipo de plantas mas nenhuma reconhecível, mais paro o meio haviam estátuas de bronze em estilo africano retratando homens e mulheres portando arcos, lanças e redes de pesca, enroscadas nas estátuas haviam vinhas repletas de flores de alamanda em muitos tons de amarelo, no exato centro do jardim havia um lago com carpas douradas nadando em água esverdeada, no centro do lago estava sobreposto uma plataforma de madeira em forma de pentágono com uma mesa de pernas bronze brilhante e tampo de marmore Branco, de um lado dela uma grande cadeira branca de palha trançada em padrões surpreendentemente complexos e que mais parecia um trono, do outro lado um toco de madeira simples com uma almofada vermelha de bordas de tassel's sobreposta ao assento.
— Vamos lá, sente-se, quero ver algo sobre seu caminho. — Oxum Karê pediu apontando para a mesa.
Edmundo subiu na pequena ponte que rangeu sob seus pés e com quatro ou cinco passos chegou a plataforma, sem nem pensar sentou no toco enquanto a deusa sentou na cadeira de palha.
— Vai pagar em dinheiro ou cartão? — a deusa perguntou o encarando.
Edmundo engoliu em seco e gaguejou:
— N-não tenho dinheiro, vim para o Orun desprevenido...
Oxum Karê atirou a cabeça para trás e deu uma alta gargalhada.
— Estou brincando com você! Eu não sou um babalawo para viver de adivinhação como um cigano de beira de estrada, não preciso disso. Ande, se aproxime da mesa.
Edmundo aproximou o toco e então ao sentar tinha o peito bem rente a pedra.
Oxum estendeu a mão esquerda sobre o tampo com a palma virada para baixo, Edmundo não pôde deixar de reparar nas belas unhas cumpridas e pontiagudas da mão de pele suave, quando ela ergueu a mão pareceram ali dezesseis búzios brancos empilhados.
— A senhora vai jogar para mim? A sério? — Edmundo se aprumou.
— Não. Eu vou jogar para você, vou jogar mim mesma, mas tendo você como assunto.
— Como assim, senhora?
— Isso não é uma consulta, você não deve fazer perguntas, eu é que irei falar se quiser falar. Quero saber o que o futuro lhe reserva, tenho dentro do meu coração uma... digamos que uma intuição sobre coisas grandiosas que estarão por vir.
Edmundo esperou que Oxum Karê apanhasse os búzios a atirasse sobre a mesa tal qual os sacerdotes de Orixá fazem, mas não, o que viu foi ela murmurar "*sọ otitọ*" e imediatamente os búzios sobre a mesa começaram a se mover sozinhos, iam de um lado a outro formando imagens e se virando, ora exibindo a face fechada, ora exibindo a aberta.
— Sei que não posso perguntar sobre nada... — Edmundo falou baixo — mas o quê a senhora vê?
— O que eu temia. Vejo olhos verdes fulgurantes, uma mulher alada, uma coroa de ossos dourados, vejo a lua sendo corrompida e vejo uma nova cisão no calendário dos humanos. — Oxum pronunciou com a voz firme.
— O quê? Eu não compreendi... Não era sobre mim que a senhora ia jogar?
— E é, tudo isso é sobre você, mas não você Edmundo do agora, você no dia que ainda vai nascer.
— Dia que ainda vai nascer?
— Meu filho... eu vejo muito em breve o crepúsculo dos seus dias, mas vejo que após isso o sol se erguerá e nunca mais irá se por.
— Eu vou ver um crepúsculo e depois um sol eterno? — Ele juntou as sobrancelhas tentando decifrar o que aquilo queria dizer.
— E a sua voz será a espada que cortará a cabeça da águia perniciosa.
Edmundo resolveu que era melhor não comentar nada, não havia entendido bulhufas. Oxum ergueu os olhos e o encarou.
