BÚFALO SANDARA - Capítulo 6
☆I
3 de juhho de 2005
O alarme do celular estava desativado, era sexta e a prefeitura havia solicitado a escola como local usado para o mutirão de vacinação infantil anual, Sandara, que na escola era conhecido como Vicente professor de história e geografia ficou contrariado em se alegrar ou entristecer, seria possível dormir até mais tarde sim pois o dia era vago, porém a prefeitura não remunerava esse tipo de folga forçada e aquele mês ele estava contanto com cada centavo do salário.
As quatro da manhã ele abriu os olhos, havia escutado algo lá fora. Acordar as quatro da matins em plena folga era demais, chegava a ser absurdo, ignorou e tentou voltar a dormir.
TOC-TOC-TOC
Abriu os olhos já mal humorado tomando abuso de sabe-se-o-quê estava a incomodar, buscou a origem do som e então pela luminosidade fraca viu a sombra na janela.
Levantou e a contragosto ergueu o vidro, o pombo estava lá todo empertigado.
— Que diabo pensa que está fazendo? — Sandara rosnou.
— Meu caro, sorte sua eu ter asas pois se tivesse mão metia-lhe um soco na cara. Esses são modos de falar com um emissário do divino? Onde está o *Ẹ káàró*? Não vai me prestar os devidos respeitos?
— As quatro da manhã não dou bom dia nem que você fosse o emissário do capeta.
O pássaro apertou os olhinhos cheio de consternação.
— Essa raça de gente filho de Oyá é mesmo o chorume do lixo, pare de falar, se vista e venha comigo. — Bambó bateu asas antes que Sandara pudesse agarra-lo, e acreditem, se ele tivesse posto as mãos no pombo não teria sobrado nada.
— Desgraça de pombo desaforado! Mas deixe ele, deixe ele que um dia faço um *orô* com ele, há se faço...
Vestiu só sandália, bermuda e camisa de botão, as quatro da matina ainda estava um frio danado naquele breu, mas Sandara sempre teve o corpo mais quente que o normal e era muito calorento, invés de sair pela porta, coisa que seria desagradável pois Enobária com certeza o ouviria passar a chave na porta da sala e viria quer saber onde ia.
Saltou a janela com agilidade, já tinha quarenta e quatro anos nestes dias mas era ágil como um moleque.
O pombo estava pousado no topo de um poste de luz bem na entrada da casa.
— Vamos, eu vou voando e tu veja se me segue, não temos tempo a perder.
Sandara correu atrás da ave, ela ia o mais rápido que podia afim de testar os limites do homem, mas é ai nesses pequenos detalhes que a ancestralidade se revela, a pele preta de Sandara era notoriamente de origem africana, mas o que ele não sabia é que seus antepassados não eram todos Yorubas como imaginava, séculos atrás uma de suas ancestrais, uma mulher chamada Ọlásìḿbọ̀, fazendeira das terra de Kwara havia casado com um homem *Kalenjin*, e para quem não sabe os Kalenjin eram e até os dias de hoje são rápidos como um leopardo correndo savana. As pernas de Sandara iam ritmadas engolindo os metros da estrada, corria de modo que os músculos de seu peito balançavam e o suor escorria pelo pescoço, após seis quilômetros estava muito cansado, mas não parou, se parasse sabia que o maldito pombo ia vir cheio de zombaria e isso era o que o motivava a correr mais.
Quando a estrada acabou o que restava era mato, Bambó pousou em uma arvore seca na beira da estrada e apontou esticando a asa:
— Segue para frente, sempre em frente, lá no olho d'água encontrará quem lhe espera.
— Olho d'água? Não existem lagoas ou lagos neste lado, os que tem em Monte D'Avila ficam mais para o Leste.
— Não discuta Sandara, apenas vá.
Suspirou fundo e entrou no matagal, foi pisando macio com medo de ter cobra, as caninanas viviam fazendo ninho por ali, continuou até que o mato de repente ficou, mais alto e ele viu no meio das touceiras despontar alguns *rabos-de-gato*, estranhou pois era terra seca, mas prosseguiu, logo uma luz azulada começou a surgir banhando as folhas, ao adentrar mais abrindo caminho entre elas Sandara chegou até a fonte da luz e seu queixo caiu de espanto.
