BÚFALO SANDARA - Capítulo 4

 



Capítulo IV
"Ajagunmale"

☆I
Tinha os olhos da cor de mel,le, lembrava as vezes de uma garota muito cafona na época de escola que insistia em chama-lo "Príncipe dos olhos ambar". As vezes ele ria sozinho lembrando como esta garota havia gasto
Seu latim atoa. Contudo gostava de seus olhos  era a unica parte de seu corpo que não tinha envelhecido, mesmo a pele das pálpebras e das lateterais não tinham dobras ou rugas ainda.
Sandara retirou a capa do búfalo, a enrolou com cuidado,  depois as calças de seda negra que usava, adentrou as águas fria do Rio * Ajiradé* sentindo a pele nua refrescar conforme mergulhava.
Fazia muito tempo que não pensava naquelas coisas, até mesmo grandes seres cheios de sabedoria o haviam aconselhado a não pensar no imutável passado. Mas seu peito já a algumas horas doía, ardia de saudade de um rapaz que não via a onze anos. As vezes do nada erguia a cabeça e olhava para o sul como se sentisse que o rapaz estava lá. Mas como poderia? Isso era impossível, completamente impossível que Edmundo estivesse ali.
Havia um conflito de sentimentos, parte de Sandara sentia uma enorme vontade de ver o jovem, queria abraça-lo, dar a ele os beijos que nunca pôde. Uma outra parte de si tinha medo deste encontro, sabia que Edmundo o admirava, mas isso anos atras quando ele era um homenzarrão forte, mas agora o que via ali no reflexo das águas era nada além de um velho. Sandara havia recentemente completado cinquenta e dois anos, seu cabelo já era cheio de mechas grisalhas bem como os pelos de seu peito. O que aquele rapaz, que pelos cálculos devia ter agora vinte e nove anos, iria querer com ele? Provavelmente ele já era um casado e feliz.
A criação de Sandara havia incutido nele a ideia de que o amor é somente para os jovens, que é na juventude que se vivem os romances pois apos uma pessoa virar a curva da metade de sua vida isso já não era possível.
Mas isso não o impedia de sonhar.
Soltou o corpo e então boiando na margem do Rio calmo ele olhou para cima e viu reluzir no céu aas oito luas brancas reluzentes e por um segundo se esqueceu de que não eram luas e sim os outros oito Orun's. A vocês meus caros eu pergunto, o que acham que Sandara sentiria no peito se soubesse que naquele exato momento a pessoa que mais amava no mundo estava ali naquela menor das luas que ele tão atentamente fitava? Eu não sei dizer, mas acho que seria um sentimento bom de sentir. Porém, cego para todos esses assuntos ainda não revelados, Sandara olhou para as luas apenas admirando suas cores e belezas, então
fechou os olhos e adormeceu.