— Você agora acha que a sua missão é encontrar a menina de Yemanjá e depois partir em segurança de volta a sua terra, mas isso não acontecerá, os quatro herdarão os dias dos grandes anos, mas somente dois dos quatro hão de voltar ao mundo dos vivos, os outros dois hão de permanecer aqui na terra dos sagrados até que as quatro estações do Ayê se cumpram oitocentos e oitenta e oito vezes, só assim hão de abrir os portões do Orun e ir batalhar na guerra Santa em nome de todos nós.
Edmundo olhos para Oxum e suspirou exasperado.
— Sapientíssima, há alguma chance de me explicar o que tudo isso quer dizer?
— Não. — Ela respondeu distraida com as conchas que ainda se moviam sobre a mesa.
— Eu imaginei, e aposto que a senhora dirá "você entenderá na hora certa".
— Você entenderá na hora certa. — Oxum sorriu.
— Há algo mais que eu deva saber?
A Deusa se debruçou sobre a mesa aproximando o rosto do de Edmundo, ele olhou para ela mas com o canto da visão percebeu que os búzios haviam desaparecido.
— Você recebeu do meu sangue, por via hereditária, dois dons, mas só se utiliza de um. Porquê?
— P-porque o out-tro dom não é bom. — Ele gaguejou se inclinando para trás.
— É útil para quando for lutar, e acredite, você vai precisar usar.
— Espero que não.
— Tudo bem, mas a outra coisa que eu gostaria de lhe falar, se não for muita amolação ouvir os conselhos de uma deusa milenar, é claro.
— Não senhora, tudo que quiser falar é uma dádiva, afinal quantos filhos de Oxum viram a mãe ainda em vida? — Ele sorriu sem graça.
— É, isso é. Pois bem, quero falar sobre seu *coração de melão*.
— Coração de melão?
— Pois sim — a deusa começou a cantar com a voz melódica e perfeitamente afinada — Coração de Melão, de Melão, Melão, Melão, Melão, Melão...Coração... Coração de Melão, de Melão, Melão, Melão, Melão, Melão Coração... Doce é seu jeito de beijar... e quando quer me namorar...
Na praia, na areia, rolando, sereia...
— Isso é um *orin* traduzido? — Edmundo riu da letra infantil.
— Não, isso é uma música brasileira. Vocês jovens brasileiros tem essa mania de ouvir musicas americanas, e agora coreanas, mas não ouvem as brasileiras.
— E a senhora conhece?
— Por Olodumare, acha o quê? Que a minha existência é baseada ficar incorporando nas pessoas e só? Sei que vocês, gente de Candomblé, não se atualizaram, levaram a questão das tradições muito ao pé da letra, e que Deus os abençoe, eu sei toda a situação histórica que os levou a ser assim. Mas quando se trata de arte eu sou contemporânea. Para você ter uma ideia eu tenho muitos pares de sapatos de salto alto Versace, um guarda roupa abarrotado de *L'Artisane*.
— A senhora usa sapatos? E ainda por cima italianos? — Edmundo se espantou.
— Claro que uso. Pessoas incorporadas é que tem de ficar descalças, para manter a ligação com a terra, ja eu em minha forma original posso fazer a droga que me der vontade. Enquanto a serem italianos, Afrodite é um doce, ela tem muita influência para aquelas bandas romanas, a família Versace faz sapatos para ela já a algumas decadas, e como nós duas calçamos o mesmo número ela sempre que vem pra cá me trás uns mimos.
— Eu não creio, a senhora conhece Afrodite? — Edmundo arregalou os olhos.
— Como não? Eu, ela, Hator, Lakshmi, Freya, Rudá e Inanna nos encontramos duas vezes por ano nos equinócios da Primavera, somos um grupinho animado sabe, fazemos uma festa daquelas! Na última Ogun saiu tão bêbado que não acordou por três semanas. Um dia quando você estiver com tempo livre, ou se estiver morto, eu te levo comigo, você vai gostar. Mas vamos voltar na questão do coração de melão.