Havia um pequeno lago de forma perfeitamente redonda, a água azul resplandecia como se alguma fonte de luz estivesse por dentro, mas não era só isto, uma brisa constante agitava as folhas altas do entorno, dezesseis pedras arredondadas do tamanho de bolas de boliche rolavam em torno do lago em um circuito veloz e ininterrupto mas sem fazer quaisquer ruido ao passar sobre a terra úmida, mas o mais intrigante era o fogo, pairando no Centro do lago a uns dois palmos água havia uma grande chama de fogo azul.
— Búfalo Sandara — alguém o chamou.
A voz era como de mil pessoas em coro, vozes de homens, mulheres e crianças, Sandara não entendia, ali havia a força dos quatro elementos primordiais, ele não conhecia qual era aquele Orixá, não conhecia um Orixá que tivesse poder sobre todos os elementos juntos.
— Búfalo Sandara — a voz voltou — descalça teus pés pois esta a pisar em terra sagrada.
Lentamente ele se abaixou e desfivelou as sandálias ficando descalço.
— Meu senhor eu peço perdão pela minha ignorância mas não o reconheço... qual dentre quatrocentos Imoles é este que estou diante?
O vento soprou mais forte, tão forte que Sandara caiu para para trás e teve de se apoiar com o braço para não bater o corpo no chão.
— Não sou Imolé, não sou Orixá nem respondo por nenhum dos nomes que estão a fervilhar em sua mente.
— Então... então quem é?
— Eu sou aquele de dezesseis nomes, sou o que fez o teu povo a base do pó de *irawo* e assim deu cor da noite a tua pele, eu sou o que tem os quatrocentos Orixás como crianças a puxar as barras das minhas vestes, me chamo *Olofin*, me chamo *Alagbara Oorun*, *Olojo Ooni*, *Olorun*, sou *Oluwa*, meu filho, eu sou aquele chamado*Olodumare*.
Sandara arregalou os olhos, já tremendo como vara verde foi abaixando aos poucos até dar o foribalé, ao se levantar permaneceu em silêncio sem saber o que fazer. Olodumare continuou:
— Há algo que me chama atenção nesta sua terra, algo que é um espinho no caminho dos meus. Eu me pergunto Búfalo Sandara, me pergunto se você estaria disposto a fazer um grande sacrifício em meu nome e no nome de todos os Orixás e ancestrais.
— Eu... estou senhor, estou sim.
— Pois por sete luas deverá repousar sobre as palavras que hei dizer, após isto voltará e me dará a sua resposta.
— Sim... o que é? Senhor.
— Há alguém, uma feiticeira, uma que passará de todos os limites criados por mim, uma que se não for silenciada fará coisas terríveis. Eu Sandara lhe pediria para remover esta trave de meu caminho.
— E quem é essa feiticeira meu senhor?
— É uma filha da serpente vermelha, uma que recebeu de sua mãe dádivas adquiridas pelo amor desmedido e insano. Uma que mesmo sendo humana já viveu sobre a terra por duas mil luas grandes. Seu nome primário foi Iyá Abifoluwa Fehintola. Esta mulher tem em sua casa muitos herdeiros filhos frutos do sangue e da carne dos Imolé, e choro pelo destino cruel destas pobres crianças.
— Meu senhor... não está se referindo a... não a...
— Eu lhe peço meu filho, lhe entrego a ardua missão, lhe rogo que de um fim a existência de... Enobária.
Sandara engoliu em seco.
— Eu não entendo, porque? Porque eu deveria matar minha própria mãe?
— Ela não é sua mãe. Os laços que unem uma mulher aos tesouros da maternidade são todos baseados em amor incondicional, e eu Búfalo Sandara tenho de lhe dizer as palavras amargas, está mulher não o ama.
— Não? Nao... Eu pensei que...
— Existem coisas que precisam ser interrompidas.
— Enterrompidas? — Sandara ergueu a voz — Quatrocentos anos de escravidão do meu povo, genocídios, estupros e a limpeza étnica que continua em progresso, quando foi que alguém do lado de vocês quis interromper qualquer dessas coisas?! Agora eu devo matar a mulher que me criou para um fim que nem compreendo?
