BÚFALO SANDARA - Capítulo 7

 


Capítulo 7
"O Orelha"

☆I
4 de Junho de 2005

Era quase onze horas da noite de um sábado anormalmente quente para o mês, Sandara suava em bicas mesmo sem camisa e com o ventilador ligado, o estado de São Paulo é assim, quanto mais para o norte mais quente fica.
Estava a escrivaninha com uma pilha de papéis a sua frente, trabalhos de escola, corrigir aquilo o deixava realmente aborrecido, dava aulas para oito turmas, duas de cada da quarta a oitava série e sinceramente aqueles anõezinhos doentis estavam a cada ano mais burros. Abriu uma folha de almaço diante de si e leu exasperado o parágrafo de um aluno do oitavo ano onde o monstrengo dizia repetidas vezes que a Baía de Todos os Santos era uma Lagoa.
— Mas como pode ser asno assim... — resmungou verdadeiramente revoltado, um dia antes de passar aquele trabalho tinha dado uma aula com explanação detalhada sobre o litoral da Bahia para aquela turma, ai chega o miserável e escreve aquelas coisas... ser professor é coisa muito ardua e Sandara após quase vinte anos de profissão já estava tomando abuso disso.
Suspirou quando  ouviu batidas na porta — Entre. — respondeu mal humorado.
A porta foi aberta devagar, Edmundo entrou carregando um enorme bicho de pelúcia verde neon, era tão grande  que tinha de segurar com ambos os braços.
— Isso é... é o Dipsy? — Sandara sentiu seu mal humor desaparecer diante daquela cena tão inusitada, o bicho era do tamanho de uma pessoa.
— Sim... é que eu ganhei na quermesse da igreja, foi no tiro ao alvo. Eu ia dar para Meli mas voce sabe, ela tem horror de Teletubbies. Então... Você quer?

Sandara entendeu que aquele "Você quer" na verdade significava "me esforcei ao máximo para conseguir ganhar isso especialmente pra dar a você", então abriu um largo e sincero sorriso.
— Claro que eu quero, eu sempre quis um desses. — mentiu, quem em sã consciência queria um troço daqueles? Porem o sorriso foi sincero, sorria pelo gesto amável.
— Você tá ocupado? Eu não queria atrapalhar. — Edmundo percebeu os papéis.
— Não, eu vou acabar isso amanhã, ja encheu minha paciência esses garranchos.
— Que bom... —  Edmundo colocou o Teletubbie em cima da cama e tirou um envelope plastico do coz da calça — Eu comprei isso também.
Sandara esticou o braço e apanhou, era uma cópia pirata do DVD do filme "Constantine" estrelado por Keanu Reeves.
— Nossa, eu queria muito ver esse, é lançamento!
— Eu sei, ouvi você falando outro dia. Você quer assistir comigo?

Ele olhou para o rapaz a sua frente, era tão jovem e tão inocentemente belo que mesmo sabendo que não devia fazer aquilo, fez.
— Quero sim. Mas eu prefiro assistir aqui se não se importa.
— Aqui? Mas a TV da sala é bem maior.
— Ainda assim quero ficar aqui hoje, estou cheio de calor e a mãe não gosta de ninguém sem camisa pela casa.
Sandara colocou o DVD para rodar, a televisão ainda de tubo, uma Mitsubishi de 21 polegadas e cores opacas, começou a passar o filme.
Edmundo ficou sem jeito de deitar na cama de solteiro, então sentou no chão diante da televisão. Sandara aquela noite estava realmente irresponsavel e por isso fez o convite.
— Apague a luz a deite aqui comigo. — ele colocou o bicho de pelúcia sobre a cadeira e em seguida se esticou na cama.
Parecia mesmo audácia e irresponsabilidade, mas eu particularmente vejo como carência.
— Mas... mas não vai ficar apertado? — Edmundo tinha as orelhas vermelhas.
— Você não quer? Se não quiser não tem problema, nós vamos pra sala então, o que não pode é ficar no chão.
— Não! — Edmundo falou mais alto que devia.
— Tudo bem — Sandara sorriu — então venha, não quero perder o início do filme.

