BÚFALO SANDARA - Capítulo 5
☆I
Já não era possível puxar na memória qualquer coisa sobre Pernambuco, tudo parecia apenas um borrão, lembrava as vezes de estrada de terra e mato alto, de chupar cana e de brincar com um cachorro cor de mel de nome Zé Banzé, mas fora isso mais nada.
A memória nítida começava em uma rodoviaria onde o casal de irmãos, a menina de nove anos o menino de seis, embarcaram apenas com uma mochila com uma troca de roupa para cada e uns trocados para o lanche.
A menina se chamava Bethânia, mas para os chegados era apenas Tânia, e o menino era chamado André.
Os dois eram escravos.
Sim meus caros, não lhes conto nada sobre a época do Império, não falo sobre navios negreiros nem nada do do passado,não, o que conto é de um tempo bem perto do agora, até os dias atuais existe escravidão no nosso pais, nós é que somos perversos e fechamos os olhos para isto.
Era ano de 1985 e André da mãe so tinha a lembrança de ser muito severa e ter vendido ele e irmã para uma senhora da capital de São Paulo, Tânia ia para trabalhar de doméstica e André no asseio do jardim.
A viagem de ônibus foi longa, não horas mas sim dias, quando chegaram a são Paulo havia na rodoviária o chofer da patroa lhes esperando, o homem era até simpático pois lhes pediu desculpas quando mostrou a eles que os bancos de trás do suntuoso Opala haviam sido forrados de jornal para que sentassem, a patroa tinha nojo de sentar no mesmo lugar que gente pobre.
A mulher, palida com um palmito e gorda como uma leitoa os recebeu muito secamente, iriam morar na casa dela, um casarão fascinante com feitio de casa de novela no bairro Jardim França. Os dois foram malocados em um quartinho no porão atrás do aquecedor a gás e iram dormir no mesmo colchão velho com outra menina, Alice tinha só dez anos de idade e já trabalhava ali havia cinco. Era assim, acordavam as quatro da manhã e iam dormir depois da meia noite, todo dia era de trabalho. Lavar a roupa a mão, por no varal, cozinhar, varrer, encerar os pisos de marmore, passar espanador nas estátuas e bibelôs... A casa de três andares era demasiado grande para as duas meninas darem conta da limpeza, e o Jardim que mais parecia um campo de futebol era pesado demais para André cuidar sozinho, els tinha de todo dia podar, capinar, regar, limpar, recolher bosta de cachorro, depois que acabava tinha de entrar e ir ajudar na casa. Sempre que o serviço ficava incompleto a dona patroa descia até o porão e só parava de brandir o cinto nos três quando o braço cansava.
Era uma vida muito ruim, muito mesmo.
Passaram um ano lá até que o chofer, um homem bigodudo e magro feito vara pau desceu ao porão de madrugada, acordou os três e disse assim:
— Amanhã vai chegar aqui o filho da patroa, ele vem do estrangeiro depois de ter se formado doutor nas Américas. É um conselho que dou para vocês três, concelho de amigo, piquem a mula dessa casa agora, principalmente as meninas. O homem é abusador de crianças. Antes de ir viajar, isso seis anos atrás, ele vivia aqui com a mãe e tinham na casa uma negrinha pernambucana de empregada, era Tatiana o nome da pobrezinha. Tinha doze anos e pegou barriga, o desgraçado a forçava quase todo dia, sabe como são esses brancos, são uns porcos. Dona Leonor viu que a menina tava prenha e mandou eu levar em um doutor cirurgião dentista lá no Tremembé, um que além de arrancar dente também fazia a barriga sumir, se é que me entendem. Levei Tatiana de manhã mas não precisei ir buscar de tarde. A menina morreu na operação. Então se tem um pouco de juízo na cabeça de vocês dêem o fora. Eu vou fingir que esqueci o portão da garagem aberto essa noite, vocês vão pra cozinha, enchem um saco com o máximo de comida que puderem levar, um outro saco com coberta e agasalho e vão-se embora antes do sol raiar.