A chama azul cresceu tanto que Sandara teve de esticar o pescoço para olhar para o alto, o calor queimou sua pele e ele se encolheu para longe.
— ABAIXE SEUS OLHOS FILHO DA TERRA! NÃO PASSE PELA TUA BOCA E PELOS TEUS DENTES A LÍNGUA PARA DIZER COISAS DE QUE NÃO SABE! OS ANOS DE ESCRAVIDÃO FORAM MUITOS MAIS QUE QUATROCENTOS E SE EU E OS MEUS INTERVIMOS OU NÃO JÁ NÃO É DE SEU ALCANCE, ÉS POR ACASO ALGUM DEUS MAIOR QUE EU PARA COBRAR DE MIM A RESPEITO DAS COISAS VIVIDAS EM UMA ÉPOCA QUE NEM NASCIDO ERAS?! — A voz soou tão grave que os ouvidos de Sandara doeram.
— Não senhor, eu... eu peço que me perdoe. Não pensei para falar.
A o fogo diminui ate o tamanho anterior e a voz se restaurou ao que era.
— Sandara... Nós que nascemos da luz tomamos providências sobre as coisas da luz e das trevas. A tua raça é carne, mas nós não temos a sua raça como cavalos a serem guiados em cabresto. O que a humanidade faz consigo mesma nós não podemos impedir, não iremos interferir. Você fala de mágoas de escravidão e genocídio, mas não foi Deus ou espírito algum que prendeu meu povo aos grilhões. Quem brandia o chicote contra o homem era o próprio homem. Não me estenderei nisto pois tu não tens como entender, a tua visão é dos que vivem na terra e por isto só viu um mísero pedaço da história enquanto nós que somos do alto vimos tudo e sabemos de tudo. Não volte sua mente a nos cobrar sobre dívidas que não temos. Quem lhes deve e que com certeza e garantia pagará, é o homem.
— Mas se... se não interferem nas coisas humanas... porque me pede para matar minha própria mãe?
— Não é óbvio?
— Sinto muito senhor, mas não.
— Nós do alto não cortamos as asas dos homens. Mas Enobária não é da raça dos homens à muitos anos. Ela, mesmo que de forma horrenda e imunda, conseguiu se tornar algo próximo as feiticeiras das cabaças dos pássaros.
— Está dizendo que Enobaria é uma *Iyami*?
— Quase, está a um fio de ser uma *Ajé*.
— E... porque isso é tão mal?
— As outras Ajé, as que vivem nas copas das arvores, respeitam a ordem natural do mundo dos viventes. São sim muito travessas as vezes, mas jamais se interpuseram no caminho dos humanos, jamais adulteraram o destino dos filhos de terra.
— E Enobária não será assim?
— Se Enobária se mover para onde deseja... uma catástrofe acontecerá, algo tão grande e perverso que não hei de manchar minha voz ao declamar estas coisas. O sangue de homens e mulheres sera derramado de tal formar que... há coisas que não devo dizer, mas o que basta é lhe dizer que é gravíssimo.
— Eu... eu é que não sei o que dizer.
— Sete luas lhe darei para que pense, durante estas luas revelerei a ti coisas do passado e do futuro para que saibas a verdade oculta.
Sandara assentiu e abriu a boca para dizer algo, mas ao piscar os olhos, ficou novamente admirado pois o se deparou com a cama, o guarda-roupa e a escrivaninha, olhou em volta para ter certeza e sim, estava em seu quarto.
— Sete dias, a cada noite um *àlá*. — Disse Bambó.
Sandara olhou para a janela e lá estava o pombo.
— àlá? E o que verei nestes sonhos?
— A Verdade. — Bambó bateu asas voando para longe.
☆II
Edmundo observou Tanya sair com Ogun, viu que o Orixá falava com ela e pela expressão da amiga as coisas ditas deviam ser sérias. Quis esperar ela voltar mas sua visão escureceu e ele adormeceu ali mesmo deitado na areia.
— Ed? Edmundo? Você está bem? — ouviu a voz de Tanya o chamar e quando abriu o olhos tomou um susto, a praça estava iluminada pelo sol da manhã, ele havia sido arrastado até a sombra feita pelo bambuzal, Meli dormia ressonando bem ao seu lado e abraçando com firmeza a boneca.
— Nossa! Quanto tempo eu dormi?
