BÚFALO SANDARA - Capítulo 9

 




Capítulo 9
"Bingo!"

☆I
10 de Junho de 2005

Nas últimas seis noites Sandara havia tido sonhos com revelações sobre a vida de Enobária, coisas hediondas foram mostradas, coisas horrendas, através dos sonhos ele soube que a maioria dos irmãos havia sido tomado a força de suas famílias, Enobária assassinara os pais da maioria. As imagens vistas foram aterradoras mas nada tocou a alma de Sandara como aquele ultimo sonho.
Não se lembrava de ter ido dormir, não se lembrava nem de ter ido para casa, a última coisa que havia visto com os olhos da carne era a sua turma do oitavo ano em silêncio realizando uma prova na sala de aula, então Sandara do nada se viu diante do terreiro de Enobária, diante de sua casa, ali percebeu que não estava vendo com olhos de carne e sim com os olhos de sonho.
— Bambó? Bambó você está ai?
— Sim seu tolo, olhe para trás.

Sandara girou nos calcanhares e de repente se viu na margem de um rio, as águas eram de um r
Tom amarronzado, barrentas, as plantas nas margens ostentavam  um verde tão vivo que pareciam ter sido pintadas a mão, havia uma brisa  fresca balançando a relva, Bambó estava pousado no galho de uma árvore, Sandara foi até ele com passos fofos na terra úmida.
— Se aproxime, veja... — Bambó apontou com um aceno de sua pequena cabeça de pombo.
Sandara foi na direção indicada, passou por grandes touceiras de *ave-do-paraíso*, logo viu a pessoa, era Enobária, usava um vestido purpura sem mangas com pequenas folhas verde escuras bordadas, com uma cesta de palha nas mãos ela se inclinava e colhia pequenas flores azuladas em uma moita alta. Então o ser se aproximou, era um macaco de pelagem longa preta e branca, se balançou nos galhos baixos até se atirar diante dela.
— Abifoluwa! *Motumbá*!
— Olá Kikelomo, motumba o.
— Faz o quê? Seiscentos anos que não a vejo? Ainda está linda Abifoluwa!
— Obrigada, sim faz mais que isto. Agora não me chamo mais Abifoluwa, meu nome é Enobária.
— Nome de gente branca? — o macaco zombou.
— É uma longa história. A questão é que eu vim aqui falar com você.
— Veio ao Orun apenas para me ver? O que quer de mim?
Enobária sentou no chão para ficar na mesma altura do macaco.
— Sua mãe é a Rainha dos Kolobô, isso significa que ela sabe... ela esteve presente no momento em que alguns humanos se tornaram Orixás, foi testemunha.
— Se refere a casos como o de Korikoto? Que era mulher comum e virou deusa?
— Sim.
— Com certeza minha mãe sabe disto, já me contou muitas histórias a respeito.
— E se você pudesse perguntar a ela... digamos que hipoteticamente... se uma pessoa quisesse se tornar Orixá sem isso ser do desígnio de Olodumare.
— Sem ser da vontade dele? Mas isso... isso parece errado. Você sabe que os Orixás malvados são hoje conhecidos como *Ajogun*, foram expulsos para as sombras. Não seria vantagem nenhuma estar fora dos caminhos do grande senhor.
— Sobre ter vantagens ou desvantagens... se lembre do velho ditado "So quem o mel sabe se é mesmo doce".
— É, isso é mesmo uma verdade. — Kikelomo anuiu.
— Você meu caro, perguntaria a majestosa rainha dos Kolobô sobre este assunto?
— Eu posso perguntar a ela sim... mas o que eu ganharia em troca? Já que você citou um ditado, eu cito outro, "nem o relógio trabalha de graça".

