BÚFALO SANDARA - Capítulo 3
Ora meus caros, sei que querem muito saber onde foram parar Meli, Tanya e Edmundo, mas antes me deixem contar um breve e curto mito africano, e prestem atenção nisto pois é de por os pingos nos i's e assim dizer quem é quem.
Na África há uma região chamada Egbado, lá a milênios atrás existiu uma moça muito pobre e muito bonita de nome Yewá.
Todos dias Yewá ia para a floresta acompanhada de suas duas filhas gêmeas para apanhar gravetos e vender como lenha na feira. Certo dia as três entraram muito fundo na floresta de modo a se perder. Foram horas e mais horas andando em círculos até que a sede e fome começaram a assolar as pobrezinhas.
Yewá ficou muito aflita ao ver suas pequenas passando mal, desfalecendo de inanição. Então aconteceu algo, qualquer coisa de miraculoso pois o corpo de Yewá brilhou como uma luz tal qual a de uma estrela.
O que acontecia era que aquela pobre mulher não era mulher coisa nenhuma, ela era uma grande Deusa encarnada em forma humana, porém não sabia, pois os deuses quando se fazem gente as vezes se esquecem de seu passado glorioso e só despertam quando chegam a um limite que a carne e osso não podem sobrepujar.
Yewá brilhou e brilhou, e pensando no bem das filhas ela se transformou em água, seu corpo explodiu em uma torrente fortíssima, a agua saciou a sede das meninas e o curso que tomou formou um leito de rio que as guiou de volta a aldeia.
Tendo dito isso, vamos voltar a historia:
☆I
Era como estar em uma montanha russa, primeiro pareceram despencar uma eternidade em um breu absoluto, Tanya até pensou estar indo direto para o quinto dos infernos, porém de repente sentiram uma guinada e passaram ser arremessados para o lado direito, o breu deu lugar a um azul escuro salpicado de pontos brancos, talvez estrelas mas quem é que sabe? Após meio minuto nesta eles sentiram que estavam subindo, tudo começou a ser tomado por uma luz intensa, era como se estivessem sendo engolidos pelo próprio sol, e de repente sentiram o baque seco nas costas, sim, uma pancada daquelas fortes o suficiente para aleijar, mas dessa vez não aleijou ninguém.
Ao abrir os olhos a primeira coisa que Edmundo viu foi uma a copa de uma arvore em um céu azul claríssimo.
— Puta que o pariu, que negócio foi esse?
— Pé de pato mangalô três vezes... onde é que estamos? — Tanya olhou em volta.
— Não faço ideia mas acho que é bem longe de casa.
— Atenção, me ouçam! — a voz da boneca soou mais alta que nunca.
— Ah bonitia, fala, fala sim. — Meli segurou a boneca no colo com carinho.
— Não tenho muito tempo, meus poderes vão desaparecer, este lugar não é aberto a intervenções de magia externa, por isso serei direta. Eu sou Enobária, mãe de Meli e Edmundo. Por um questão que não posso abordar agora fiquei presa dentro desta boneca, mas meus filhos eu preciso da ajuda de vocês para voltar a ter meu corpo humano. — a voz antes alta começava a perder volume — Vocês estão no Orun, no primero dos nove Oruns, preciso que encontrem um artefato muito poderosos, ele poderá me trazer de volta a vida. — a voz ficou ainda mais baixa no final
— Mãe! Diga! Diga, eu faço qualquer coisa pela senhora! — Edmundo implorou ajoelhado tocando o rosto da boneca.
— Eu... preciso... da capa de couro...
— Uma capa de couro?
— Nao uma, eu... me refiro a... capa de couro de búfalo... de Oyá.
— E onde está ela?! Diga onde está e nós iremos buscar, eu juro!
— Ela... — a voz estava tão baixa que quase era inaudível — Está sob a posse... daquele homem... terrível...
— Quem? — Perguntou Tanya.
Edmundo não perguntou, já sabia. A boneca prosseguiu com a voz fraquinha.
— Eu não sei... em qual dos... nove Orun's ele está... mas sei que... a capa está com ele... Vocês devem encontra-lo e tomar dele a capa... Vocês devem encontrar... Búfalo Sandara...
— Oh não... — Tanya levou as mãos a boca assustada.