A lembrança o atingiu em cheio, começou enevoada mas logo se tornou clara, um sonho vívido.
De madrugada acordou com aquela vontade de fumar, abriu a janela do quarto deixando a luz alaranjada do lampião da rua quebrar a escuridão, era noite fria mas mesmo assim e se encostou ali ao lado da janela, uma perna sustentando o peso do corpo, a outra dobrada com o pé na parede, o cinzeiro apoiado na coxa e enquanto tragava lentamente. Foi então que um pequeno pombo pousou na janela, não um pombo de rua comum, este era branco com graciosas manchas cor de pessego nas bochechas, fitava Sandara com grandes olhos cálidos de cor vermelha como o sangue.
— Pru pru... — Sandara gorjeou em zombaria.
— Búfalo Sandara — a voz sussurrada se fez ouvir, o pombo falava porém não com voz sonora, o que fazia era transmitir suas palavras diretamente ao espírito do homem diante de si — não me tome por qualquer coisa diferente da minha real natureza.
— Então revele quem é para que eu o trate com a deferência que merece.
— Sou *Bambó*, mensageiro de um dos quatrocentos Orixás.
— Eu só trabalho com nomes. — Sandara deu mais um trago no cigarro.
— Eu sou servo de alguém a quem valhe a pena respeitar. Não revelarei nada além deste convite. Tu, Búfalo Sandara, herdeiro do sangue divino, aceitas o convite para uma audiência com um altíssimo?
— Uma audiência? Porquê motivo um Orixá quer ter comigo?
— Sou só o mensageiro. Aceita ou recusa?
Sandara pensou por um momento, Enobária já havia contado que os Orixás, seres divinos mas que haviam criado laços fortes com a natureza, tinham como seus símbolos alguns animais, e estes animais dotados do *axé*da divindade a qual pertenciam era munidos de intelecto para assim servir com mais utilidade. O pombo ali parado de fato não parecia um pombo, tinha penas e bico como todos tem porém a soberba que emanava era o diferencial. De quem seria ele? Bom, é bem verdade que muitos orixás gostam de pombos brancos. Sandara arregalou os olhos, entendeu porque haviam mandando um pombo, ele era neutro, afinal se fosse um cisne, uma borboleta, um cágado, uma martim-pescador e outros bichos já demarcados seria fácil descobrir quem o mandara.
— Isso é algum tipo de segredo de estado? Missão secreta?
— Ohun ti o niyelori jẹ aṣiri nigbagbogbo —  pronunciou o pombo cheio de orgulho.
— "O que é precioso é sempre segredo" — Sandara traduziu automaticamente dentro da mente, então abriu os labios e falou — Aceito é claro, espero que seja algo bom.
— Tem alguém vindo. Lhe informo dos detalhes em outro momento. — o pombo bateu asas e alçou voo.

Sandara virou o rosto no exato momento em que a maçaneta da porta girou, timidamente o garoto abriu somente uma fresta e espiou dentro do quarto.
— Edmundo? O que está fazendo? — Sandara sorriu para o rapaz — Ja passa das duas da manhã, é melhor ir dormir.
— Eu... Eu... Me desculpe... — Edmundo abriu mais a porta aparecendo por inteiro — Ouvi vozes, achei que você não tava em casa e que tinha esquecido a janela aberta, pensei que algum ladrão vagabundo estava tentando entrar por ela.
Sandara não pôde evitar de sorrir ao entender que Edmundo acabara de chamar uma ave sagrada enviada por um Orixá de "ladrão vagabundo".
— Está tudo bem, eu estava pensando alto, apenas isso. — Sandara deu um trago no cigarro e então notou que o goroto estava imóvel, os olhos fixos nele — O que foi Ed? Você está se sentindo mal?
— Ah não, não é nada.
Então Sandara notou a direção do olhar do garoto, olhando ele mesmo para baixo se deu conta que estava usando apenas uma cueca justa e nada mais.
— Ed, não é educado ficar encarando o corpo dos outros.
— D-Desculpe! — Edmundo ia fechando a porta com ar de constrangimento.
— Espere. — Sandara pediu com a voz suave.
— Sim? — Edmundo teve o cuidado de abaixar os olhos e fitar somente o chão.
— Você ja tem dezoito anos Ed, idade o suficiente para entender dos assuntos do coração.
— Do coração?
— Eu sei que gosta de mim. Mas não podemos ficar juntos, nunca poderemos. Somos irmãos, irmãos não fazem essas coisas.
Edmundo olhava o chão fixamente com a mão apertando a maçaneta com tanta força que ela rangia.
— Ed?
— Sim? — Edmundo falou com a voz fraquinha.
— Entendeu o que eu disse?
— Sim.
— Então eu vou lhe dizer algo que não devia, mas eu quero saiba que se não tivéssemos sido adotados pela mesma mulher, se socialmente não fossemos lidos como irmãos... Eu faria de tudo pra ter você comigo, os mesmos sentimentos que tem por mim... também tenho por você. Eu só quero saiba disso. Quero que saiba que eu...
— Eu também te amo. — Edmundo fechou a porta lentamente e se foi.