Enobária abriu um largo sorriso.
— É, isso é mesmo uma verdade. Se você me ajudar nisso eu lhe dou o que mais quer.
— Espere um pouco... isso não é hipótese coisa nenhuma... você quer isto para si mesma não é? Quer ser Orixá? Quer ser... Ajogun!
— Bingo! — Enobária acertou o focinho do macaco com um leve peteleco — E se eu for Orixá... eu serei forte o suficiente para...
— Para? — o macaco repetiu atento.
— Para fazer grandes coisas, como por exemplo... matar a sua mãe.
— Matar minha *yeye*?
— Sim, fazer o coração da macaca sair pela boca. — Enobaria gargalhou.
— Você espera que a ajude depois de ter ameaçado minha mãe?
— Sim, afinal se a chimpanzé velha deixar de existir, a qual cabeça será destinada a coroa de Rei dos Kolobô?
— Eu... se mamãe morrer... o rei serei eu... — Kikelomo arregalou os olhos.
— E você meu caro Príncipe tem todo o feitio de Rei. — Enobária inclinou o rosto com um sorriso meigo nos lábios.

— Agora volte para casa. — Bambó falou — O mais importante a se ver esta lá.
Sandara se virou e caminhou de volta para o local de onde havia vindo, logo achou o terreiro, entrou e percebeu que não era o terreiro de verdade, não ainda, a casa tinha móveis coloniais e nada ali remetia a ser uma casa de candomblé. De repente ela apareceu, Enobaria vestia uma saia armada branca, pano da costa e turbante, estava de saída, passava pelo salão se mirando nos espelhos fixados a uma parede, então estacou o passo quando viu a figura de um macaco refletida no espelho redondo, o menor de todos. Se aproximou ligeira.
— Kikelomo? O que me diz? Traz boas notícias?
— Sim! Sim! Eu ja sei como tu podes se tornar Orixá! — A voz do macaco soou abafada.
— Como? Como posso? Me diga!
— Qual é o *Odu* do teu nascimento?
— Iká é claro, sou filha da serpente. — Enobaria disse orgulhosa.
— Tal como Iká é uma cobra de quatorze olhos, é esta quantidade que tem de precisar. Encontre quatorze dos descendentes humanos dos Orixás, quatorze dos que manifestaram os dons prodigiosos herdados do sangue de Deuses.
— Quatorze? Ora essa, eles são muito raros, como vou achar quatorze deles? Só conheço uma única pessoa herdeira do sangue e ela já está tão velha que não durará nem mais dez anos.
— Sinto muito minha amiga, a única forma é esta, precisa de quatorze herdeiros do sangue.
— E quando os achar? O que faço com eles?
— O mesmo que fez a Duquesa. Os coma.
— Comer? Engolir um a um? É fácil.
— Não, não um a um, se fizer isto não conseguirá nada. Deve juntar os quatorze e engolilos todos juntos, um em seguida do outro.

Sandara cobriu a boca com as mãos horrorizado.

— Comer eles? Para quê? — Enobária perguntou.
— Para que a centelha divina que habita neles seja acrescentada a sua coroa, assim será Orixá.
— Vai demorar muiro até achar tantos... mas tudo bem, vou começar a busca por esses filhos do sangue.

— Isto aconteceu a cinqüenta anos atrás . — Bambó falou enquanto batia asas e pousava nos ombros de Sandara — Agora preste atenção no que verá a seguir, está sera a última visão, ela é a mais importante pois não mostra o passado, esta mostrará um possível futuro.

A sala escureceu, quando voltou a clarear estava mobiliada como o terreiro que Sandara conhecia, a diferença era o sangue, o chão estava lavado de sangue. Ele olhou para alguns destroços no chão, havia muita coisa quebrada, lascas de madeira dos pés de uma cadeira, espuma vazada das almofadas de um sofá, entre estas coisas ele reconheceu a tiara vermelha de Jacqueline, o telefone celular de Eulália, o boné de couro de Sidney, a camisa polo azul celestes de Toni, a boneca de porcelana de Meli, algumas unhas postiças verde esmeralda de Maria e o estilingue de tripa-de-mico de Cachinhos, todas essas coisas dentro de poças de sangue. Então Sandara ouviu, a voz que vinha da cozinha, de todas as pessoas do mundo ele jamais deixaria de reconhecer a voz de Edmundo. Correu para lá e assim que entrou ficou tão chocado e horrorizado que sentia o coração bater em ritmo extremamente acelerado, Edmundo estava ferido, caído encolhido ao lado do fogão, diante dele estava a serpente gigantesca.
— Por favor... por favor mãe... — ele murmurava entre lágrimas.
Então a serpente ergueu-se e deu o bote.
O primeiro bote foi com tamanha força que as panelas cairam de cima do fogão, o segundo bote arrancou pedaços do pescoço do rapaz, no terceiro bote ela cravou as presas com força no ombro dele, Sandara viu com profundo horror a cobra se enrolar no corpo de Edmundo e quebrar-lhe os ossos enquanto ele berrava.
— Me tire daqui! Eu não quero ver isto! — Sandara fechou os olhos com força mas ainda ouvia os ossos quebrando.
— É isso que vai acontecer se você não impedir. — Bambó pronuncio devagar — Se ela os engolir... eles serão consumidos, as almas se perderão, nunca mais hão de reencarnar, não hão de ver o Orun. Sandara... pense bem no que é o correto, pense e faça a escolha certa.