— Mãe nós vamos achar ele, eu dou minha palavra! Mas depois de acha-lo o que faremos? Como usamos a capa? — Edmundo perguntou aflito.
A boneca nada mais disse, e meli ao colocar o ouvido sobre o peito recheado de serragem da pequena constatou:
— A bonitia domiu.
Ok, então era isso, em uns quarenta segundos haviam chegado a um mundo espiritual do qual não conheciam nada além de uma descrição básica mitológica e em seguida ja foram incumbidos de sair em busca de um psicopata assassino da própria família. Que dia maravilhoso.
Edmundo ficou em pé e olhou em volta, era uma clareira comum em uma floresta totalmente normal, por um instante ele duvidou se realmente estava no Orun ou se estava apenas em uma floresta de Mairiporã alucinando com uma boneca falante.
— Ei... ei você ai, moleque de cabelo espetado.
Edmundo olhou em volta mas não viu a pessoa que o tinha chamado.
— Vocês ouviram isso?
— Sim... — Tanya confirmou enquanto recolhia o chifre de búfalo do chão — pareceu voz de velho.
— Eu não sou velho, sua mulher esquisita!
Um galho da árvore mais próxima balançou, os três olharam para o alto e viram ali um macaco Preto rajado de pelos brancos longos, era grande como um cão pastor alemão.
— Espera ai... foi você que falou? — Tanya olhou assustada.
— Se eu tenho boca é pra falar, para que mais havera de ser?
— Por Deus, um macaco falante... eu... olha eu não esperava por isso assim logo de cara. — Tanya falou se afastando do galho.
— Kolobo... — Meli murmurou.
— Um macaco Kolobo? — Edmundo garrou o braço de Meli e a puxou com força para se afastar do bicho.
— Não sou qualquer Kolobo, meu nome é Kikelomo.
Tanya se lembrava das lendas antigas que ouviu na infância, lendas sobre os primeiros feiticeiros da África não terem sido homens ou mulheres e sim macacos da espécie Kolobo, macacos perversos que usavam a magia para o mal.
— O que quer de nós? — Ela perguntou defensiva.
— Alto lá! Fale baixo comigo. Eu que faço as perguntas aqui. — Kikelomo tentou engrossar a voz.
— Então pergunte logo. — Edmundo falou.
— Meu focinho deve estar muito enganado mas... Vocês tem cheiro de gente viva.
— É claro, estamos vivos.
— Então é por isso... faz todo o sentido. — Kikelomo coçou o queixo.
— O que faz sentido? — Tanya perguntou.
— Vocês tem uma Ajawofon. — ele apontou para o chifre que ela segurava — essa trompa leva um filho de Oyá, independentemente se é carne e osso ou somente alma, para junto da mãe no Orun *Omilayê*, o Palácio das borboletas fica lá. Porém se uma pessoa que não é filha de Oyá e que também não é espírito soprar a Ajawofon... — O quê contece? — Meli perguntou.
— A pessoa é enviada para cá, para o portão do primeiro dos nove Oruns, aqui é o local oficial de entrada, só pode entrar quem tem permissão do vigia do portão. Vocês pelo visto não são filhos de Oyá não é.
— É... — Tanya respondeu.
— Onde está esse tal portão? E quem é esse tal vigia?
— Eu levo vocês até ele, o nome dele é *Onibode*.
— Onibode? Não conheço esse nome. — Edmundo respondeu.
— Ma eu sei. — Meli ergueu a mão para falar — Onibode é um nomi de meu pai Exú.
☆II
Zeniba caminhou para casa lentamente para ver se assim se acalmava, mas como era de se esperar isso não adiantou. Ao chegar em seu terreiro pediu que todos os filhos de santo parassem qualquer das ativades que estivessem fazendo e fossem embora imediatamente. Assim foi feito, ela ficou sozinha no casarão.
Com movimentos um tanto bruscos foi até aquele já citado quartinho dos fundos e no alçapão apanhou uma grande caixa de madeira, tão grande que teve dificuldades de remove-la dali. Levou a caixa para o quintal, era quase meio dia, a abriu e contemplou um precioso arco de madeira vermelha e corda de cipó junto a uma unica flecha de metal furtacor esverdeada. Aquilo tinha cara de ser muito velho, e de fato era.
Apanhou o arco e encaixou a flecha, caminhou até o meio do quintal, retesou a corda, mirou para o alto e disparou na direção do sol.