As três crianças eram sofridas sim, mas eram pernambucanas e isso significa ser gente valente, não se fizeram de rogadas, imediatamente subiram para a cozinha e encheram uma bolsa de pano com pão, uma garrafa d'água, linguiça defumada e umas barras de chocolate que a Madame mantinha no armário de cima e que os proibia até de olhar.
Sairam pela rua, Alice era mais velha e mais manjada então disse que ir rumo o centro da cidade não dava pé, a Polícia sempre passava por lá de hora em hora naquele fusca ridículo da rádio patrulha, então foram andando rumo a avenida Zefredo fagundes pois Alice sabia que o fim dela era lá pras bandas da Fernão dias.
Os três andaram a pé a noite toda sem parar pra descanso, o sol raiava quando atravessaram a rodovia e chegaram em Guarulhos.
Acharam um terreno baldio cheio daqueles tubos enormes de concreto que a companhia de saneamento usa para fazer rede de esgoto, se enfiaram dentro de um, comeram o chocolate e depois passaram o dia dormindo. De noite continuaram a andar, sempre indo mais para o norte afim de achar algum lugar para repousar em segurança, toda vez que a Polícia passava eles se escondiam, sabiam bem que criança de rua ia parar na *FEBEM* e ninguém queria isso para si.
Quando o dia amanheceu estavam mortos de cansaço e de fome pois a comida ja tinha ido toda mas tinham de continuar. O ditado que diz que "nao tem coisa mais feia que a fome" é uma verdade triste. No dia seguinte fuçaram a lixeira de uma padaria e conseguiram lá um pão velho grande o suficiente para os três roerem. A viajem prosseguia e então na manhã do outro dia lá perto do Jardim Cocaia entraram em uma rua que mais parecia uma viela, lá avistaram uma fila de crianças muito grande, a fila acabava na porta de uma casa pintada toda de azul claro com um portão de ferro. Olharam ressabiados e foram logo andando sem querer chamar a atenção, mas então uma senhora, que diga-se de passagem tinha a cara mais redonda que as crianças ja tinham visto, os chamou.
— Ei vocês três, o fim da fila lá ó — e apontou para o lado contrário.
Tânia era a mais desinibida e sem demoras perguntou:
— Senhora, essa fila é de quê?
— Oxi menina, não sabe que dia é hoje?
— Não. — Tânia respondeu, e de fato não sabia.
— Hoje é sábado, dia doze de outubro, é dia de Cosme e Damião, a fila é pra ganhar os sacos de doces que meu terreiro vai dar. Ande, bora pra fila!
Os três já tinham ouvido falar disso, de que as macumbeiras e rezadeiras davam doces no dia das crianças e como doce não é coisa que se rejeita eles logo entraram na fila.
Assim que chegou a vez deles receberam três sacos de papel pardo cheios de guloseimas tantas que Alice até teve vontade de chorar de alegria, principalmente por ter ali *teta-de-nega*, que era coisa que amava.
— Escute dona moça — Tânia chamou atenção da mãe de Santo — Sei que pode ser pedir muito mas... a senhora pode encher essa garrafa de água? É que ja deu sede...
A mulher apanhou a garrafa pet com uma cara tão estranha que não era possível saber se ia encher ou não.
— Sede? Menina me diga, tu já almoçou?
— Não, minha mãe só faz almoço mais a tardinha. — Tânia mentiu.
— Sei sei... E onde tu mora?
— Perto, inclusive ja tenho de ir, deixe a água pra lá, obrigadinha.
— Espere ai, escute, daqui a pouco essa rua vai ficar imunda de papel de doce, esses moleques comem e jogam tudo no chão. Se você os dois ai atrás varrerem pra mim lhes dou um bom almoço, com direto a kisuco, deixo tomar banho e lhes dou umas sandalias que tenho que acho que lhes servem, o que acha?