— Professor? Professor Vicente?

Sandara abriu os olhos, estava na sala de aula, havia adormecido debruçado sobre a mesa, uma aluna em pé diante da mesa estendia a folha da prova finalizada para ele.
— Oh... Obrigado querida, pode ir. — respondeu com a voz embargada, sabia que tinha lágrimas nos olhos.

Assim que o sinal tocou ele recolheu as provas e correu para casa, logo que chegou no terreiro ignorou todos que viu pelo caminho, apenas saiu a percorrer todos os cômodos e espaços procurando Edmundo.
— Oxi Sandara, o que foi? Tá tudo bem meu filho? — Enobária o parou quando passava desabalado pela cozinha.
Ele olhou a mãe e pela primeira vez realmente sentiu ódio dela, um odio puro e verdadeiro, porém não pode expressar, a vontade que tinha era de apanhar uma das facas do gaveteiro e degolar aquela bruxa amaldiçoada, mas invés disso apenas perguntou:
— Tenho de falar com Edmundo, sabe onde ele está?
Enobária percebeu algo de estranho no filho mas jamais desconfiaria que seus segredos haviam sido revelados a ele.
— Mandei ir em casa de Zeniba apanhar umas saias que ela costurou pra mim.

Sandara deu meia volta, saiu do terreiro e correu, correu pelas ruas com toda a força que tinha, então próximo a casa de Zeniba avistou a bicicleta cor de rosa, Edmundo pedalava equilibrando um enorme saco de plástico atado ao bagageiro, quando Sandara veio até ele e segurou o guidão a bicicleta tombou de lado e caiu, Edmundo não chegou ao chão, Sandara o conteve em um abraço apertado ali mesmo no meio da rua.
— Sandara? O que aconteceu? — o rapaz perguntou assustado.
— Eu... eu te prometo Ed, te prometo que não vou deixar nada de ruim acontecer com você.

☆II
De volta a 2019

Edmundo e Tanya correram para fora do Palácio, perguntaram as duas guerreiras junto a porta se haviam visto Meli, as mulheres indicaram o rumo do portão da muralha, então os dois correram para lá.
— Ei que pressa é essa? — Uma das guerreiras os parou no meio da larga avenida.
— Nós estamos com pressa, desculpe. — Edmundo não deu atenção contornando a mulher.
— Espere ai rapaz!
— Desculpe é uma urgencia! — Edmundo seguiu caminho.
A guerreira sacou a espada, deu três passos longos e rapidos na direção dele e com o cabo deu-lhe uma pancada na nuca, Edmundo imediatamente caiu desnorteado.
— Se a Rainha de Eleko passa, você se abaixa. — a guerreira disse bruscamente enquanto ela seguida por Tanya ajoelhavam e davam o foribalé.
Edmundo gemeu enquanto sentia algo quente roçando sua cabeça, olhou para cima de deu um grito de horror ao ver o focinho gigante de um javali.
— Muitos quando me vêem pela primeira vez se assombram, se emocionam, mas cá está um que grita. — Obá disse risonha.
— Eu me assustei com esse monstro! — Edmundo gritou.
— Se acalme filho de Oxum, meu *Bajá* não vai lhe fazer mal. Só está lhe farejando pois o cheiro do seu sangue não é lá muito... apreciado por essas bandas.