Deitaram juntos um ao lado do outro, ambos de braços cruzados sem se encostar. Sandara achou engraçado como Edmundo parecia pequeno ao seu lado mesmo tecnicamente sendo um homem de boa estatura, mas o que eram os um metro e setenta e oito centímetros dele perto dos um metro e noventa de Sandara? Os pés do maior estavam encostados na base da cama enquanto do menor não alcançavam nem a Barra dos lençóis.
O filme era muito bom para falar a verdade, mas quando aconteceu aquela cena de Constantine viajando para o inferno com os pés naquela tina d'água Sandara achou tão maneiro que comentou:
— Como será que fazem esses feitos parecerem tão reais?
Mas ninguém respondeu. Quando olhou para Edmundo percebeu que o rapaz estava cochilando, olhos fechados com os labios entre abertos. É, Edmundo era "Manhoso como um gato", sempre fora assim, dormia facilmente e era de sono pesado. Sandara examinou o rosto do rapaz, era realmente bonito, os cílios tão cumpridos que pareciam até aquelas pestanas falsas, mas as dele eram reais, as sobrancelhas grossas e a marca acinzentada de barba na pele do queixo e buço mostravam que nem de longe era mais criança porém o cheiro de óleo Johnson's Baby que vinha daquele corpo esguio ainda criava a ilusão de infantilidade. Sandara percebeu que o pescoço de Edmundo estava de mal jeito, suavemente o puxou para junto de seu corpo, a cabeça do rapaz apoiu em seu peito e instintivamente o Edmundo entrelaçou uma de suas pernas a do homem ao lado. Foi Imediato, Sandara sentiu o volume crescer em sua virilha, era inevitável, o corpo do garoto cheirava tão bem e era tão macio, ele pensou que Edmundo estava ali se ensinuando ou cosia assim, mas então sentiu a umidade atingir seu peito e percebeu que o garoto estava dormindo tão profundamente que havia começado a babar.
"Tudo bem, um pouco de saliva não faz mal a ninguém, pode babar em mim, não ligo", Sandara pensou enquanto fazia um cafuné suave no cabelo macio do rapaz, daí começou a se sentir culpado pela ereção de momentos antes, não parecia certo, Edmundo ali daquele jeito era para ele a criatura mais doce de todo o universo. Sandara não chegou a ver o fim do filme, abraçando Edmundo com um braço e o acariciando com o outro acabou adormecendo também.

— Búfalo Sandara. — a voz pomposa o chamou.
Sandara abriu os olhos e viu que estava deitado em um carpete cinza, olhando em volta percebeu que estava na sala de visitas de um hospital. — O quê? — notou o pombo sobre a mesa vazia da recepção — Bambó? Como eu vim parar aqui?
— Sabedoria plena... isso é um sonho.
Sandara ficou em pé, e de repente a sala estava cheia de gente, recepcionistas e pacientes aguardando sentados nas muitas cadeiras. Uma enfermeira idosa entrou na sala e se dirigindo a uma mulher sentada na primeira fileira de cadeiras perguntou:
— A senhora é Francisca? A representante do conselho tutelar?
— Sim, Francisca da Nobrega, do centro de acolhimento ao jovem desamparado. —  a mulher respondeu, vestia terno cinza com ombreiras e sapatos de salto agulha e bico fino. Sandara a examinou por um momento e a reconheceu, era Enobária, as feições estavam diferentes e o cabelo era cumprido e alisado, mas sem dúvida era ela.
— Eu não sabia que ela havia sido assistente social. — Sandara falou.
— E não foi, mas tinha algumas credenciais falsas para dizer que era. — Bambó explicou.
— Por favor, o garoto está esperando. — A enfermeira indicou que deviam seguir por um corredor ao lado.
Sandara as seguiu, corredor de paredes brancas e chão de cerâmica creme, passaram por mais de uma dezena de portas ate que a enfermeira parou diante de uma cuja a placa indicava "leito 34.E.I.", o bombo seguia Sandara e explicou:
— E.I. se refere a estação de isolamento, para pacientes considerados insanos.
— Senhora quer falar com o garoto a sós? —  a enfermeira perguntou.
— Sim, quero dar a oportunidade dele se despedir. — Enobaria sorriu amavelmente.
A enfermeira voltou para a recepção e Enobaria entrou no quarto. Sandara a seguiu, a primeira coisa que viu foi um calendário fixado a parede, ali estavam os doze meses mas o que chamou atenção foi o ano escrito em letras garrafais "1975". No quarto havia uma maca com um senhor negro de uns sessenta ou talvez setenta anos muito machucado, seus braços tinham arranhões e seu rosto cortes profundos, os pulsos, a cintura e os tornozelos imobilizados por velcros que o mantinham preso a cama, ao lado em uma poltrona um menino de no máximo cinco anos também negro dormindo encolhido.
— Luís? — Enobaria o chamou o velho.
O senhor abriu os olhos e voltou o olhar para ela, imediatamente sua face se contorceu em uma careta de horror.
— Você! Foi você! Você é a bruxa!
— Isso, grite mais alto essas coisas, só vai ajudar sua situação aqui. — Ela chochichou sorrindo.
— Você veio naquela noite, veio em forma de serpente... você matou minha filha e meu genro! Você...
— Não, não, pobrezinho, — Ela deu palmadinhas nas costas da mão do velho e passou a usar uma voz infantil — sua filha e seu genro foram atacados por uma serpente jararaca, e por vocês morarem tão longe da cidade não houve tempo de socorrer, se lembra?
— Mas a Jararaca era você! — o velho berrou enquanto tentava se libertar das amarras — Eu a vi! Eu vi se metamorfosear de cobra em mulher! Bruxa! Demônio! Lucifer! — Ele gritava a toda.
Um segundo depois duas enfermeiras entraram no quarto, uma já segurando uma seringa.
— O que está acontecendo? — A enfermeira perguntou.
— É ela! É ela doutora! Ela é a feiticeira das serpentes! Essa mulher se transforma em cobra!
— Oh Deus o abençoe, o caso é muito pior do que vocês haviam me informado. — Enobaria meneou fingindo pena.
— A senhora, ele realmente está piorando, delirando com coisas cada vez mais estapafúrdias. — a outra enfermeira ja estava a injetar o conteúdo da seringa no cateter do paciente.