Tânia pensou um pouco e acabou respondendo:
— Fechado. Mas posso ter mais uns sacos de doce?
— Se sobrar, pode. — A mulher piscou com um olho só.
E foi assim, quando a fila se desfez pegaram três vassouras na casa da mulher e varreram a rua bem varrido como faziam na casa da patroa. Logo a mulher se apresentou, era Mãe Jacinta de Omolu, e elogiou muito o serviço feito. Já era lá pras duas da tarde quando entraram para almoçar, e mãe Jacinta não era miserenta, ô se não era, ali não se comia em prato e sim em cumbuca pois cabe mais, lhes serviu pirão com frango, salada de batata, feijão fradinho com bacon, caruru, bife passado na manteiga e por fim doce de abobora com coco. Os três magrelinhos comeram tanto que quando deram por si estavam era cochilando, e dormiram debruçado a mesa até o sol se por.
Quando acordaram era muito tarde e Mãe Jacinta trancou o portão, disse que só saiam de lá se dessem o endereço da casa da mãe ou do pai, pois ela os levaria pessoalmente. Tânia fez pé firme gritando e esperneando, mas Alice e Andre começaram a chorar com medo da mulher e acabaram contando tudo.
Mãe Jacinta não era alguém para se ter medo, era doce como bala de coco mas safa como raposa, já tinha percebido que eram três crianças sem eira nem beira.
Chegou até eles e disse assim:
— Eu sou uma mulher do Axé, sei que não sabem o que é Axé mas é uma coisa muito boa mas muito séria, é compromisso com o sagrado. Hoje no dia dos Ibeji vocês chegam a minha porta, três filhos de ninguém, se chegaram é porque os Ibeji é que lhes trouxeram aqui. Assim como vocês são tres, os Ibeji também são, se chamam Tayó, Kehindê e Idowu, tres deuses crianças os quais eu respeito muito. Eu não vou forçar ninguém a ficar mas se quiserem pernoitar terão cama e segurança nessa casa, pois essa casa não é minha, é de meu pai Omolu, ele é o pai dos pobres e socorre sempre quem precisa.
As crianças acabaram então ficando, dormiram em colchões finos no salão do terreiro, salão que é chamado barracão. A noite foi tão boa que ficaram mais um pouco, e mais, e mais, e quando se deram conta estavam ali já fazia um mês e meio. Foi então que mãe Jacinta acabou por se afeiçar tanto pelos três que tomou a decisao de leva-los a delegacia de Polícia, lá contou uma mentira dizendo que os três eram seus filhos e que ainda não tinha se preocupada em registrar nenhum deles. O policial olhou para ela, era preta, e os meninos três pretos de idades diferentes, nem perguntou nada, afinal para a sociedade da epoca tanto fazia o que acontecia com pretos, deu-lhe uma guia assinada e o endereço do edifício do cartório, e mãe Jacinta registrou os três como sendo seus, eram agora Tânia Regina de Sá, Alice Maria de Sá e Andre Bernardo de Sá.
Mãe Jacinta os colocou na escola, e os criou mesmo como filhos. Quando cada um completava quinze anos a mãe lhes perguntava se queriam *fazer o Santo*, Alice foi a única que não quis, isso está muito certo pois não era o caminho dela, mesmo respeitando muito a fé de mãe Jacinta, já Tânia e André se tornaram *Ekeji* Tânia de Nanã e *Iyawo* André de Ogun.
O terreiro sempre foi pequeno e não tinha nem vinte pessoas, então a convivência era harmoniosa, pelo menos foi até que Andre se assumiu um menino homossexual. Era ano de 1994 e muito ja tinha mudado no mundo, André trabalhava na cozinha de um restaurante e ganhava até bem, ninguém dava muita bola por ser gay.
Só que... André não era gay, Andre era uma mulher.