Um barulho na margem do rio, Sandara abriu os olhos, lá estava aquela moça tão adorável, usava uma túnica Rosa clara e tinha os cabelos crespos armados e muito volumosos.
— Que tanto sonha Sandara?
— Lembranças Jacqueline, apenas lembranças.
— Pode compartilhar essas lembranças?
— Infelizmente não minha querida, não há nada de bom nelas além do desejo de que tudo pudesse ter sido diferente.

☆II
Caminharam os três junto a boneca a ao macaco, pé ante pé chutando a grama baixa por algum tempo, então surgiu um descampado, um vasto campo com pouca vegetação resteira.
— Esse lugar é muito mais morto do que eu imaginava, até agora não vi quase ninguém. — Edmundo comentou.
— Oh não meu querido,  isso se deve pelo fato de as outras almas rodearem esse campo sem jamais pisar nele, preferem dar longas voltas pelos caminhos a direita e a esquerda, mas aqui não pisam de modo algum. — explicou Kikelomo.
— Porque? — Tanya perguntou.
— O portão de Onibode pelo qual passamos é coisa recente, se tiver mil anos é muito, antes dele existir não havia barreiras para se entrar neste primeiro Orun, aqui muitas batalhas aconteceram, neste campo que estamos os Orixás liderados pelo valente Logun Edé lutaram contra os invasores, muito sangue divino foi derramado neste solo.
— E quem teve a coragem de invadir a terra dos Orixás? — Edmundo perguntou.
— Os que são semelhantes a eles. — Kikelomo respondeu.
— Outros Deuses? — Tanya perguntou.
— Exato.

Continuaram caminhando, o macaco lhes contanto histórias de guerras e surpreendentes batalhas, de ouvir tantos contos fantásticos nem se deram conta quando chegaram na beira de uma ribanceira, olhando para baixo viram um vale lá uma multidão sentada na terra, todos fitavam um atenção um grande tronco de madeira sobre um palanque rústico, ali estava pousado o maior pássaro que eles ja viram, era similar a um corvo branco, gordo e de mais de três metros de altura, uma fila enorme de pessoas saia da multidão em direção a ele, o mais aterrorizante era ver o pássaro girar a cabeça tal qual fezem os tucanos para observar alguém com um só olho.
— O que é aquilo? — Tanya se admirou.
— Que falta de *rumbê*, não é aquilo, é alguém. — Disse Edmundo.
— Primeiramente, não fale rumbê, isso é palavra na lingua dos *voduns*, os Orixás não gostam de falem com eles na língua de outros deuses. Sobre o passaro gigante, ele é  Ajagunmale. — Kikelomo respondeu.
— Jagun? É Baluaê? — Meli perguntou.
— Não, Ajagunmale é um Orixá, vocês são brasileiros e por isso não devem conhecer pois na sua terra dizem que o nome dele não é citado, mas Ajagunmale foi o primeiro passaro a ser criado no Orun, ele observou a criação dos Orixás e enquanto o grande Olodumare criava todas as coisas ele cantava-lhe louvores, o Deus maior ficou tão honrado que transformou Ajagunmale em um Orixá também.
— E qual a função dele? — Edmundo Perguntou.
— É um juiz. Exu Onibode julga causas fáceis la no portão, mas quando o indivíduo fez algo realmente grave... é Ajagunmale que julga. Acreditem, seria preferível ficar adormecido eternamente no campo antes do portão do que ser julgado por Ajagunmale, ele é implacável, não conhece misericórdia, com ele quem deve paga.
— Nossa, parece cruel. Mas como vamos passar para as colinas? O vale parece ser o único caminho. — Tanya observou.
— Pois é, eu não me atentei a isso. Quando passo por aqui ninguém me para, afinal sou um Kolobô, já com vocês acho que será diferente, se entrarem no vale serão julgados.
— Então como fazemos? — Edmundo Perguntou.
— Este é o menor dos Orun, vocês tem sorte pois logo após atravessar o vale não há muito para se percorrer, teremos de passar pela porta de *Atunkọ* e depois chegamos ao rio de *Esinmirin*, através do rio é que partimos para o segundo Orun.
— Certo, mas o problema maior é como atravessar o vale. — Tanya falou.
— Se quelo uma cosa, peço. — Meli respondeu e ja começou a caminhar.
— Pede? Ela quer dizer, pedir a Ajagunmale para nos deixar passar? — Edmundo falou.
— Acho que é uma ideia razoável, afinal de contas Ajagunmale pode ser implacável mas é justo. As opções são 50-50. — Kikelomo riu — ou ele deixa vocês passarem ou os mata.