A seta subiu como um foguete, em seguida fez uma curva quando alcançou cerca de quinhentos metros de altura, a ponta pendeu para baixo e ela desceu cravando o chão a alguns metros a frente de sua arqueira. Quando a flecha bateu no solo imediatamente se dissolveu em uma névoa branca, a névoa era espessa como aquela fumaça feita ao tentar usar folhas ainda verdes para fazer fogueira, de pouco a pouco foi tomando um forma humana até que dali surgiu uma mulher alta de pele preta tão escura quanto a mais intensa das obsidianas, usava um tecido vermelho vivo amarrado ao corpo de modo similar a um vestido longo sem mangas, o cabelo caia em uma trança grossa pelas costas tão longa que a ponta tocava o chão, seus braços eram adornados por dezenas de braceletes metálicos das mais variadas cores que espiralados em forma de serpentes se moviam circulando o par de membros como se fossem vivas, na cintura uma serpente Víbora amarela servia de cinturão fixa na posição de morder a propria cauda. O rosto da mulher era belíssimo, tão bela que nitidamente nao era humana, os ângulos eram perfeitos, os olhos adornados com certa cor de vermelho escuro nas pálpebras e cílios tão longos que faziam sombras as bochechas, as íris verde claras que ao invés de pupilas redondas exibian fendas como os olhos de cobras peçonhentas, os lábios pintadados de vermelho escuro entreabertos em um sorriso singelo, era inquestionavelmente uma Deusa.
— Minha filha, minha amada Titilayó... — a Deusa abriu mais o sorriso exibindo dentes perfeitos.
— Não uso mais esse nome, aqui nesta terra, neste país eu me chamo Zeniba. — Ela não disfarçou a rudeza ao falar.
O sorriso da deusa vacilou.
— Faz onze anos que não lhe vejo e é assim que se dirige a mim? Não coloca sua cabeça ao chão e nem beija minhas mãos? O que aconteceu contigo para ter um *ihuwasi* tão mal com sua própria mãe?
— Como eu poderia lhe oferecer respeitos após mais uma traição?! — Zeniba gritou.
— É melhor abaixar a sua voz, vejo que está perturbada mas não serei tolerante a desrespeito explícito.
— Ah claro que não, a grande Deusa Yewá não admite desrespeito! Vamos falar um pouco mais disso.
— Diga logo o que te aflige minha filha, se isso lhe fará voltar ao juizo perfeito, fale. — Yewá fez um gesto gracioso com as mãos dando a palavra a Zeniba.
— Acabo de descobrir que Enobária está viva.
Yewá olhou para a Zeniba com os olhos cheios de tristeza.
— Pois bem... é isso... Sim, Abifoluwa está viva.
— E deixe-me adivinhar... foi a senhora que a escondeu naquela boneca, não foi? Aquilo é magia grande demais, nem eu e nem ela temos esse poder, algo assim só um Orixá pode fazer.
Yewá suspirou profundamente e abaixou o olhar.
— Vocês duas são minhas únicas filhas consangüineas... eu não podia deixar ela ser destruída. Amo todas as minhas filhas ao redor do mundo, mas vocês duas... São especiais.
— Eu não te entendendo mãe, realmente não entendo, a senhora vem quebrando as leis do Orun repetidas vezes para favorecer a nós duas, não vê que isso só está deixando as coisas piores?
— Piores? Eu dei a vocês a imortalidade, dei a vocês poderes deslumbrantes e...
— E me presenteou com responsabilidade de controlar Enobária ao mesmo tempo que a presenteou com a eterna impunidade.
— É assim que você vê? — Yewá demonstrou tristeza no olhar.
— É assim que é. Tudo que Enobária fez em África mil anos atrás... tudo que ela fez deveria ter sido punido com a lei marcial.
— Pena de morte? — Yewa parecia incrédula.
— Sim, pena de morte. Mas não, a senhora decretou que ela deveria ser presa dentro dos limites de minha aldeia e que lá ficaria sem ter como usar quaisquer feitiçaria. Então os séculos passaram e trezentos anos atrás quando os franceses invadiram a aldeia a fim de sequestrar os habitantes para escraviza-los... a senhora libertou Enobária, a deixou fugir.
— Dentro da aldeia ela não tinha como se defender, eu fiz o que era certo.