Edmundo se ergueu do chão para ver quem era a mulher montada no javali, em um efeito retardatário ficou olhando para ela com os olhos semicerrados, então percebeu quem era e voltou ao chão em foribalé.
— Há por Olorum, esses filhos da *alarinrin* são uns frouxos... Calma Bajá, o menino vai molhar as calças. — Obá riu puxando as rédeas para trás afastando assim Bajá de Edmundo.
— Desculpe senhora, é que a princípio não a reconheci. — Edmundo se ergueu devagar.
— Serenissima... — Tânia falou já em pé mas com a cabeça baixa — Nos perdoe qualquer mal entendido, é que...
— A menina de Yemanjá e o macaco fugiram. — Obá completou.
— A senhora os viu? — Edmundo perguntou.
— Não, mas sinto a presença deles nas águas do meu rio, a garota está usando os dons que tem para deslocar água em baixo dos pés, está em alta velocidade... e é muita talentosa aquela uma... em minutos vão sair do meu rio e desaguar nas águas de Oxum.
— A senhora pode dete-los? Acreditamos que ela está sendo enganada... — Edmundo pediu.
— O Kolobô não presta, todos sabemos disso, e o *iwin* dentro da boneca está também levando a garota a seguir por um caminho ruim. — Obá falou.
— Então a senhora pode impedir que ela fuja? — Tanya perguntou.
— Eu posso, mas não vou fazer isso. Não me olhem assim, ela não é minha filha, eu não devo interferir no caminho dos filhos dos outros Orixás. Se ela fosse minha eu faria minhas águas a prenderem no fundo do rio, mas como eu não tolero que outros Orixás toquem em meus filhos, assim eu também não toco nos filhos deles.
— Então nós temos ir, temos de achar ela nós mesmos! — Edmundo falou um pouco revoltado.
— Ora cale essa boca, não seja reclamão. — Obá olhou para Tanya — Você filha de Ogun, não acha melhor pensar um pouco antes de fazer qualquer coisa?
— Sim... sim senhora.
— Se sairem agora, o máximo que vão fazer e dar voltas perdidos por ai, ou por acaso vocês conhecem as terras de Omilaye?
— Não... não conhecemos. — Edmundo admitiu.
— Pois bem, a menina está acompanhada de um Kolobô que anda pelos Orun desde que foram criados.
— Serenissima... — Tanya falou — A senhora diz que não pode interferir no caminho dos filhos dos outros Orixás, mas e se um de nós pedir que nos dê alguma orientação?
— Eu não conto histórias sobre os outros, mas se quiser que eu ajude na sua própria... eu posso ajudar.
— Por favor, nos ajude, não... Não teremos como achar Meli sozinhos.
— Pois bem, andem, vamos para meu Palácio, tenho de escovar Bajá.

Atrás do grande salão onde Eulália os havia  recebido existia uma espécie de coudelaria, um terreno enorme com muitos cavalos, antílopes, touros, bisões, auroques e javalis gigantes divididos em áreas como arenas para doma, baias para banho, alimentação e tudo mais, entre os animais se viam dezenas de guerreiras responsáveis pelos cuidados, era nítido o apreço daquelas mulheres pelos animais aptos a montaria.
Obá desceu do grande Javali e o levou até uma baia coberta larga o suficiente para que ele pudesse se acomodar, removeu a sela e então apanhando um pente de aço se pôs a escovar o bicho.
Imediatamente o javali se pôs a grunhir, parecia gostar de ser escovado.
— Bajá fica muito irritado se o pelo embola. — Obá falou para os dois que olhavam o animal com espanto.
— A senhora... — Tanya começou.
— Sim sim, vou ajudar vocês. Se querem achar a menina... o que tem de fazer é ir até a mãe dela.
— Yemanjá? As terras dela ficam muito longe daqui? — Edmundo perguntou.
— É... um pouco. Minhas terras fazem fronteira com os territórios de Oyá, Oxum e Erinlé. Vocês terão de pegar o caminho da esquerda, ir pelo oeste e atravessar as terras de Oxum, então chegar as terras de Otin e atravessa-las, ai chegarão as terras de Yewá que fazem fronteira com as terras de Yemanjá. Falem com ela, Yemanjá os ajudará a localizar a tal Amélia.
— Muito Obrigado, de coração, mas a senhora teria um mapa ou algo assim para nos ajudar a ir até lá? — Edmundo pediu.
— Sim e não. Não tenho um mapa, mas tenho alguém que pode guiar vocês até lá, isso serve?
— Com certeza! — Tanya se animou.
— Ótimo, venham comigo.