Meli seguiu descendo faceira por uma escadaria de terra, os degraus escavados na encosta de um morro íngreme, os outros iam logo atrás.
— É seguro ela ir sozinha na frente? — Tanya perguntou.
— Ela é filha de Yemanjá, deixe que vá, a garota tem fibra. — Kikelomo comentou.

Meli caminhou entre as pessoas sentadas, pisou no pé de um e outro mas não parou até atravessar a multidão e chegar próxima ao palanque onde estava o grande pássaro Ajagunmale, havia diante dele uma mulher que chorava copiosamente com as duas mãos presas em algemas de correntes de cobre.
— Você será lançada no mar do esquecimento, não mais será lembrada, não mais saberão que um dia existiu. Para todo sempre sua alma permanecerá na escuridão até que tu mesma esqueça o próprio nome e se torne menos do que nada. — a voz do passaro era grossa como um trovão.
A mulher deu um berro de dor e então desapareceu a vista de todos.
Ao lado de Ajagunmale estava sentado no chão um menino negro que aparentava ter dez ou doze anos, parecia ser algo como um meirinho, usava um barrete vermelho na cabeça, um tecido enrolado na virilha como se fosse uma cueca, tinha apoiado no colo um porrete de madeira maior que a si mesmo.
— Quem é você que ousa vir até mim sem ser chamada? — Ajagunmale perfilou a cabeça para encarar meli com seu olho acinzentado.
Ela deu um passo para Frente sem demonstrar medo.
— Ela é a Meli. — O menino sentado falou.
— Exú Ododo, conhece esta vivente? — Ajagunmale olhou para ele.
— Sim sim, eles passaram pelo portão faz uma meia hora, meu pedaço que cuida de lá deixou ela e mais três vivos passarem.
— Com que propósito Exú Onibode permitiu a entrada de criaturas que pelo visto desprezam a lei? — Ajagunmale olhou para Meli e sua íris ficou menor enquanto a analisava.
— Propósito nenhum, estava só entediado, então vendo que essa trupe ia com certeza causar algum agito... deixou entrar. — Exú Ododo deu de ombros.
— Meli qué passa, po favô. — Meli lançou a Ajagunmale o mais inocente de seus sorrisos.
— Sorri para mim achando que irei dar a ti o quer apenas por exibir um resto cheio de falsa meiguice?
— É. — Meli afirmou abrindo mais o sorrisos e piscando os olhos.
— É esplêndido como seu coração é puro. — Ajagunmale começou com a voz baixa. — Eu realmente posso lhe deixar passar, mas não posso permitir que essa mulher a qual você carrega passe. A terra girou mais de mil vezes em torno do sol desde de o dia que eu sonhei em cravar minhas garrar nesta criminosa.
Meli apertou a boneca contra o peito.
— No pode machuca a bonitia! É mia mãe!
— Não é sua mãe coisa nenhuma! — Ajagunmale berrou e abriu as asas, de uma ponta a outra se tinha mais de dez metros.
— Ajagunmale! — Exú Ododo ficou em pé.
O pássaro fechou as asas e virou a cabeça para encarar o menino.
— Porque me interrompe?
— Ela não tem de saber disso, não ainda. Não fará bem algum atirar tão duras palavras sobre ela agora.
— O que sugere que eu faça? Que proíba a menina de passar mesmo ela não devendo nada a justiça ou deixar aquela alma maldita ir com ela?
— Tire a boneca dela, simples assim. — Exú Ododo aconselhou.