Sim, essas coisas ninguém sabe bem o motivo de acontecer, mas simplesmente acontecem, André era uma mulher transexual.
Mãe Jacinta descobriu logo cedo pois André começou a tomar hormônios e a deixar o cabelo crescer, a mãe não gostou nada nada dessa ideia de seu menino virar a tal coisa pavorosa que chamavam "travesti", mas Tânia nunca deixou de defender o irmão, e foi a primeira a entender que não existia ali nenhum irmão e sim uma irmã.
André a princípio mudou o nome para Andressa, e
infelizmente após um desentendimento não pôde mais morar com mãe Jacinta e também não pôde mais fazer parte do terreiro e até seu emprego deixou de existir.
Mas meus queridos eu rogo que não fiquem com impressão de Dona Jacinta, era uma mulher nascida lá na terceira década do século passado, tinha uma visão de mundo muito diferente, não era má, nunca foi má, mas era sim um pouco limitada de pensamento.
Andressa ficou sim muito magoada quando foi convidada a se retirar, mas ainda assim sempre teve muita gratidão por mãe Jacinta pelas coisas feitas na infância.
Quando Andressa partiu, Tânia foi junto, alugaram um quarto em uma pensão lá em São Paulo na rua Maria Cândida, Tânia arranjou emprego de telefonista mas Andressa por mais que tivesse experiência no currículo não conseguia nada, nem para varrer rua lhe chamavam.
Tania segurou as pontas por três anos até que caiu adoentada. Sabe, hoje em dia nós saberiamos dizer imediatamente o que é uma leucemia, mas na decada de noventa a Medicina não era do alcance dos pobres, levaram no hospital do Mandaqui, no hospital São Luís Gonzaga, mas nenhum tratamento oferecido vingou.
Tânia definhou, perdeu o emprego e já não tinham como pagar o aluguel do quarto, iam os dois para o olho da rua. Foi então que o velho dono da pensão chamou Andressa e disse a ela que conhecia um lugar onde "gente da laia dela" ganhava muito dinheiro. Andressa pegou o endereço e foi, e naquela mesma noite começou a trabalhar em "La Mezon", uma casa de prostituição na Vila Mazzei. Não vou abordar aqui como é se prostituir, só quem ja fez isto sabe, então cada um que imagine como quiser.
De fato a prostituição deu um bom dinheiro, se ganha bem neste ramo quando se é jovem.
Ela conseguiu pagar um tratamento melhor para irmã em hospital particular e finalmente colocou as tão sonhadas próteses mamárias.
Enquanto a Tânia, bem, o que é pra ser não pode ser mudado e no ano de 2002 mesmo com todos os esforços ela faleceu, deixou este mundo com apenas vinte e seis anos.
Para Andressa o mundo havia caído, sem a irmã não havia nada mais que valesse a pena, a vida das duas tinha sido muito sofrida mas sempre tiveram uma a outra, eram como almas gêmeas. Agora ela estava sozinha.
As coisas não andaram bem, Andressa nunca usou nenhum tipo de droga, lembrava da irmã dizendo "esse é um caminho sem volta" e então nunca quis nem experimentar, porém a ruina veio através do álcool.
É, parece coisa boba, os homens com quem saia lhe pagavam umas doses de bebida, conhaque, whisky, licores e tudo mais, e quem está triste fica feliz por uns momentos quando o álcool entra, o álcool tudo amortece. Não deu nem um mês após a irmã ser enterrada e Andressa já havia se tornado uma alcoólatra. A La Mezon era uma casa fina, a maioria das moças cheirava pó, baforava *loló*, coisas assim que deixam a pessoa bem *colocada* mas ainda apta ao trabalho, porém o álcool não é assim, a pessoa que está bêbada não é capaz de nada, então após algumas confusões e escândalos Andressa teve de ir fazer ponto na rua.