Sandara olhou para o menino na poltrona e percebeu que estava acordado, sentava abraçando os joelhos e tinha os olhos muito arregalados.
— Eu vou levar o garoto agora. — Enobária pegou o menino no colo — Achei que poderia se despedir com o mínimo de civilidade do avô, mas... acho que ficar perto dele só gerará mais trauma.
— É mesmo. Eu espero que o menino seja feliz no orfanato, que arranje logo uma família. — a enfermeira afagou as costas do garoto.
— Ele vai ser muito feliz, eu garanto. — Enobaria se virou e saiu da sala.
O velho ao ver ela levar o menino começou a urrar.
— Não deixe ela levar ele! Não deixe! Ela vai matar ele! Ela vai picar ele! Ela é uma cobra! Vicente! Vicente!

Sandara olhou bem para o rosto do garoto no colo de Enobaria, o reconheceu como sendo...
— Sou eu? Esse menino sou eu? — Perguntou a Bambó.
— Sim. Você foi o primeiro, a primeira criança descendente da linhagem dos Orixás que ela raptou.
Após você ela foi atrás de Lúcia e Marciel, que com você são os mais velhos da casa.
— Ela... matou mesmo minha mãe e meu pai? Como o velho disse? — Ele observou Enobária chegar ao fim do corredor, abrir uma porta e sair de vista.
— O velho era seu avô. Tudo o que ele disse é verdade.
— Meu avô...  Ele...
— Dois anos após isto ele fugiu da clinica psiquiátrica a qual foi internado, fugiu para ir te procurar. Mas era velho demais e... acabou se envolvendo em um acidente, falecendo devido a um atropelamento.
— Meu Deus...
— Esse foi apenas o primeiro sonho, nas próximas noites outras coisas serão reveladas. Durma bem.

Sandara abriu os olhos, tinha suor escorrendo pela testa e pelo pescoço. Moveu a cabeça levemente a viu que Edmundo ainda estava lá, apenas havia virado de lado. Sandara desligou a televisão usando o controle remoto e abraçou Edmundo pelas costas, enterrou o rosto na nuca do garoto e fechou os olhos sabendo que naquele fim de noite não conseguiria mais dormir.