Ajagunmale apoiou o peso do corpo uma de suas garras e esticou a outra na direção de Meli.
— Me entregue a boneca e eu lhe deixo passar.
— No! — ela abraçou a boneca e deu um passo para trás.
— Escute menina, não cabe a você impedir uma alma transgressora de ser julgada.
— Meli disse qui no, no é no!
— Desculpe senhor — Tânia se aproximou e imediatamente foi ao chão em foribalé — A boneca é parte importante da nossa missão aqui, não podemos prosseguir sem ela.
— E eu por acaso pareço minimamente preocupado com sua missão? — Ajagunmale respondeu com a voz tão grave que Meli se encolheu — Me entregue a boneca imediatamente!
— No! Peliquito malvado!
Edmundo correu o maximo que pode, agarrou o tecido da camiseta de Meli nas costas e puxou com toda força, a menina voou para trás caindo sobre três pessoas sentadas na primeira fileira da multidão, no exato momento em que foi puxada para trás o bico de Ajagunmale atingiu o piso do palanque no exato local que ela acabara de estar, pedaços de madeira, pedras e terra choveram para todos os lados, o local onde o bico bateu se tornou uma cratera.
— Corre Meli! Corre! — Edmundo gritou.
Meli se levantou assustada, Tanya a pegou pela mão e as duas correram pela lateral do palanque.
— Não fuja de mim! Não fuja da justiça! — Ajagunmale grasnou abrindo as asas ameaçador.
— Ei! — Edmundo gritou.
Ajagunmale virou a cabeça de lado fitando o rapaz com seu olho aguçado.
— Eu Ordeno que fique parado! — a voz de Edmundo soou duplicada.
— Você... você... — o peito do grande passaro passou a subir e descer em um movimento de respiração entrecortada — Você ousa usar essa magia mestiça EM MIM? ACHOU, SEU DESGRAÇADO, QUE MAGIA DE UM MESTIÇO IMUNDO FUNCIONÁRIA CONTRA UM ORIXÁ?
— Oh... melhor se mandar. — Exú Ododo falou rindo.

Edmundo correu pela lateral do palanque atrás de Meli e Tanya, Ajagunmale bateu as asas e deu um rasante atras do grupo.
— Pegue menina, faça seu negócio! — Kikelomo agarrado as costas de Tanya conseguiu apanhar uma cabaça cheia de água da sacola de palha que ela levava e arremessou para Meli.
*Omi! Lan alakunlin mi lowo!* — Meli gritou, a cabaça explodiu no ar como uma granada, centenas de farpas de gelo atingiram o corpo de Ajagunmale o derrubando.
— Corra! Corra! Não pare! — Edmundo berrou.
Os três corriam a toda, saindo do vale entraram por uma trilha aberta entre vegetação alta.
— Tem que correr até a porta de Atunko! Lá é território de outro Orixá e Ajagunmale não pode lhes atacar no território de outro! — disse Kikelomo.

Eles corriam o maximo que podiam, então Edmundo emitiu um ganido de dor, Ajagunmale havia retornado e o atingido no ombro com uma bicada, o sangue jorrou do corte produndo, o grande pássaro só soltou o corpo quando ouviu os estalos dos ossos da clavícula partindo.
— Continuem correndo! Continuem! — ele gritou entre os gemidos, a dor era intensa.