— Umas doze horas. — Tanya tocou levemente a Folha grossa que cobria o ferimento no ombro do amigo — Ainda dói?
— Não... — Ele sentou e moveu o braço, podia mover os músculos normalmente e não sentia mais os ossos quebrados — Mas que espécie de milagre foi este?
— Ewe-Isu, aquelas sacerdotisas de Oyá trocaram a folha três vezes durante a noite, disseram que essa folha foi colhida aos pés da montanha do leão branco, elas podem curar qualquer ferimento e até fazer crescer membros.
— Nossa... eu... onde elas estão? Gostaria de agradecer.
— Elas estão dentro do bambuzal, algumas horas atrás acordei com um redemoinho parado diante dele, uma mulher muito bonita com uma saia rodada feita de *mariwo* saiu dele e entrou no bambuzal com elas...
— Não... será quê...
— Sim, eu acho que era *Oyá Igbalé*.
— E era mesmo. — Disse Kikelomo.
— Onde você estava macaco? — Tanya perguntou.
— No mato catando umas frutas, olha o que eu tenho! — mostrou um pequeno cesto de palha cheio de groselhas e jabuticabas.
— Que maravilha! — Tanya comemorou.
— Já vamos embora?
— Eu queria agradecer as servas de Oyá... — Edmundo falou.
— Sinceramente, acho que mesmo cheios de gratidão nós não devemos ir até lá neste momento, sabem que Igbalé não é amistosa. Lembram? — começou a cantar — "biiri ibi bo won l'oju, ògberi ko mon mariwo..."
— "cá está o culto, mas os olhos no não iniciado não devem espiar o que está atrás do mariwo" — Tanya traduziu.
Eles olharam para o bambuzal cheios de expectativa.
— Mas eu sou iniciado. — disse Edmundo.
— Pode ser lá para sua gente na terra, mas qualquer dos ritos que tenha feito lá tem propriedade para te por como do mesmo nível de um Orixá? — Perguntou Kikelomo.
— Não... — admitiu Edmundo.
— Então deixe a Orixá fazer as coisas dela em paz.
— Sim, vamos acordar Meli e continuar viajem. — disse Tanya e assim fizeram.
Quando estavam prontos para partir Edmundo apanhou um graveto e escreveu com letras garrafais na areia "muito obrigado por tudo", então partiram.
O caminho a seguir era como descer a serra rumo a praia, caminhavam por uma estrada de terra batida, uma verdadeira ladeira ladeada por grandes palmeiras, o ar era umido e quente . Iam andando devagar enquanto comiam as frutas.
— E agora Kikelomo? Para onde vamos? — Edmundo perhuntou.
— Vamos para nossa última parada neste Orun, as águas de Esinmirin.
— Nossa, eu achei que esse Orun era maior... — Tanya comentou.
— E é, acontece que... bem, imagine uma laranja cortada ao meio. Imaginou?
— Sim. — Tanya, Edmundo e Meli respoderam juntos.
— Os nove Orun's são deste formado, são mundos planos e circulares. A parte habitada é a que seria a parte plana da metade da laranja, a parte onde a faca dividiu, e a parte de baixo é Redonda.
— É güal o templu di Kamisamá do Dlagon Ball Z? — Meli perguntou.
— Nao faço ideia do que você acabou de dizer garota... — Kikelomo fez uma careta —bom, olhem para cima, estão vendo o sol?
— Si. — Meli respondeu.
Na verdade não é um sol, vocês estão olhando para o nono Orun, a casa de Olodumare, ele brilha como uma estrela de fogo e pela parte de baixo do Orun ser Redonda ele parece como o sol da terra.
— É sério? Parece tanto um sol de verdade... — Edmundo falou.
— Sério sim. O que chamamos de noite é quando Olodumare adormece, isso faz a luz dele se abrandar. Os outros oito oruns são de mesmo formato, porém de tamanhos diferentes. Quando o céu escurecer vocês ao olhar para cima verão várias luas, que na verdade são os outros Orun. — Kikelomo explicou.
— Uau... esse mundo é realmente fantástico! — Edmundo falou.
— Sim, como eu ia dizendo antes, esse Orun aqui tem muito mais lugares, mas nós já estamos perto do Centro dele, e é no centro que fica Esinmirin.