☆II
Tanya, Edmundo e Meli se viram em uma nuvem de bolhas, eram tantas que mais parecia um fervedouro, as bolhas os empurraram para a superfície com tamanha velocidade que chegaram a saltar da água por um momento.
Olharam em volta enquanto puxavam ar para os pulmões com força.
— Estão todos bem? — Edmundo Perguntou, a água em seu queixo e as pernas se agitando para prosseguir boiando.
— Meli quase que quase... morre. Ma no morreu. — Meli sorriu com apenas a cabeça para fora d'água.
— Você incorporou Yemanjá Meli, foi muito louco! — Tanya falou também só com a cabeça para fora da água.
— Meli sabe, sabe sim, Meli é muto loca sim. — Ela sorriu orgulhosa.
— Meu Deus! Esquecemos do macaco! — Edmundo percebeu.
— Não, olha ele vindo ali. — Tania apontou com o queixo para uma figura escura se aproximando.

Kikelomo vinha sentado em um tronco de madeira boiando e remando com as mãos.
— Estão molhados em? — Zombou.
— A agüa é muto molada... — Meli concordou.
— Como você atravessou o rio sem se molhar? — Edmundo Perguntou já segurando no tronco.
— Eu sou um Kolobô, tenho meus truques.
— Kikelomo é muto loco güal Meli. — Meli gargalhou enquanto lançava os braços no tronco.
— Onde estamos? — Tanya olhou em volta.
— No meio exato do mar de Olokun. Bem vindos, vocês conseguiram chegar ao segundo Orun, Orun Omilaye, a casa das águas! — Kikelomo disse triunfante.
— Estamos no meio do mar? Tipo... um oceano? — Tanya perguntou.
— Não, o mar daqui é pequeno, é tipo parecido com mar Egeu ou mar tirreno.
— Mas... mas... nós vamos ter que nadar? A que distância fica a Costa mais próxima? — Edmundo perguntou.
— A mais próxima? Acho que uns novecentos e cinquenta quilômetros para o sul. — Kikelomo falou como se não fosse nada damais.
— Novecentos quilômetros? É como ir a nado de Portugal até a Ilha da Madeira! Nós não temos como fazer isso.
— Se vendo como os Orixás tem mimado vocês até agora, não duvidaria se algum milhares acontecesse. —  Kikelomo apertou os olhos.
— Aviu... — Meli disse sonhadora.
— O quê? — Tanya seguiu o olhar da menina — Por todos os deuses! É um navio! — Ela apontou para uma mancha que se aproximava ao norte.
— Caramba! Kikelomo os navios daqui são amistosos? — Edmundo Perguntou.
— Não pra você. — O macaco riu.

Edmundo só compreendeu quando a embarcação estava bem próxima e ele identificou as velas laranjas e a bandeira no topo do cesto da gávea com o símbolo de um Ofá sobre um escudo redondo desenhado em tinta vermelha.
— Oh não...

— Mulheres ao mar! — Alguém do navio gritou e rapidamente mais de vinte mulheres debruçaram no guarda-mancebo do convés e olharam para a água, a mais alta entre elas, uma mulher de pele preta retinta, corpo roliço, braços fortes e um turbante cor de vinho enorme na cabeça berrou:
— Quem vêm laaaaa?!
Tanya berrou de volta:
— Duas mulheres,  um homem e um macaco a deriva!
— E vem em paz?!
— Com a graça de Deus!
— Muito bem! Vamos atirar a corda, subam!