Ajagunmale bateu as asas e voou mais adiante, desceu com as garras abertas para rasgar as costas de Meli.
— Veja o castigo de quem foge da justiça!
— NÃAAAAAAO! — Tanya se atirou sobre a menina servindo de escudo humano, as duas caíram no chão, Kikelomo saltou para longe, então ouviram o sim de metal batendo e a luminosidade de faíscas.
Ajagunmale grasnou furioso, uma de suas garras se partira.
— AAAAAI, AAAAAI! — Meli gritava.
— O que foi Meli?! Ele te machucou?! — Tanya perguntou.
— Você matano eu! Matano eu! Pesadaaaa!
Tânia saiu de cima de Meli e com uma mistura de surpresa e horror viu que seus braços estavam cobertos de tinta prateada.
— O quê? O que é isso! — Ela começou a passar as mãos na pele porém a tinta não saia nem se espalhava, e o mais assustador foi um som de tilintar metálico emitido por suas mãos ao bater na pele dos braços.
— Filha de Ogun! — Ajagunmale grasnou voando em círculo sobre elas — Como ousa usar magia contra mim! Amaldicoada seja por todas as vidas que passar!
— Magia? Usei magia? — Tanya perguntava a si mesma.

Edmundo estava boquiaberto, o que via ao se próximar era Tanya em pé, mas toda a pele de seu corpo reluzia como alumínio, seus cabelos haviam se tornado correntes finas que tilintavam ao menor movimento.
*Obiririn* ! Obiririn! — Ajagunmale desceu com o bico pronto para atacar.

CLANG!

Tanya havia cruzado os braços sobre o resto, o bico da grande ave bateu contra os braços de aço sem causar nem mesmo arranhões, então alçou vôo gritando em plena fúria.
Tanya olhou novamente para os braços assustada, percebeu que eram mesmo de aço, e ao passar a mão pelo rosto e cabelos viu que eles também, o corpo inteiro era aço maciço.
— Deus do metal! Deus do aço! — Ajagunmale berrava voando de um lado a outro em torno deles — Porque me fizestes esta afronta! Porque me atingiste com esta ofensa?! Dar a esta mortal o único elemento que minhas garras não podem rasgar! Que meu bico não estraçalha!

Tanya respirava devagar, conseguia ouvir aquele som estranho de quando se assopra em um cano de ferro, por dentro ela também era de aço.
— Ajagunmale! — ela gritou olhando para o alto — Seja lá o que for isto que aconteceu comigo, sabe que é coisa que vem dos que são maiores que eu. Eu não sou mestiça, não tenho sangue de Orixá, nunca tive dons!
*Eletan*! Eletan! — Ajagunmale grasnava horrorizado.

Edmundo alcançou as duas.
— Você está fantástica!
— Obrigada. Consegue continuar correndo?
— Sim, eu aguento mais um pouco.
— Ótimo, pegue Meli e corra na frente.
Meli apanhou a sacola de mantimentos no chão, Kikelomo agarrou-se no braço dela, com a outra mão amparava a boneca e junto com o irmão correu para frente.
— Partam! Partam filhos de Eletan! Eu cobrarei respostas de seus pais! Eu cobrarei e atirarem sobre eles a punição do nepotismo que cometeram! — Ajagunmale grasnou furioso.
Tanya se virou e continuou correndo mas agora seus pés afundavam na terra como estacas, seu corpo devia pesar mais de uma tonelada.
— Vamos! Vamos! — Kikelomo gritou — Vejam! Lá entre as duas montanhas!

Tanya olhou para Frente, cerca de um quilômetro a dianhe haviam duas rochas gigantescas e entre elas um facho de luz apontando para o céu.
— O que é aquilo?! — Edmundo perguntou ofegante.
— São os seios de Oyá! É o nome das montanhas, *Oke-Oyá-Oyan*! Entre elas fica a porta de Atunko!

☆III
Ajagunmale não os perseguiu, permaceu proferindo xingamentos e maldições ao longe.
Após percorrer toda a trilha os três chegaram a uma praça no meio dos dois montes, toda a praça reluzia em luminosidade branca,  no centro dela um grande bambuzal verde, a luz mais intensa parecia vir do meio dele, do lado oposto se formava uma fila de pessoas tão grande que não era possível ver o fim.
Edmundo caiu de exaustão no chão de areia branca diante do bambuzal, seu ferimento sangrava profusamente.
— Meli ajuda, Meli sabe fazê dodói sará. — a menina se ajoelhou ao lado dele e assoprou a ferida.
Tanya também se juntou a eles, seus pés de metal totalmente afundados na areia.
— Ta doendo muito?
— Eu nunca senti tanta dor na vida. — Edmundo falou entre os dentes.