Não era tão perto como imaginaram, a caminhada durou três horas, as solas dos pés já doíam quando chegaram as margens de um rio turbulento, a agua era escura e espumenta e era tão largo que ao tentar enxergar a outra margem só viam árvore pequeninas em meio a uma névoa clara.
— Como vamos atravessar isso? É uma corredeira! —Tanya reclamou.
— Não é atravessar, é chegar no fundo. — Kikelomo disse.
— Chegar ao fundo?! — Tanya e Edmundo se espantaram.
— Sim. Olhe só meus bons amigos ingênuos, os Orixás passam livremente de um Orun a outro pois... pois são Orixás não mesmo? Porém para as almas isso aqui não é casa de mãe Joana, não podem sair zanzando por onde bem querem. As passagens de um Orun a outro foram colocadas em locais onde só as almas muito valentes... ou muito burras, se atreveriam a adentrar.
— Em nome de todos os deuses... como faremos então?
— Temos de entrar e quando chegarmos ao fundo vocês tocam nas pedras e sopram o chifre.
— Mas... mas você não disse que o chifre era inútil para os que não são filhos de Oyá? — Tanya perguntou.
— Sim, se soar a trompa em qualquer lugar do Orun sem serem filhos de Oyá ela os leva de volta ao portão Onibode, mas se soprarem no momento em que estiverem bem na fronteira de um Orun, ai ela os deixa passar para o próximo. — Kikelomo contou.
Os três olharam para o rio, as águas corriam de um modo que se olhassem para dentro de um liquidificador ligado veriam nele mais paz do que ali.
Enquanto Edmundo, Tanya e Kikelomo debatiam sobre como poderiam entrar naquele tormento, Meli se aproximou da margem so rio e esticando o pé direito tocou a água com o dedão.
O estrondo que se seguiu foi tão forte que Meli teve de cobrir os ouvidos com as mãos.
Do leito do rio ergueu-se uma mulher gigantesca, tão grande quanto um eucalipto adulto, seu corpo era semi transparente feito de água mas os olhos eram azuis muito claros feitos de gelo, seus cabelos d'água caiam como cascata pelas costas e no topo da cabeça ostentava uma coroa de vapor branco.
— O que é isso?! — Tanya se desesperou pelo tamanho e principalmente pela expressão furiosa da deusa.
— É Esinmirin! — Kikelomo respondeu.
☆III
A TRISTE HISTÓRIA DE ESINMIRIN
Meus caros, sei que querem mesmo é saber dos segmento da novela, mas eu como a pessoa que sou não poderia deixar ninguém no escuro sem saber quem é Esinmirin.
Esta deusa não é personagem inventada, não foi criada por mim, tal como os Orixás ela é poderosa, mas infelizmente foi esquecida.
Porém, para aqueles que gostam de leitura Cultural recomendo ir atrás da história da Rainha Moremi Ajasoro pois está foi o ultimo mito africano onde Esinmirin apareceu.
Há uma grande confusão em se acreditar que os Orixás são os deuses mais antigos do povo Yoruba, pois isso é falso. Os Orixás são muito velhos sim, mas há quem seja mais velho que eles.
Na África, em um tempo onde não havi ainda o grande Império de Oyó, existia no local proximo onde cem mil anos mais tarde a cidade um dia viria a ser fundada, um rio. Este rio totalmente selvagem não conhecia nome nem de pai nem de mãe, não reconhecia nada mas ainda assim, sozinho e por espiritualidade própria se tornou vivo, ou melhor, viva. O rio se transformou na deusa Esinmirin.
Com o passar dos milênios a raça humana veio a existir, os que habitaram a região, ainda vivendo como índios, souberam que o rio havia se tornado sagrado, fizeram então cultos a ela, foram até Esinmirin e reconheceram sua soberania.
A Deusa era grandiosa e capaz de grandes feitos, porém era cruel.
Sim, todos os deuses antigos exigem oferendas, as vezes animais, frutas ou até ouro, mas isto tudo para Esinmirin era coisa muito pouca e sem serventia. Ao observar a humanidade se formando ela entendeu que a coisa mais preciosa para o homem e principalmente para a mulher eram os seus filhos.