— Sim...
Oxum respirou fundo e então soltou o ar falando de uma só vez:
— Você ama Sandara, amou esse tempo todo mesmo achando que ele matou toda a sua família, o que eu sei que é problemático mas não posso julgar afinal nunca tomei boas decisões na hora de escolher homem, só que, Sandara é inocente, ele também te ama, e é isso ai.
— E é isso ai? — Edmundo franziu a testa.
— É, é isso ai. — Oxum repetiu.
— E... isso quer dizer o quê?
— Quando se encontrar com ele de uns beijos, se case ou faça o que der na telha, mas não fique todo encalacrado com situações enganosas, se quer um conselho eu digo que beije primero e converse depois.
— A senhora faz isso? Beija primero e conversa depois?
— Claro! Homens heterossexuais são burros, independente se são deuses ou mortais, então eu como uma deusa da sabedoria primeiro desfruto, pois se eu parar para conversar... melhor deixar a decepção pra depois, é ou não é?
— Sob esse ponto de vista eu concordo. — Edmundo sorriu.
Sorriu sim, mas Oxum Karê percebeu que só sorria com os dentes, não com a alma.
— Entenda, eu dou conselhos só em casos extremos meu filho, na maioria das vezes deixo com que meu povo siga o fluxo da vida sozinho, mas você não disponhe de muitas chances, a sua vida não será como a das pessoas comuns. Tente desanuviar a mente, acalmar o espírito e por o coração a frente de tudo.
— Eu te prometo que vou tentar.
— Tente sim. Sabe, talvez você pense que eu tenha autoridade e força para direcionar a sua vida, mas não tenho. Você não faz ideia de como nós deuses somos impotentes quando se trata do livre árbitro do ser humano.
— Mas e todos os seus dons? A senhora tem poder para manipular as pessoas.
— Tenho o poder, não a permissão. Tal qual qualquer pessoa tem em sua casa uma faca, mas isso não significa que possa sair degolando todos os seus desafetos. Eu só posso entrar onde sou bem vinda, e é por isso que eu estou lhe dando um conselho, para que você seja inteligente e escolha ouvi-lo.
— Eu gostaria que todos os seus filhos na terra tivessem a chance de lhe ver assim, cara a cara. A senhora é fantástica.
— Eu sou maravilhosa, as vezes nem me aguento de tão magnânima — Oxum Karê sorriu — ,mas, tenho de ser franca quanto a meus filhos, muitos dos que se dizem meus filhos já me viram, porém não me reconheceram.
— Como assim? Como poderiam não lhe reconhecer?
— Na sua terra mesmo tem muitas pessoas que cultuam Orixás mas que ao mesmo tempo não gostam de gente preta. Eles dizem coisas como "energia não tem cor" e usam o sincretismo religioso lá do século dezenove como um modo de desculpar a grande rejeição que tem por nossa cor de pele, assim substituem nossas imagens por de Santos católicos. Mesmo que seja óbvio que "deus fez o homem a sua imagem e semelhança", e se o povo preto é nos conheceu primeiro é porque nós Orixás somos também pretos, as pessoas vão negar isso o quanto puderem. Muitas vezes eu ja visitei terreiros de Candomblé e de Umbanda assim na minha forma física, fui até lá, me sentei e assisti o culto, e ninguém nunca olhou para mim com uma fagulha de reconhecimento. Não me perceberam pois sou preta. É um cúmulo um culto de matriz africana ser tão repleto de gente racista, e racistas do pior tipo, que são aqueles que negam até o fim serem isto, dão mil justificativas, mil desculpas mas continuam negando a cor preta da minha pele.
— Sim... eu infelizmente não tenho como discordar da senhora.
— Se sinta privilegiado não por ter me visto e sim por ter me reconhecido.
— Eu sou, com certeza me sinto extremamente previlegiado.