Obá entregou o pente de aço a uma de suas guerreiras que prontamente continuou a escovar Bajá, então Edmundo e Tanya a seguiram até uma outra baia onde estava um búfalo negro enorme.
Sandara sentiu o coração bater tão depressa que acreditou que se estivesse em forma humana teria desmaiado, apos onze anos estava ali diante de Edmundo.
— Este é *Awada*, ele é um búfalo muito inteligente, até parece gente! — Obá deu palmadinhas na cabeça do animal enquanto segurava o riso.

"Awada? Não tinha nenhum nome melhor?" — Sandara pensou.

— Ele vai nos levar? — Tanya perguntou.
— Vai sim. Ele entende a língua humana, é so falar que ele atende. — Obá deu alguns passos para trás — Vão lá, cumprimentem ele.

Tanya faz uma breve reverência ao búfalo e depois estendeu a mão, Sandara permitiu que ela tocasse em sua cabeça, depois foi a vez de Edmundo, ele fez a reverência e quando estendeu a mão o búfalo deu um passo para frente  lhe lambeu a bochecha.
— Awada parece que gosta de você. — Obá disse carinhosamente — Cuide bem dele, eu não vou gostar de saber que ele foi mal tratado.
— Não, não se preocupe fidelissima, nós o trataremos com muito respeito. — Edmundo respondeu enquanto deixava o búfalo lhe lamber novamente.

Tanya observou o comportamento do animal. Tanya é muitas coisas, mas burra com certeza não é.
— Senhora, nós estamos também a procura de um homem que pode se transformar em búfalo, ele possui o couro de búfalo de Oyá. — Tanya falou.
— Sim, conheço Búfalo Sandara, é um homem muito simpático, por mais que seja dado a sentimentalismos em demasia. — Obá piscou para o búfalo.
— Ele é diferente de Awada? Há alguma forma de o identificar quando o virmos? Alguma particularidade? — Tanya perguntou.
— Sim, a forma de búfalo que um humano toma ao vestir a capa de Oyá tem a particularidade de ter os chifres em osso cor de rosa. — Obá mentiu.
— Osso cor de rosa? — Edmundo se admirou.
— Pois é, é facil de reconhecer. Agora vou levar vocês para a cozinha de meu palacio onde receberão um bom farnel para a viagem e roupas novas e algumas ferramentas. Vamos.

Edmundo e Tanya foram vestidos com as roupas das guerreiras de Elekô, bota de cano alto para correr na floresta, saia curta de couro mole, Tanya ganhou um bustiê de couro cozido e Edmundo uma camisa folgada, por fim ambos vestiram casacos de pele.
— Não fica feio eu usar saia senhora? — Edmundo perhuntou a Oba, estava constrangido por ter suas coxas tão expostas.
— Olha garoto, a roupa tem a única serventia de proteger o corpo, a saia protege sua virilha, isso basta. Meu povo não é adepto a frescuras.
— Entendo. Muito obrigado.
Os dois montaram em Sandara, o búfalo seguiu com passos suaves  para não chacoalhar, assim partiram para a jornada até as terras de Yemanjá.