Quando subiram ao navio ficaram admirados, era tripulado apenas por mulheres e a capitã, aquela que havia gritado mais cedo veio se apresentar:
— Bem vindos ao navio "O Orelha"! Eu sou a capitã Dedora de Obá, e vocês quem são?
— Eu sou... — Edmundo tentou falar.
— Silêncio mariquinhas, deixe a mulher falar. — uma das marujas o repreendeu.
Tanya olhou para o amigo segurando o riso e depois se dirigiu a capitã:
— Eu sou a Tanya de Ogun...
— Ogun! — todas as mulheres gritaram erguendo um punho fechado acima da cabeça.
— Essa aqui é Meli de Yemanjá...
— Yemanjá! — elas gritaram.
— Aquele é Kikelomo Kolobô...
— Kolobô! — gritaram de novo.
— E este é Edmundo de...
— Ah sabemos de quem ele é filho, esses mariquinhas nunca negam a raça, sempre tem esse beicinho de choro e essa cara de "se me bater conto pra mamãe"...—  Disse a capitã que em seguida cuspiu no mar — escute aqui melzinho, este é o navio O Orelha, é a nau de Obá, então antes que abra a boca eu ja lhe aviso, uma gracinha e lhe atiro na água.
— Mas...
— O quê? — Dedora perguntou séria.
— Sim senhora. — Edmundo respondeu em voz baixa.
— O mariquinhas aprende rápido capitã! —  uma marinheira  no castelo da proa gritou e todas as outras mulheres riram.
— Lorena! Fogo nas ventas, a toda! —  a capitã gritou para a timoneira perto do manche, esta rapidamente o girou e o navio começou a ganhar velocidade.
— Encham os canecos meninas pois chegaremos em *Elekô* amanhã! Até lá quero é estar trançando  as pernas!
Todas correram para um barril no meio do convés, ao lado dele havia uma cesta de palha cheia de canecas feitas de chifre de boi e alças de madeira talhada, uma a uma as mulheres apanharam as canecas e enfiaram dentro do barril e em seguida as erguendo cheias bebida espumante.
— O que é isso? — Edmundo olhou enojado.
— É *sekengberi*! Venha, pode beber, nenhuma filha de Obá nega uma boa caneca a um forasteiro! — a capitã enfiou o braço no barril e trouxe para ele um caneco cheio.
Edmundo viu que a mulher tinha espuma a altura do cotovelo e teve de se esforçar para manter uma expressão simpática.
— Oh... muito obrigado, mas eu estou um pouco enjoado pela maresia e... acho que eu e minhas amigas não vamos querer, não é? — Edmundo olhou para Tanya e Meli e se sentiu traido quando viu as duas com bigodes de espuma por terem acabado de entonar um caneco, Meli inclusive ja metia o braço no barril para encher o dela novamente e Kikelomo bebericava de uma caneca colocada para ele não chão.
— Tudo bem mariquinhas, isso aqui é bebida pra gente grande, desça lá na cozinha e peça a quem estiver no armazem para lhe servir uma mamadeira de leite com açúcar que é bem a sua cara! — capitã zombou e todas riram, riram ainda mais ao ver a cara de raiva que Edmundo fazia.
— Eu não quis ofender, me desculpe se...
— Oito anos de sumo de suco de milho fermentado em barris de Carvalho, é isso que é Sekengberi, é forte o suficiente para por um elefante pra dormir, então se não tem coragem é melhor não beber mesmo.-

O Orelha era um galeão de três mastros e cento e vinte metros de cumprimentos, trinta e cinco tripulantes, todas mulheres filhas de Orixá Obá, a tripulação era compostas pela capitã Dedora, Zuleica a imediata, Lorena a timoneira, Melissandra a navegadora, Silemar e Obásimbo carpinteiras e todas as outras tripulantes gerais.
Os três mais o macaco foram alojados em uma cabine minúscula atrás do compartimento de carga, deixaram que repousassem o fim do dia e a noite, mas na manhã seguinte foram comunicados que iriam ter de trabalhar para pagar a viagem e as refeições, Tanya foi ajudar na carpintaria pois tinha boa mão para o martelo, Meli com linha e agulha começou a remendar buracos nas velas, Kikelomo azeitou todas as roldanas, já  Edmundo muito a contragosto foi para a cozinha descascar batatas.
Ao fim do dia quando enfim tiveram repouso e foram convidadas a jantar, Tanya finalmente pode conversar com a capitã quando ela e Meli receberam o convite de honra de ceiar na mesa da capitã.
— Capitã, qual a função deste barco? — Tanya perguntou.
A mulher, que tinha os lábios muitos grossos e pintados de vermelho vivo começou a falar cheia de orgulho.
— Nós somos o que pode se chamar de mercenárias, fazemos todo tipo de trabalho se for vantajoso para nós e principalmente se for acrescentar honra ao nome de nossa mãe! Estamos nesse momento em uma missão para... bom, isso é segredo, mas basta dizer que é importante e bem remunerada.
—  Mas como vocês navegam no mar com tanta habilidade se Obá é um Orixá de água doce?
— Quem disse essa lorota? Nossa mãe Obá, e que seja louvada todos dias, é a senhora também da pororoca, ela é que limita o que é rio e o que é mar, nos temos boa relação com a água salgada tal como temos com a água doce.
— Nossa, eu não sabia disso!
— Pois sim, quem é filha de Obá como nós não tem terra que não possa por o pé ou água que não possa navegar. Mas agora me fale de vocês, vi bem onde surgiram no mar, vieram pela passagem de Esinmirin não foi?
— Sim.
— E vocês são pessoas vivas não é? Podemos sentir.
— Sim.
— Então, qual é a história desse seu grupinho animado? Vocês podem contar?
— Claro. Estamos atrás de encontrar alguém, um homem, é um filho de Oyá chamado Búfalo Sandara, achamos que nossa busca pode começar por aqui pois neste Orun existe...
— O Palácio das borboletas? — a capitã ergueu as sobrancelhas.
— Sim, é para lá que vamos.
— Pois eu concordo, se é filho de Oyá ele deve estar morando na aldeia de Labalaba. — Dedora deu um gole em seu caneco.
— Labalaba? O que é isso?
— Oyá tem embaixadas em todos os nove oruns, afinal ela é *Iya Mesan L'orun*, vocês devem ter visto a porta de Atunko no primero Orun.
— Sim, passamos por ela.
— Aqui no segundo Orun Oyá tem um Palacio, o famoso Palácio das borboletas, em volta dele há uma grande cidade, mas que chamamos de aldeia pra ficar mais aconchegante, é a aldeia Labalaba, os filhos e filhas de Oyá geralmente moram lá.
— E é difícil de chegar até lá? Acho que o lugar ideal para procurar.
— Pois estão com sorte, é perto da nossa cidade.
— Elekô aqui é uma cidade também? — Tanya quis saber.
— Sim, a maior e mais bela das cidades dos nove Orun's, nós aportaremos lá amanhã pela hora do almoço e então poderão seguir viagem para seu destino.