— Ótimo, agora vamos arranjar roupas decentes pra você, essas porcarias de Elekô não são para meu povo.
☆IV
Havia uma goteira, sim era o som de água. Não, não era uma goteira, era um vazamento, um cano estourado ou algo do tipo. Não, não era cano nenhum, era a chuva lá fora batendo nas telhas de barro.
Era isso que passava na mente de Zeniba quando acordou, ouvia o som da água pesada. Abriu os olhos mas não viu nada, levou as mãos ao rosto e com cuidado removeu a faixa de tecido que cobria seus olhos, e então pode ver, era uma caverna e na entrada se via o cair de muitas águas, sinal que a caverna era ocuta por detrás de uma cachoeira.
Zeniba sentou, olhou em volta e se viu deitada em uma esteira de palha vermelha, ao lado de seu leito havia um pote de barro com água fresca e uma Folha de bananeira com diversos alimentos dispostos sobre si como um banquete.
— Mogbójúri? — Zeniba chamou.
A serpente veio rapida, antes oculta na escuridão, rastejou até ela.
— Olá, finalmente acordou. — disse com a voz sibilada.
— Quanto tempo dormi?
— Um dia inteiro.
— Um dia todo? E como cheguei aqui?
— Sua mãe.
— Ah... ela me salvou...
— Ela sempre está observando. Yewá lhe trouxe para cá e restaurou sua visão. — Mogbójúri rastejou para mais perto — Você foi tola, com o poder que tem deixou o macaco lhe ferir daquele modo.
— Sim fui tola. Conheço Kikelomo desde que era muito jovem, achei que o conhecia, achei que ele era...
— Fraco? — Mogbójúri completou — Ele é um Kolobô, não existem Kolobôs fracos.
— Sabe para onde ele foi?
— Sei. Sua mãe me disse enquanto você dormia, ela viu nos búzios.
— E para onde ele vai?
— Para *Ibojì*, vai levar a menina e a boneca para lá.
— Oh não... Ibojì... é a casa de *Iku*...
📚Glossário:
1. Iruxin: (Iruṣin): chicote cerimonial feito a partir do rabo de um cavalo.
2. Pọndan: solitário, indivíduo que habita sozinho em Yoruba.
3. Petit Trianon: um pequenino Palácio construído nas dependências do grande Palácio de Versailles e dedicado a Madame de Pompadour, a mais famosa amante do rei Rei Luís XV da França.
4. Oxenibuomi: seria a frase que deu origem ao nome "Oxum", (odu) Ose n'ibu omi, ou seja "Oxê na profundeza das águas", a abreviação desta frase é que forma o nome Oxum.
5. Ko ni eti: "que não possui orelha" em Yoruna.
6. sọ otitọ: "diga-me a verdade" em Yorubá.
7. Coração de Melão: musica gravada pelo cantor Nahim no ano de 1986.
8. L'Artisane: grife Senegalesa especializada em moda tradicional africana.
9. Orin: cântico, música religiosa em Yorubá.
10. Ibojì: sepultura em Yoruba.
11. Iku: Morte em Yoruba.
Vejo olhos verdes fulgurantes, "uma mulher alada, uma coroa de ossos dourados, vejo a lua sendo corrompida e vejo uma nova cisão no calendário dos humanos."
ResponderExcluirEu: 🌚
Alusão a outro conto, Luciifer Smeraldina
ExcluirBúfalo sandara é do Mesmo universo de Lucifer Smeraldina. Os personagens de ambas as histórias vão se reunir em futuros contos, por isso oxum citou esses acontecimentos.
ExcluirEu aqui entro todo dia pra vê se postou e nada :') kkkkk
ResponderExcluirAcho que o blog ja era :'(
ResponderExcluirVou deixar claro: eu não recebo remuneração para escrever, é só um hobby. Quem quiser frequência, busque escritores profissionais. Quem quiser ler minhas historias, lerá quando eu puder postar.
ExcluirLegal👍
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