Aqui eu também não vou lhes dizer como foi fazer programa na rua, só digo que não foi uma época boa. Por seis anos esteve nas esquinas sujas da praça da República, Andressa continuava bebendo mas como o álcool deteriora a aparência e ela era uma mulher muito da vaidosa, começava a parar aos poucos e já quase não ficava naquele estado de embriaguez transtornada.
Era ano de 2008, já meio de Dezembro, um velho estacionou a Mercedes na frente de Andressa e disse que era viajante, vinha de Belo Horizonte e queria "experimentar" o que ela tinha. A questão é que o velho era realmente velho, e cá entre nós, a *azulzinha* nas ruas não recebeu o nome de "mata velho" atoa. O desgraçado teve a genial ideia de engolir logo três comprimidos com um gole de cerveja. Dali meia hora Andressa estava sentada na cama olhando o corpo do velho, o cadáver, o saco de banha morto. É, enfartou, mas Deus o abençoe, o coração parou no exato momento em que estava com a cara enfiada nas partes de Andressa, poucas pessoas nessa terra podem se gabar de terem tido uma morte feliz como a que ele teve.
Ela pegou a carteira do velho, tinha um bom dinheiro lá, marota como era embolsou a grana, pulou a janela do quarto de motel e sebo nas canelas!
Mas a coisa não ficou boa para o lado dela, o motel tinha câmera de segurança e o velho era um senador Mineiro muito famoso. Não deu outra, na manhã seguinte todos os telejornais tinham a notícia da morte do senador e da travesti acusada de ter estrangulado o velho, a foto de Andressa, que naqueles dias era ruiva, estava ali gigantesca, exibida na televisão referida apenas como "Andressinha da Mezon", que coisa é o mundo, agora a "mata velho" era ela.
Uma de suas amigas, Inara, deu a ela uma peruca cacheada morena, Andressa fez as malas e sumiu dali.
Mas para onde iria? Não tinha família, não tinha ninguém.
Passou uns dias escondido na casa de Thalia, uma outra companheira, mas por fim teve mesmo de se mandar.
Era véspera de Natal quando foi parar no bairro do Jabaquara, apanhou uma van destino a Praia Grande, não sabia o motivo querer ir mas ja que estava lascada era bom pelo menos ir se banhar no mar para ver se o sal da agua lhe abria os caminhos.
Mas ela nunca chegou a ver o mar.
Não deu nem vinte minutos, a van parou na Fernão dias e o perueiro disse:
— Meus Parça acabaram de avisar que um quilômetro pra frente tem fiscalização da Polícia rodoviaria, se alguém ai tem treta com a Polícia é melhor vazar.
Andressa não teve muita escolha, não ia arriscar ser presa, ficou ali no acostamento vendo a van seguir viajem, então caminhou um pouco até ver uma entrada de terra e a placa "Município de Monte D'Avila a 500 metros".
— Monte D'avila? — Ela teve a sensação de ter lido a respeito da cidade recentemente.
Seguiu pra lá, era aquela cidade dos alfaces que ela já tinha ouvido falar, mas havia algo mais, uma notícia ou alguma coisa dramática que tinha acontecido ali, mas o que era mesmo? Ela entrou, só havia um único hotel na cidade, na verdade um sobrado com apenas doze quartos mas que se dizia hotel. A recepcionista tentou ser o mais evasiva possível quando disse que todos os quartos estavam ocupados, mesmo que atrás do balcão houvesse um painel neon com os dizeres "temos vagas" e que abaixo dele estivesse um quadro de chaves com pelo menos seis delas disponíveis.
— Não, vocês tem vagas sim, só são tem se for para alguém como eu, não é?
A mulher não disse nem que sim nem que não, e Andressa teria tido grande prazer em quebrar alguns dedos daquela vaca acaso isso não fosse chamar a atenção da polícia, como com certeza iria. Saiu de lá e resolveu dar uma volta na cidade antes de voltar para a rodovia. Era um lugarzinho muito pitoresco.