☆III
No dia seguinte quando o sol já ia alto no ceu Edmundo ainda estava a trabalhar na cozinha batendo inhame em um pilão enquanto a cozinheira ria de seu esforço, parou quando ouviu o grito que veio do cesto da gávea.
— O quê? O que ela disse?
— Tem de limpar melhor os ouvidos mariquinhas — a cozinheira tomou o pilão — Melissandra gritou "terra a vista", sinal que Elekô já é visível no horizonte. Vá, sei que quer ir falar com suas amigas, pode ir.
Ele subiu correndo para o convés e encontrou Meli, Tanya e Kikelomo olhando para o mar, ao longe se via a sombra de uma montanha se formando.
— Eu nunca achei em minha vida que viveria tamanha aventura como esta... — Ele tinha os olhos aguçados a tentar ver melhor.
— Penso nas histórias que terei para contar um dia, contar que estive em um navio no mar de Olokun e que visitei Elekô, a cidade das mulheres. — Tanya falou com entusiasmo.

Dedora no alto do castelo da proa ao fitar a terra distante  comecou a entoar uma música de melodia muito dramática:

"O manto coral, flecha a disparar...
Um coração que sangrou...
Por onde fores terás amores...
Quem ouviu, remou..."

Todas a tripulação como um grande coral cantou em seguida com a voz em brado:

"Xirê! 
Braços fortes!
Dez canecos pra encher!
Diante... da Batalha... 
Vais vencer ou... morrer!"

Dedora voltou a cantar quase como um lamento:

"Umas vão chorar 
Outras vão se armar...
Qual delas escolhe ser?
Obá... com mil filhas
Farão os campos tremer!"

A tripulação voltou a cantar:

"Xirê! 
Braços fortes!
Dez canecos pra encher!
Diante... da Batalha... 
Inimigos vão correr!"

Dedora entoou sozinha:

"A donzela do rio
Pontes quer derrubar...
A água se enfureceu...
Se teu coração... se tornar amargo 
Podes ficar com o meu..."

E a tripulação bradou:

"Xirê! 
Braços fortes!
Dez canecos pra encher!
Diante... da Batalha... 
Nunca vamos ceder!"