— Então ela foi até a Praia e fez aquela atrocidade para poder vir de navio para o Brasil sem ser escravizada. Sabe o que ela fez? O que ela fez com a esposa do Duque Fontette?
— Eu não sabia que ela faria aquilo, sabe que nenhum de meus dons de Orixá envolve predição do futuro.
— Mas a senhora fez de novo não é? Quando Sandara atacou a casa o que aconteceu? A missão dele era matar Enobária. O que a senhora fez?
Yewa se manteve em silêncio por um minuto, então contou.
— Eu o iludi. Quando ele atacou Enobária eu a recolhi, a selei de corpo e alma dentro da cabaça mais proxima afim de protege-la.
— A cabaça mais próxima? Quer dizer a cabeça daquela boneca de porcelana?
— Sim. Então iludi Bufalo Sandara o fazendo crer que havia matado minha filha.
— E adivinhe o que aconteceu?
— O quê? — Yewá ergueu o queixo.
— Enobaria enganou a jovem Meli e a induziu a roubar o meu Ajawofon.
— O quê está dizendo? Espere... não está dizendo que...
— Sim mamãe, ela fez com que Meli assoprasse a trompa de chifre de búfalo, então a coitada da Meli, Tanya e Edmundo nesse momento já devem estar nos portões do Orun.
Yewá arregalou os olhos sem dizer nada, Zeniba falou mais:
— Seu amor por Enobária fez grandes estragos na terra, mas o Orun é reinado por todos os Orixás, eu lhe chamei aqui para lhe dizer em primeira mão que Enobária passará junto com Aqueles três inocentes pelos territórios dos demais Orixás nos Nove Orun's, e que lá não importa o quanto queira proteger aquela amaldiçoada, lá os outros orixás hão de destruir Enobária de uma vez por todas, e a senhora minha mãe carregará a culpa pela destruição de Meli, Tanya e Edmundo pois eles com toda a certeza perecerão junto com ela.
Yewá uniu as mãos sob o queixo pensativa.
— Eles, as crianças, não tem de pagar por isso.
— Com certeza não.
— Essa história foi longe demais... Zeniba... minha filha...
— Essa história é um pesadelo.
— Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que vocês duas eram amigas.
— Isso foi a muitas eras atrás.
— Entendo. Zeniba, se eu lhe pedir para salvar os três? Trazer eles em segurança para casa?
— Esta dizendo que eu devo ir até o Orun?
— Estou lhe dando essa oportunidade e fazendo dela um pedido meu.
— E quanto a Enobária.
Yewa falou com a voz fraca:
— Dê a ela o destino que achar justo. Eu não terei como interferir no Orun mesmo se quiser.
— Então eu vou. — Zeniba abriu um largo sorriso.
Yewá agora havia perdido parte de seu esplendor, parecia na verdade a mais triste das mulheres.
— Parece mesmo um crime hediondo não é?
— O que parece crime?
— Amar a um filho.
Zeniba abriu a boca sem saber o que dizer, o remorso a atingiu em cheio, não deveria ter usado aquele tom para falar com a mãe, a maldade estava em Enobária e não em Yewá, está sim so agia em prol de amar suas filhas.
— *Idariji* mãe, eu não devia ter sido tão... rude em minhas palavras.
Yewa não disse nada, penas curvou um pouco o corpo para frente permitindo que uma lágrima reluzente caísse de seu olho esquerdo a batesse diretamente no chão de terra.
Zeniba ficou perplexa, em seus mais de dois mil e seiscentos anos só havia visto a mãe chorar uma única vez, agora era a segunda e o motivo ainda era o mesmo, chorava pelas filhas.
A lágrima ao Bater no chão se condensou, tornou-se uma pequena nuvem de nevoa branca, Yewa se abaixou e com a ponta da unha do dedo indicador traçou um risco em espiral de mais ou menos um metro e alguns centímetros na terra, a nuvenzinha de névoa desta adentrou ao risco traçado e ali em questão de segundos surgiu uma serpente vermelha preta e branca de corpo delgado a qual Zeniba imediatamente reconheceu como sendo uma coral mas a um olhar mais atento percebeu que na verdade era uma falsa coral, uma não peçonhenta conhecida por ser a simpática "cobra-do-leite".