Sim, vocês ja estão a entender não é? Em troca de realizar milagres para os mortais Esinmirin exigia que os pais sacrificassem seus filhos, e houve um tempo em que as águas do rio viviam vermelhas de sangue inocente.
Esinmirin reinou por tantas eras que nem eu sei precisar um numero de anos, mas seu poder em um determinado momento começou a desvanecer.
Lá no mar havia outro Deus tão velho quanto Esinmirin, um de nome *Olokun Ajaokoto* e este gerou junto a deusa dos lagos sete filhas. Uma dessas filhas, a mais velha, era chamada *Omileye*, e esta Omileye era muito poderosa, tanto que com seus poderes mágicos gerou em seu útero vinte a quatro mil seres da água, seres que mais tarde foram chamados de Ejá, ou seja peixes. Por este feito magnífico Omileye recebeu o título de "mãe cujo os filhos são peixes", que em Yoruba se diz "Yeye-Omó-Ejá", ou para os mais chegados "YEMANJÁ".
Yemanjá tinha os mesmos dons de Esinmirin, eram totalmente equivalentes em força e destreza, porém havia uma diferença, Yemanjá por vontade de Olodumare saiu das águas e veio a nascer em corpo de mulher humana por dezesseis vezes. Isso foi feito para que Yemanjá não se tornasse uma deusa cruel e mimada como era Esinmirin e como era seu próprio pai. Da fato Olodumare é um que sabe bem das coisas pois após Yemanjá ter completado sua jornada em corpo de carne, voltou a ser deusa, e sendo assim era agora uma deusa muito compreensiva, sabia o que era chorar, o que era violência, o que era a fome e a dor, então nunca em nenhum momento abusou dos humanos.
Isso fez com que todos os homens da região do rio Esinmirin deixassem de cultuar aquela deusa sanguinária e passassem a dar culto àquela tal Yemanjá, pois essa não exigia deles a morte de crianças, e pelo contrário, Yemanjá proibia qualquer maus tratos aos pequeninos.
Então o povo de Esinmirin foi mirrando, mirrando, mirrando, mas mirrando tanto que um dia ninguém dentre os humanos mais a queria.
Esinmirin se tornou ressentida, furiosa com o abandono, furiosa ainda mais com a deusa jovem que havia tomado-lhe o posto. Cingida de armadura e munida de espadas e lanças ela saiu de seu rio e foi atras de Yemanjá jurando que iria mata-la e tomar de volta tudo o que era seu. Mas Esinmirin não sabia de uma coisa, Yemanjá não era deusa avulsa como ela, Yemanjá era Orixá e isso significa não existir sozinho.
Quando Esinmirin chegou ao Palácio de Yemanjá foi surpreendida por uma fileira de orixás armados e prontos para a guerra, Yemanjá na ponta da fileira vinha também cingida de armadura e com espada e *ofá*nas mãos apresentou a ela seus companheiros Ogun, Oxum, Logun Edé, Xango, Obaluayê, Erinlé e muitos outros que são ferozes na batalha.
Não houve guerra, Esinmirin não foi tola de desembainhar a espada diante daqueles valentes.
Olodumare, o supremo Deus, vendo o sofrimento de Esinmirin por ter se tornado uma Deusa solitária ofereceu a ela a chance de sair do Ayê e ir morar no Orun.
Ela aceitou, mas nunca deixou de odiar Yemanjá e pelos milênios que seguiram esteve esperando ansiosa pelo dia da vingança.
☆IV
A Deusa olhou para baixo e seus olhos gelidos correram ligeiros.
— Onde está? Onde se escondeu? — disse com a voz rouca.
Kikelomo subiu no topo da cabeça de Tanya e gritou:
— *Maferefun* minha augusta senhora, quem procuras?
— A imundície das águas, e ela que procuro, senti a poucos segundos o toque dela no meu rio! Diga macaco Kolobô, onde se escondeu a miserável? Onde está Yemanjá?!
O macaco, que é sabido como um diabo, entendeu a situação mas não demonstrou entendimento, o problema foi Edmundo, ele imediatamente compreendeu que a presença que a deusa havia sentido havia vindo de Meli, pois ela tinha correndo nas veias o sangue de uma das encarnações antigas de Yemanjá. Invés de fazer como o macaco e ficar parado, Edmundo olhou para Meli assustado.