Dedora estava escorada em um poste mamando em uma garrafa de cerveja, gostava de beber ao entardecer. Ficou espantada quando viu os dois passarem montados no lombo do animal, ao chegar na avenida viu a mãe ao longe e correu até ela.
— Senhora... aqueles ali não são os vivos que vieram abordo do O Orelha?
— São sim. — Obá sorriu.
— Mas... mas ele estão atrás de achar o búfalo Sandara... e aquele búfalo que estão montando...
— É Sandara.
— Eles sabem?
— Não... — Oba apertou os olhos em puro divertimento.
— A senhora que armou esse imbróglio?
— Eeeeu? — Obá arregalou os olhos para a filha.
— Sim minha mãe, a senhora! — Dedora começou a rir — Desde quando a senhora é orixá de *ejó*?
— Não é Ejó, é amor. Poucos se lembram que eu sou a verdadeira Orixá do amor, acham que a alarinrin dourada que é, mas fui eu entre todos os Orixás que demonstrou mais este sentimento. A minha história de amor pode ter acabado mal, mas isso não significa que a deles irá seguir o mesmo rumo. Se depender de mim, Búfalo Sandara será muito feliz ao lado do...
— Do mariquinhas? — Dedora riu mais.
— Sim, do mariquinhas. — Obá sorriu.

☆III
Meli não estava bem, sentia uma dor lancinante na cabeça, sua testa exibia veias dilatadas.
— Continue Amélia... Se eles nos pegarem vão matar a bonitinha... — Kikelomo sussurrou no ouvido da garota enquanto estava pendurado as costas dela.
Meli corria sobre as águas do rio, a cada passo uma quantidade imensa de água se deslocava para trás a fazendo correr em uma velocidade absurda. Porém, por mais que ela pudesse usar os poderes no Orun sem se sentir mal como acontecia na terra, aquilo era esforço demais.
— No dá... no dá mais... — Meli abraçou a boneca com o máximo de força que podia.
— Tem que dar Meli, tem que dar. Você consegue. — Kikelomo a incentivou.
A água do rio ficou mais densa, havia correnteza desestabilizando as passadas, a água parecia resistir ao comando dela.
Meli tomou mais alguma distância e então sem prévio aviso Kikelomo foi sugado para o fundo do rio, Meli não resistiu, desmaiou. Com muita dificuldade o macaco a retirou da água e a levou para a margem.
— Enobária, o nariz dela está sangrando. — ele apanhou a boneca encharcada que boiava na margem.
— Ela é fraca. — A voz de Enobária soou.
Tanya, Edmundo e Meli não podiam ouvir a voz da boneca desde de que haviam chego no Orun, mas Kikelomo podia, a magia dos Kolobô é tão forte que durante toda a jornada ele a ouviu.
— Ela não é fraca, percorreu mais de vinte quilômetros correndo sobre a água, e fez isso por você.
— Não é o suficiente. Onde estamos?
— Meli passou a divisa entre os rios a uns dez minutos, estamos nas águas do rio Oxum, acho que dentro das terra da aldeia de *Ijimu*.

O território de Oxum no Orun Omilaye era composto de dezesseis cidades pequenas e uma grandiosa onde a própria Orixá residia, todas as cidades eram banhadas pelas águas do grande rio, Ijimu era a primeira logo na divisa com as terras de Obá.

— Acorde a imprestável, temos de seguir viagem. — Enobária falou.
— Acho que ela não vai acordar, está com o pulso fraco. — Kikelomo disse.

— Melhor assim, quanto menos testemunhas mais liberdade poética eu terei. — disse uma voz aguda.

O macaco virou de costas, seus olhos encontraram os de Zeniba.
— O que quer aqui? Nada disso é da sua conta.
— O que quero aqui? Quero esmagar seu coraçãozinho símio com as minhas mãos.

📚Glossário:
1. Ave-do-paraiso: planta floreira que se forma em grenades touceiras, sua flor é similar a um pequeno passaro alaranjado.
2. Motumbá: "meus respeitos", cumprimento tradicional Yoruba.
3. Ajogun: divindade maligna.
4. Odu: os dezesseis signos do oraculo de Ifá.
5. Iká: o décimo quarto Odu.
6. Bajá: brigão, valentão em Yorubá.
7. alarinrin: chique, refinado, gourmet em Yorubá. Também pode ser usado de modo pejorativo como "patricinha" ou "dondoca".
8. Awada: piada/brincadeira em Yoruba.
9. Ejó: confusão.
10. Ijimu: curruptela brasileira do nome "Ijumu" referente a uma cidade nigeriana da rota do cobre Onde Orixá Oxum é cultuada.

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