Comprou um cachorro quente em uma barraca e sentou em um banco de Praça para descansar, então viu vindo na sua direção uma criança muito esquisita, ela andava com as pernas muito abertas e tinha uma expressão de dor no rosto. Quando se aproximou olhou para Andressa e arregalando os olhos falou:
— A mo deus... É uma mulé giganti!
— Obrigada. — Andressa sorriu e observando bem o rosto da menina era perceptível pelos traços que se tratava de uma portadora de síndrome de down — Onde está sua mãe?
— Molta. — Disse como se não fosse nada demais.
— Morta? Ah... sinto muito. E seu pai?
— No sei, Meli no tem pai.
— Seu nome é Meli?
— No, é A-Meli, mais podi chama de Meli de Meli.
— Ok... — Andressa riu.
— E seu nomi?
Isso era uma pergunta difícil de responder, afinal aquela cidade era muito perto de São Paulo e as notícias uma hora ou outra iam chegar, se é que já não tinham chego.
— Eu me chamo Tanya. — Respondeu usando o nome de mulher que mais gostava no mundo.
— Meli qué i pa casa.
— E onde você mora?
— Pá lá ó — Meli apontou para esquerda — Mais a flouzinha de Meli ta duendo dimais pa anda.
— Florzinha? Quer dizer... a sua... suas partes de menina?
— É. Me da colo?
Tanya ficou perplexa em como a garota era direta e desinibida.
— Ta certo, vamos lá, eu te levo.
Quando apertou a campainha um rapaz magro que parecia mais um adolescente com os olhos vermelhos de tanto chorar abriu a porta.
— Oi, eu achei essa garotinha na Praça e... — Tanya parou de falar quando o rapaz tomou-lhe a menina dos braços e começou a chorar soluçando.
— O-brigado... — Ele disse entre soluços — eu tinha ligado pra Polícia mas eles só registram um desaparecimento depois de vinte e quatro horas.
— E quanto tempo ela ficou sumida? — Tanya perhuntou.
— Acho que uma meia hora. — o rapaz voltou a chorar.
Tanya teve de se controlar para não rir, ele entortava tanto os beiços na careta de choro que parecia muito aquela Gaga de Ilhéus.
— Eu acho que Meli está com assaduras ou talvez com candidiase.
— Candidiase?! Meu Deus ela foi violentada?! — o rapaz berrou com os olhos arregalados.
— O quê? Não, não eu não disse isso.
— Mas você disse candidiase!
— Sim, e isso é um fungo que pode ser contraído de muitas maneiras, principalmente por falta de higiene na região íntima. — Tanya explicou — Ela tem usado calcinhas sujas?
— E como é que eu vou saber?! — o rapaz voltou a chorar.
— Desculpe, qual é seu nome?
— Ed-Ed-Edmundo. — ele gaguejou ainda chorando.
— Você está sozinho? Onde estão os responsáveis por ela?
— Eu sou responsável por ela agora.
— Mas e a sua família?
— Minha família... houve uma chacina...
— Chacina! — Tanya falou alto, isso porque finalmente havia se lembrando da situação dramática envolvendo a cidade, havia lido em um jornal a notícia "chacina em terreiro de Candomblé abala a pacata cidade Monte D'Avila" — Desculpe, é que acho que li algo sobre.
— Todos leram. — Edmundo limpou a garganta.
Tanya percebeu que ali diante de si estava alguém realmente mais fodido que ela, afinal de contas ela era uma foragida da Polícia? Era. Se fosse presa iria acabar sendo *feita de boneco* na cadeia? Sim. Mas ela era durona e ia sobreviver, já aquele baitola aguado, o que ele sabia da vida? Estava ali chorando na porta de casa para uma estranha, tinha deixado a criança fugir e o estava descabelado e realmente tanto ele quanto Meli fediam.
— Escute, você precisa de ajuda?
— Ajuda? Em quê? — Ele perguntou confuso.