O movimento involuntário do rapaz não passou despercebido e a deusa voltou sua atenção a Meli.
— Quem é você? — a deusa apertou os olhos fitando a garota.
— Eu so Meli. — respondeu com queixo erguido. Meli havia escutado a deusa chamar sua mãe de miseravel e não perdoaria isso.
— Meli é nome de gente comum, eu quero saber seu Orukó.
— Meli, não... — Tanya murmurou.
Meli ergueu mais o queixo e respondeu:
— Me Olukó é Yemojabisi.
Os olhos da deusa se arregalaram em fúria, fechou a mão esquerda, mão do tamanho de um carro, e atingiu Meli com tudo, a força do impacto da mão de água contra o solo foi tão intenso que as palmeiras próximas tremeram e perderam muitas de suas folhas.
Edmundo e Tanya fizeram menção de correr até ela mas o macaco gritou:
— Não se mexam! A menina está bem.
A deusa ergueu a mão lentamente e seu rosto se entortou em uma careta medonha quando viu Meli viva.
— O quê aconteceu com ela? O que está vestindo?! — Tanya perguntou a ninguém em particular.
As roupas comuns de Meli haviam desaparecido, em seu lugar ela vestia agora um tipo de armadura prateada, placa de peito reluzente com dezenas de buzios cravejados, saiote de couro branco com a barra em fivelas de prata, sandálias de guerra com grevas também de prata cobrindo as panturrilhas e o peito do pé, braceletes de prata talhada com peixes desenhados em relevo, o cabelo preso em um rabo de cavalo alto e na testa uma placa de prata que terminava em uma península cobrindo o nariz como a testeira de um cavalo de batalha, ela tinha a mão esquerda abaixada com um escudo redondo com a figura de um polvo esverdeado desenhada e a mão direita erguida segurado o cabo prateado de espada, só o cabo era de metal pois a lamina era de água.
— Eu não acredito... faz séculos que não vejo essa armadura... — Kikelomo boquiabriu-se.
— Que armadura é essa? De onde veio isso? — Edmundo perguntou .
— É a *Ihamóra Ogunté*!
Meli tinha a expressão séria quando olhou para Esinmirin:
— Suporto seus insultos e suas criancices sem reclamar, mas você Não ira tocar em um fio de cabelo de meus filhos! — a voz de Meli soou límpida e um tanto mais imponente.
— Não é Meli... Yemanjá está no corpo dela! — Tanya se admirou.
E era verdade, Yemanjá possuindo a garota estava ali pronta para a batalha.
Esinmirin urrou de puro ódio e com ambas as mãos atingiu Meli causando outro estrondo na margem do rio, antes que pudesse se mover as mãos gigantescas explodiram em uma torrencial de água aspumosa e Meli saiu do meio da explosão em um salto com o escudo erguido sobre a cabeça e emitindo um grito de guerra agudo e sibilado com o som similar a "iiiiiiiiiiiiiiiiii".
Esinmirin olhou os cotocos nas extremidades dos pulsos e furiosa fez seu corpo colossal estourar, a onda que se formou quando a água caiu atingiu em cheio a margem empurrando Tanya, Edmundo e Kikelomo rumo aos troncos das palmeiras, então do leito do rio saltou uma mulher de tamanho humano de pel palida branco-azulada e cabelos crespos da cor de ferrugem, trajava armadura de metal negro e tinha nas mãos uma lança e um *mangual *.
— Maldita seja por todos os dias que o sol banhar a terra! — gritou e se atirou contra Meli girando o mangual sobre a cabeça.
Meli ergueu o escudo e quando o mangual bateu contra ele o som foi como o de uma explosão, ergueu o braço da espada e atacou, Esinmirin se defendeu com o cabo da lança e girou o corpo batendo novamente o mangual contra o escudo da inimiga.
Tanya se colocou em posição de ataque e seu corpo inteiro se tornou de aço como antes.
— Se está pensando em se intrometer, não o faça. — Kikelomo avisou.
— Porque não?
— Aquela é Ogunté, quando Yemanjá se manifesta sobre esta forma acaba por ter certo gosto pela guerra, se você se intrometer ela vai pensar que está lhe tirando o prazer da luta e é capaz de lhe atacar.