— *Mobojuri* — Yewá chamou, a serpenhe ergueu a cabeça e manifestou um aceno respeitoso — lhe incumbo da missão de guiar minha filha Zeniba pelos nove Orun's ate encontrar sua irmã Enobária. Faça o que for necessário.
Zeniba se aproximou, sorriu para a serpente, era muito graciosa, quando ergueu os olhos para falar com a mãe, Yewá já havia desaparecido, tudo o que restava era a flecha fincada no chão.
☆III
— Se quer que eu os leve até Onibode terá de me carregar, não gosto de pisar no chão e para aquelas bandas não há muitas árvores. — Kikelomo falou.
Edmundo realmente não queria aquele macaco perto de si, então Tanya se aproximou enquanto prendia o cabelo em um coque bagunçado no alto da cabeça.
— Você é muito pesado? — ela perguntou vendo que o macaco estava na ponta do galho sem o envergar.
— Não, e se for mais fácil eu posso ficar menor.
O macaco saltou do galho, enquanto estava no ar seu corpo diminuiu para o tamanho de um gato, pousou levemente sobre o ombro de Tanya.
— Você é mesmo leve.
— Só como fibras. — ele riu.
— Kikelomu, Meli tem fomi. — Meli passou a mão na barriga.
— Pois é, saímos de casa sem tomar café da manhã. — Edmundo comentou.
— Ninguém sente fome aqui, vamos.
O macaco guiou os três até uma árvore mamoeiro carregada de frutos, Edmundo arrancou um mamão e ao apertar de leve a casca percebeu que era mais macio que os mamões que comprava na feira perto de casa.
— Olha Meli, a casca é fina, pode morder.
Meli apanhou o grande mamão nas mãos e deu logo uma dentada, mastigou, engoliu e sorriu
— É dolcio.
Kikelomo saltou para o galho de uma arvore e passou para uma palmeira, arrancando uma das grandes folhas começou a desfiar e trançar com seus dedos pequenos em uma velocidade maior que a de qualquer rendeira experiente, logo entregou a Tanya uma bolsa de ráfia ainda verde tão bem trançada que tinha até alças.
— Vamos — Ele apontou para uma árvore a alguns metros a frente — Ali tem *ogede*, mais a frente tem um pé de *opotó*, eu vou achar uma cabaça para encher de água e volto já.
— Espere ai Kikelomo, porque está nos ajudando? — Edmundo desconfiou.
— Porque é a lei.
— Lei? Que lei? — Tanya quis saber.
— Vocês são vivos e o mundo do qual vieram já se esqueceu das leis primordiais. Uma delas diz que se forasteiros forem até sua casa é seu dever dar a eles água, comida, pernoite e ajuda, isso fará quem que se um dia você for um forasteiro em terras desconhecidas receba ajuda do povo que encontrar lá. Aqui é o Orun, as leis sagradas ainda vogam para todos que vivem nestas terras.
Munidos de uma bolsa cheia de frutas e três cabaças de água, chapéus de palha e um par de chinelos de folha de bananeira que Kikelomo havia trançado para Meli pois a menina havia vindo do *Ayê* descalça, os três caminharam floresta a dentro por uma trilha quase apagada por mais de três horas. Quando as últimas árvores apareceram foi possível ver atrás dela um grande espaço gramado banhado pela luz branca do sol da manhã, nele se encontravam deitados milhares de pessoas, todas vestindo simples túnicas brancas.
— Meu Deus... essas pessoas... estão mortas? — Tanya perguntou ao macaco sentado em seu ombro.
— Sim.
— Cledo! — Meli cobriu os olhos em pavor.
— Não, acho que entenderam errado — Kikelomo riu — Não são cadáveres, eles morreram no Ayê, aqui estão em estado de espírito, são Almas, estão apenas dormindo.
— Dolmindo? Poquê? — Meli Perguntou.
— Há uma grande fila de Almas afim de entrar no Orun, o vigia do portão achava que elas ficavam muito agitadas, muito ansiosas enquanto aguardavam a sua vez de entrar, então decidiu que seria melhor colocar todas para dormir enquanto aguardam, ele despertar de vinte em vinte conforme vai permitindo, orientando ou até mesmo negando a entrada.
— Negando a entrada? Mas ele pode fazer isso? — Edmundo se admirou — Quer dizer... toda a humanidade deve ter direito a estar no mundo sagrado não é?