— Que música é essa? — Tanya perguntou.
— É o hino das filhas de Obá. — Dedora respondeu sonhadora.
E realmente combinava muito com a energia daquelas mulheres.
Uma hora mais tarde O Orelha se aproximava de terra firme rumo a  entrada de um rio largo, já era possível ver a enorme onda formada pela pororoca e a diferença da coloração das águas, a do mar era azulada e do rio esverdeada.
— Agora com firmeza senhoras! Vamos vencer esta onda! Recolher velas! — Deodora ordenou.
Rapidamente as velas foram enroladas e em seguida toda a tripulação desceu para o interior do convés com exceção da capitã, da imediata e da timoneira.
— Vocês duas ai, vocês são mulheres fortes — Dedora se dirigiu a Tanya e Meli — Vão lá para baixo e mostrem do que são capazes!
— E eu capitã? — Edmundo perguntou.
— Com esses bracinhos de grilo pode ficar por ai mesmo mariquinhas, não vai ter uso lá em baixo.

A imediata arrastou um grande tambor até o bico da proa, o amarrou ao piso e então começou a bater dando murros no couro.

TUM... TUM... TUM... TUM...

Edmundo ouviu som de algo batendo na água, correu para o guarda-mancebo e olhou para baixo, seis remos enormes haviam saido de orifícios no casco e entravam na água com o ritmo das remadas determinado pelas batidas do tambor.
Ele olhou para frente e viu a onda da pororoca mais perto, tinha cerca de seis metros de altura.
— Mais rapido! — Dedora ordenou.
A imediata passou a batucar com mais agilidade:

TUM-TUM-TUM-TUM-TUM-TUM-TUM

A tripulação la em baixo passou a remar com agilidade, os grandes lutavam contra a água vigorosos, o navio começou a ganhar tanta velocidade que o vento ardeu os olhos de Edmundo.
— Coragem! Coragem! — a capitã gritava.

Então de repente Edmundo sentiu o barco inclinar, a madeira rangeu e o bico da proa se ergueu no ar de tal modo que ele sentiu borboletas no estomago, em seguida a proa baixou com força fazendo água entrar espirrando pelas laterais, um instante depois o navio estava aprumado novamente e a tripulação recolhia os remos.
— Vencemos a onda! — Dedora gritou.
Edmundo viu com admiração que o navio agora navegava pelo rio.
— Venha cá rapaz! — Dedora o chamou.
Edmundo correu para ela e apanhou a luneta que ela estendia.
— Veja lá rapaz! Veja e se admire! —  Dedora apontou para o Oeste.
Edmundo fechou o olho esquerdo e colocou a luneta no direito, através da visão ampliada contemplou uma muralha de pedras com duas torres de vigia, no topo da Torre haviam guerreiras acenando para o navio.
— É Elekô capitã?
— Sim! É a grande cidade! Vamos! Vamos para casa!

☆III
Sandara estava a caminho de Elekô afim de visitar algumas amigas, ia lentamente pela estrada, não em forma de homem mas em forma de búfalo, sim. Sandara usando a capa de couro de búfalo de sua mãe Oyá podia se tornar este animal qual ela fazia quando estava na terra milênios atrás.
Poucos sabem mas Oyá e Obá são grandes amigas, são tão amigas que parecem até irmãs.
Sandara trazia no lombo duas sacas de palhas cheias de presentes para as moças de Elekô e uma terceira saca com pontas de lança novas confecionadas em cobre celestes, presentes da propria Oyá para sua querida Obá.
Ia ele pisando manso, gostava de viajar em forma de búfalo, quando se é animal a sensação que se tem não é a de estar sobre a terra e sim de ser a própria terra. Ia contente cantarolando em sua mente quando percebeu a figura que vinha mais a frente, um homem alto com aros dourados em torno do pescoço e um saiote vermelho vivo, era bonito e de olhos atraentes mesmo sendo de iris vermelhas. Sandara se aproximou, em forma de búfalo não podia falar então apenas parou e abaixou a cabeça em reverência fazendo seus chifres tocarem a terra.
— Búfalo Sandara... se eu fosse você daria meia volta. — Disse Exu *Odara*.
Sandara ergueu a cabeça para o Orixá sem entender a recomendação.
— Ele está aqui, está em um navio rumo ao porto de Elekô. Ele Sandara, é de Edmundo que estou falando.




📚Glossário:
1. Elekô: na visão afro brasileira seria uma sociedade feminina de guerreiras liderada por Orixá Obá.
2. Sekengberi: cerveja.
3. Iya Mesan Lorun: mãe dos nove Orun's.
4. Odara: perfeição em Yoruba.

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