— Meu Deus... então vamos só assistir? — Edmundo falou.
— Não há opção.
Esinmirin abaixou rapidamente girando com a perna esticada, Meli caiu deitada com a rasteira girou o corpo para o lado antes da lança da inimiga atingir seu rosto, a lança fincou na terra úmida e Meli bateu com a espada em seu cabo a partindo, Esinmirin observou com fúria o cabo de madeira curto e sem ponta em sua mão e o atirou longe, girou novamente o mangual e bateu contra Meli que já em pé se defendeu com escudo, Esinmirin girou novamente a arma com o braço estendido e Meli e surpreendeu com um chute de sola do peito, Esinmirin desequilibrou e caiu sentada, Meli Brandiu a espada contra ela e em um flash a cabeça decepada da inimiga rolou pela margem do rio até encontrar as águas.
Tanya, Edmundo e Kikelomo vibraram na torcida comemorando a vitória.
— Matou ela! A senhora matou ela! — eles gritavam a plenos pulmões.
Yemanjá através de Meli se virou para eles e falou:
— Não, ela perdeu uma batalha, não a vida, esta que matei era só um dos muitos fantoches de Esinmirin, ela mesma é uma covarde que se esconde em uma caverna na nascente deste rio. Aconselho que vocês entrem na água imediatamente antes que ela mande outra fantoche para guerrear. — ela apontou a espada para o rio comandando as águas e assim fazendo a turbulência dar lugar a calmaria.
— Sim sim, e a propósito, *Odoya! Odofeiyagba!*, seja louvada todos os dias minha senhora! — Edmundo gritou animado enquanto ele e Tanya faziam um foribalé rapido e desajeitado.
— Vão na frente, eu vou de retaguarda. — Yemanjá disse.
Tanya enfiou a boneca na a bolsa de palha e a prendeu nas costas mas antes tirou dela o chifre de búfalo, encheu os pulmões de ar e entrou no rio seguida de Edmundo, a água era demasiado turva para enxergarem mas nadaram rumo o fundo, era mais profundo que imaginavam e ja estavam quase sem ar quando tocaram a pedra cheia de musgo que servia de piso para o leito, Tanya sentiu os braços de Edmundo e de Meli abraçando suas coxas e então colocou o chifre na boca e expulsou todo o ar dos pulmões em um sopro que rendeu uma nuvem de bolhas e o som abafado:
FOOOOOOOOOOOOOOOOOOON!
E assim desaparecem do fundo do rio Esinmirin indo parar em outro lugar.
📚Glossário:
1. Orô: imolação, rito secreto onde se sacrificam animais dentro do candomblé.
2. Ẹ káàró: "bom dia" em Yoruba.
3. Kalenjin: grupo étnico do Quênia, famoso por seus velocistas e maratonistas.
4. Rabo-de-gato: planta que só cresce em pântanos e lodaçais.
5. Irawo: Estrela em Yoruba.
6. Olofin: "senhor do Palácio".
7. Alagbara Orun: "o poderoso do céu".
8. Olojo Ooni: "senhor dos dias".
9. Olorun: "senhor do céu".
10. Oluwa: "nosso senhor".
11. Olodumare: "senhor do poder da criação".
12. Iyami: "minha mãe" em Yoruba, termo usado também para divindades ancestrais femininas.
13. Ajé: feiticeira.
14. Àlá: sonho
15. Ewe-iṣu: Folha de inhame.
16. Oyá Igbalé: culto de Oyá voltado aos espíritos dos mortos.
17. Olokun Ajaokoto: "senhor do mar que sopra em conchas", deus Yoruba dos oceanos.
18. Omileye: um dos nomes de Yemanjá, se traduz como "casa da água da vida".
19. Ofá: arco e flecha.
20. Maferefun: "maa-ife-ire-fun", saudação para os Orixás muito usada na santeria cubana, se traduz como "dedico todo meu amor a ti".
21. Ihamora: armadura, roupa para guerra.
22. Ogunté: nome de Yemanjá quando guerreira.
23. Mangual: arma medieval (vide imagem).
24. Mariwo: folha de palmeira desfiada.
Que tudo gente 💅👀👄👀💅
ResponderExcluirGenteeeeee... tô gritando aqui com essa luta..
ResponderExcluirdemais!!!!!!
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