— Sim toda a humanidade tem direito a entrar nos mundos sagrados, e preste bem atenção que usei mundos no plural. Os homens e mulheres escolhem seu destino na terra. Aqueles que aceitam ser filhos dos Orixás vem para cá, mas é necessario dizer que o povo de Orixá não é lá muita gente. O restante da humanidade segue para os mundos celestes governados por outros deuses de outras linhagens, podem então ir para o Paraíso dos cristão, coisa que eu acho muito sem graça para falar a verdade, ou irem para os campos Elíseos dos Deuses helenos, ou irem para Valhala se forem parte do povo do norte, alguns vão para o Nirvana, outros vao morar no cume do Monte Meru se forem pessoas de fé hindu, e por ai vai, cada qual em seu lugar.
— E os ateus? Para onde eles vão? — Tanya perguntou.
— A pessoa que escolhe viver sem fé, quando morre tem seu espírito apresentado a todas as versões de mundos espirituais que existem, ela pode escolher pedir para entrar em um deles, ou como a maioria dos ateus fazem, não fazer parte de nenhum e simplesmente ter sua alma desintegrada e somada a força da natureza que rege todas as coisas criadas.
— Então essas pessoas dormindo são... — disse Edmundo.
— São chamados de *Ebi idile*, sabe o que significa isso? — Kikelomo perguntou.
— Famila, Ebi Idile é famila. — Disse Meli.
— Sim, toda essa gente são seus irmãos e irmãs na família dos filhos de Orixá.
☆IV
Os três caminharam com cuidado por entre os corpos que repousava tranquilos, Meli sorriu ao ver alguns movendo as sobrancelhas ou respirarem de modo intenso mesmo de olhos fechados.
— Tão sonhano...
— Sim, eles todos estão sonhando com as partes boas das vidas que tiveram. — Kikelomo respondeu.
Andaram por mais de uma hora até que avisaram ao longe um muro feito de colunas de pedra negra.
— O que são aquelas colunas? — Edmundo Perguntou.
— Oh... nossa... eu acho que não são colunas... — Tanya tinha os olhos marejados de emoção.
— Ilunmolé! Ilunmolé! — Meli gritou e saiu correndo rumo as colunas.
— *Irunmolé*? — Edmundo pronunciou sem entender.
Mas ao se aproximar mais entendeu, o que havia ali não eram colunas e sim estátuas, quatrocentas estátuas colossais, ao longe se podia crer que tinham mais de quarenta metros, duzentas de cada lado de um grande portão que reluzia prateado ao brilho do sol.
— Eu não estou crendo nos meus olhos... — Tanya enxugou as lágrimas com as costas das mãos fitando com produnda devoção a quarta estátua a direita do grande portão, nela um homem musculuso e corpulento segurava um escudo e erguia uma espada para o alto, em sua cabeça um elmo de guerra de feitio africano. — Aquele é meu pai! É a estátua de meu pai Ogun! — Ela correu junto a Meli.
Edmundo observou com imensa devoção a decima sétima estátua da fileira ds esquerda, a mulher majestosa em pé com queixo erguido olhando para cima, em sua cabeça estava incrustada uma coroa de ouro que ao longe brilhava como se roubasse a luz do próprio sol, ela tinha um abano em uma mão e uma espada em outra, a postura indicava a soberania verdadeira.
— É minha mãe Oxum... Que linda... — Edmundo também se emocionou.
Após mais uma caminhada e alguma corrida, os três chegaram diante do portão, havia ali apenas quatro pessoas, uma mulher idosa, uma criança de menos de quatro anos de idade, um homem de uns quarenta anos e uma moça de cerca de vinte anos esperavam em fila indiana.
Um homem enorme apareceu atravessando o portão, tinha mais de dois metros com certeza, a pele era preta como a pedra das estátuas, seu maxilar quadrado e os olhos grandes o faziam ser extremamente atraente, era magro e usava apenas uma faixa de pano branco amarrada ao quadril como uma saia curta mas que as pontas do tecido caiam até tocar a grama e as vezes se moviam como se fossem sopradas por alguma brisa, o homem usaba um aro de ouro na cabeça que se encaixava na metade de sua testa e na mão trazia um cajado da mesma altura o qual se examinado com atenção se fazia perceber que sua forma de círculo no topo e de apendice na base formavam a figura de uma grande chave.