— Quer que eu dê banho na menina? Você tem máquina de lavar? Eu posso lavar as roupas dela, porque ela não parece muito asseada.
— Você faria isso?
— Claro. Vocês vão sair para algum lugar? Eu posso terminar de arrumar ela em uma hora.
— Sair? Pra onde?
— É que é véspera de Natal, não vai levar para ceiar? Ou você mesmo vai fazer a ceia?
— Natal? Você ta brincando? A véspera é só semana que vêm.
Tanya percebeu que o rapaz realmente não estava bem, mas também esse negócio de ter toda a família trucidada não devia ser bolinho. Ela puxou o celular do bolso e mostrou a ele a data.
— Meu Deus... É... É verdade... Hoje é véspera e eu não fiz nada...
— Quer saber, saia da frente. — Ela foi entrando na casa já puxando Meli pela mão.
— Onde você vai? — Edmundo se assustou.
— Dar banho nela, e voce faça uma lista do que precisa pra ceia, vamos no mercado assim que eu acabar, vou lhe cozer uma ceia e em troca você me deixa pernoitar, afinal se todo mundo morreu é sinal que tem algum quarto vago.
— Mas... mas...
— Garoto eu sou de Ogun, eu sou de menos papo e mais da providência, se não quer a minha ajuda diga, mas só diga isso se minha ajuda aqui for desnecessária.
Tiago entortou a cara novamente já trazendo de volta o choro, mas Tanya que era mulher de poucas lagrimas disse:
— Feche esse torneira rapaz, se aprume ande, venha!
☆II
Ogun olhava para Tanya a perscrutando de cima a baixo, ele é um homem muito grandalhão mas que tem olhinhos bem pequenos, e Deus sabe como são perigosos os homens de olhos pequenos.
— O que está fazendo? — Perguntou com a voz grossa.
Tanya agachada ao lado de Edmundo não se moveu para fazer foribalé e tampouco foi beijar a mão de seu pai, o que fez foi cruzar os braços em cima do busto com força.
Assim que viu Ogun invés de ficar emocionada o que sentiu na verdade foi muita vergonha, tanta vergonha que seu corpo perdeu a textura metálica voltando a ser de carne e osso.
As palavras que muitas vezes havia ouvido do povo de Santo a cortaram por dentro. Se lembrou de um Ogan da casa de Maristela, que era uma mãe de Santo de São Caetano disse dela "Essa aberração filha de Ogun? Se Ogun a visse pessoalmente a mataria ou vomitaria de nojo!", se lembrou também de Pai Clécio de Oxóssi que certa vez lhe disse "A gente aceita gente do seu tipo por pura dó, mas bem se sabe que Orixá nenhum gosta dessa sujeira", e o pior foram as palavras da Iyawo Zefrina, uma filha de Zeniba, ela comentou quando achou que Tanya não estava por perto "é uma vergonha para o nome de Ogun um treveco deste se dizer sua filha, filha? Pense o que Ogun diria de um macho safado que dá a bunda por ai e se finge de mulher!".
Uma vida inteira ouvindo aquelas coisas e agora Tanya já havia passado a crer que eram verdades. Não pôs a cabeça ao chão diante de Ogun por achar que sua presença ali o ofendia, não beijou-lhe as mãos por realmente acreditar que seu pai teria dela nojo.
Ogun ficou parado um tempo olhando a filha ali imóvel, cabeça baixa e espremendo tanto os peitos que ja deviam estar doendo.
— Me diga seu nome. — Ogun ordenou com a voz firme.
— A-andré meu senhor.
— André? Eu não reconheço este nome.
Pronto, ao ouvir isto Tanya já se tremia por inteira, havia sido rejeitada a vida toda, porém sempre teve forças para superar, mas daquela vez não teria, se aquele homem a humilha-se, como ela ja pensava que faria, não teria como se reerguer pois a unicas palavras em todo o universo a qual ela acataria imediatamente e sem duvidar seriam as que saissem da boca de seu pai.