— Com licença? Porque não estão na fila?

Meli olhou para cima e viu uma senhora muito idosa, a pele era preta enrugada e usava um vestido Branco folgado e um turbante da mesma cor, o mais impressionante era que seus pés não tocavam o chão, pairavam a pelo pelos dez centímetros.
— Senhora, meu amigo está ferido, a senhora pode nos ajudar? — Tanya perguntou com a voz aguda enquanto fazia uma reverência.
— Ferido? Oh... — a mulher olhou para o peito de Edmundo lavado de sangue — Vocês são pessoas vivas? *Araye*?
— Sim senhora. — Tanya respondeu.
— Eu posso ajudar sim, so um segundo.
A mulher se retirou flutuando e entrou no bambuzal por uma grande brecha entre dois troncos, não demorou a retornar com uma folha verde e muito larga nas mãos, atrás dela vinha uma outra idosa vestida e se portando de modo similar e carregando uma moringa.
— Nos somos as *Iyatunse* de Oyá, me chamo *Oyadebayó* e essa é minha irmã *Oyantúnmise*, nós podemos limpar a ferida dele?
— Sim, sim por favor.

As senhoras se colocaram uma de cada lado de Edmundo, uma limpou a ferida com água e a outra esticou a Folha por cima do corte.
— Está melhor querido? — Oyadebayó perguntou.
— Muito melhor, eu nem tenho palavras para agradecer. — Edmundo disse.
— Senhoras, me perdoem a pergunta mas... que lugar é esse? — Tanya perguntou.
— Aqui é porta de saída do Orun para aqueles que estão elegíveis a reencarnação. No centro do bambuzal está a porta Atunkó. Nós,  mulheres de confiança da sagrada deusa Oyá tomamos conta da porta pois o reencarnar se dá apenas com o auxílio dela.
Tanya fez menção de dizer algo mas a segunda mulher a tocou no braço com gentileza.
— Está feliz? Seu corpo... é uma bênção muito poderosa, veja que beleza. O Orixá que lhe deu este dom deve lhe amar muito.

— Ela é meu orgulho. — Disse uma voz grossa.
Tanya virou o rosto para trás e contemplou a figura magestosa, um rei em gloria diante de si, saiote de tecido verde escuro, cinturão de metal batido, espada e bainha na cintura, escudo nas costas e elmo de madeira, não havia como duvidar, Tanya  reconheceu imediatamente a figura de seu pai Ogun.
— Eia minha filha, temos muito o que conversar.




 

📚Glossário:
1. Ajírádé: se traduz como "o que desperta afim de contemplar a coroa".
2. Bámbọ̀: se traduz como "retorne para mim".
3. Axé: força divina, poderes ou energias espirituais.
4. Rumbê: currputela de hunbe, respeito nas línguas Fongbe.
5. Voduns: outra categoria de deuses, originados pelos povos fongbe.
6. Atunkọ: reconstrução/regeneração em Yoruba, palavra usada também para reencarnação.
7. Esinmirin: Deusa da agua cujo o culto existia na região Yoruba antes da existência dos Orixás. Acreditasse que impactou a formação do culto de diversas orixás de água como Oxum e Yemanja.
8. Omi, ran arakunrin mi lọwọ: em Yorubá "água, socorra meu irmão".
9. Obiririn: Obirin + Irin = mulher de metal.
10. Eletan: traição em Yoruba.
11. Oke Oyá Oyan: literalmente "montanhas dos seios de Oyá".
12. Araye: terráqueo.
13. Iyatunse: Mãe que ajuda/serve.
14. Oyadebayó: é um Orukó (nome), quer dizer "Oyá me devolveu a alegria".
15. Oyantúnmise: é um Orukó (nome), quer dizer "Oyá me edificou".



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