Ogun prosseguiu:
— De fato vinte e cinco anos atras fui apresentado a um jovem chamado André, ele passou pelos rituais pertinentes a crença da região que vivia, e esses rituais o garantiram como meu filho sob o Oruko *Ogundoyin*. Mas eu acompanho os meus de perto e soube que meu filho André descobriu que em sua alma não tinha a natureza de homem, então passou a se guiar pelo mundo como uma mulher. Então a meus olhos não reconheço esse nome André pois pelo que sei, e eu sei de toda a verdade, quem responde pelo Orukó Ogundoyin é minha filha Tanya. É você a minha filha?
Tanya estava perplexa, se é que perplexa descreve o que sentia. Ogun a estava reconhecendo? Pensou que talvez a sua esperança de isso acontecer um dia houvesse criado uma alucinação ou coisa assim, então ainda não se moveu.
Ogun vendo o quão abalada ela estava disse mais.
— Filha porque esconde seus seios de mim?
— Porque... porque tenho vergonha. — Tanya admitiu de cabeça baixa.
— Eu jamais em toda a minha existência deixei de fazer ou de ser quem sou, eu sou Ogun em cada pedaço de meu ser. Se estes seios que você adquiriu são parte sua, porque não segue meu exemplo? Terei mesmo de ser claro nas palavras não é? Pois que seja, Tanya eu lhe reconheço como minha filha. Agora se comporte como tal. — o tom de Ogun se tornou um pouco mais severo.
Tanya lentamente removeu as mãos de sobre os seios e então começou a se abaixar para por a cabeça ao chão.
— Não Não. — Ogun a repreendeu.
— Senhor? — Ela olhou para cima confusa.
— Só os homens deitam de corpo inteiro no chão, faça o foribalé de acordo com quem você é.
Tanya sorriu para si mesma e então se ajoelhou e inclinou o corpo sem tocar a barriga ou os seios no chão, apenas as mãos e a testa tocaram o solo, então girou os quadris batendo as laterais no chao um vez de cada lado exatamente como via as mulheres fazerem nos terreiros, depois ergueu o corpo e beijou as mãos do pai.
— Isso. Agora se levante, vamos dar uma volta, quero conversar um pouco. — Ogun falou retomando o tom calmo.
📚Glossário:
1. Fazer o Santo: termo que indicar passar pela iniciação no candomblé.
2. Ekeji: cargo religioso exclusivo do candomblé para mulheres que não possuírem habilidade de incorporação e passam então a ocupar funções em prol da organização do culto.
3. Iyawo: iniciado no candomblé ainda noviço.
4. FEBEM: Sigla para "Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor", era o serviço de reformatório do estado mas que na verdade era uma tipo de presídio muito cruel voltado para encarceramento em massa de crianças e adolescentes indesejáveis pela sociedade.
5. Teta-de-nega: marshmallow coberto com chocolate hidrogenado.
6. Loló: lança perfume.
7. Colocada: giria para "drogada", sob a influência de entorpecentes.
8. Azulzinha: viagra, potencializador sexual.
9. Feito de boneco: giria para quando alguém é violentado dentro de uma cadeia.
10. Ògúndoyin: é um Oruko (nome), se traduz como "Ogun é a minha doçura".
Caiu um cisco aqui :'v
ResponderExcluirEh neh gata.. ogun
ResponderExcluirJá estou com fanfic aqui na cabeça.. hehe ksks pronto agorato morrendo de curiosidade
ResponderExcluirTanya é muito bonita nessa arte :D me lembrou um pouco aquele sorriso da Agnes Nunes
ResponderExcluirTanya é muito bonita nessa arte :D parece a Agnes Nunes
ResponderExcluirObrigado pelos comentários, Tanya representa todas as nossas irmãs trans do Axé, merecem nosso respeito incondicional,.
ResponderExcluirPQP que história essa !!!!!
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