— Vejamos... Kate... — a voz máscula e ao mesmo tempo suave do grande ser chamou a mulher idosa.
Edmundo, Tanya e Meli sabiam que ele falava com a mulher em inglês mas sem saber como entendiam tudo o que era dito.
— Sim meu senhor... — a idosa se prostou ao chão pondo sua cabeça ao solo em respeito ao ser.
— Kate, você é Katherine Moyle Jackson de Louisiana, Estados Unidos da América?
— Sim meu senhor. — A mulher se erguia lentamente.
— Kate você foi uma grande sacerdotisa de Santeria, professou e levou a diante o nome de seus ancestrais mesmo em meio a todas as dificuldades, sua força é comparada a seu pai, Xango. Sua recompensa é viver no sétimo Orun, Orun Ogbon, local onde os sábios tem seu merecido descanso.
A mulher sorriu agradecida a caminhou para dentro atravessando o portao e desaparecendo logo em seguida.
— Ah não, você de novo? — ele olhou para a criança.
— Problemas... Fui atropelado pela Kombi da pamonha... — a criança sorriu olhando para cima.
— Ah eu nem quero saber, ande pode entrar, volte para o quinto Orun.
— De volta ao Orun Ewe! — a criança correu portão a dentro e também desapareceu ao passar.
— Esses *Abikus*... ai ai, quando vão tomar jeito?
— Minha vez? — o homem de meia idade perguntou.
— Sabe o que *Foribalé*? — O ser grandioso perguntou.
— Ah é... desculpe. — o homem se abaixou rapidamente de modo desajeitado mas não colocou a cabeça no chão.
— Eduardo Almeida de Silva e Silva não é? Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil. — o grande homem pronunciou os nomes com certo asco.
— Eu mesmo meu caro.
— Pois bem, entre e caminhe até a fila da esquerda.
— Fila da esquerda? Eu... pra qual Orun eu vou?
— Você será réu em um tribunal, após a sentença veremos. Aguarde na fila até sua vez de ser julgado. E acredite, suas ações em vida lhe custarão muito caro.
O homem passou pelo portão resmungando e invés de desaparecer como os outros caminhou decidido para a esquerda.
A moça próxima da fila ja estava prostrada ao chão quando o homem a chamou.
— Hellen Elisa Figueira Lemos...
— Eu meu senhor, sou de Salvador, Bahia, Brasil. — Ela se ergueu com delicadeza.
— Você faleceu em complicações de parto não foi?
— Sim meu senhor.
— Certo... você foi uma boa pessoa, não viveu muito para sabermos se...
— Meu senhor... — Ela o interrompeu.
— Hã? Alguma pergunta?
— É... bem... eu queria saber se meu bebê sobreviveu.
— Você quer saber o destino da criança antes de saber do seu?
— Se não for muito abuso... sim.
— Ele está bem, sua mãe e seus irmãos irão cria-lo com todo o amor que puderem dar, ele sentirá muito sua falta mas... será sim um homem feliz.
— Obrigada. — a moça sorriu com lágrimas dos olhos.
— Eu vou lhe enviar para viver no segundo Orun, Orun Omilaye, o local onde as Iyagbas moram. Sua mãe Obá a espera ansiosa, ela cuidará de você daqui por diante.
— Muito, muito obrigada. — A moça passou o portão e desapareceu logo em seguida.
— Vejamos... Ora essa eu achei que ja tinha passado vinte, ainda faltam vocês três? Acho que perdi a conta. — O homem coçou o queixo.
Os três imediatamente se ajoelharam e se curvaram até a testa tocar o gramado.
— Meu dignissimo — Kikelomo falou ficando em pé na grama — Esses três são pessoas vivas, não são almas desencarnadas.
— Bem que senti cheiro de carne... — o homem disse.
— O sinhô é meu pai Exu? — Perguntou Meli enquanto se erguia.
— Amélia... você é Aurélie Amélia Du Fontette...
— Si, desde cliancinha. — Meli confirmou.
— Pois é um prazer lhe conhecer Amélia, ou melhor, Meli. Eu sou sim Exu, mas não todo, só um pedaço.
— Pedacino? — Meli perguntou.
— Sim, eu sou um Orixá muito atarefado então meu pai Olodumare me dividiu em duzentos pedaços, somos ao todo duzentos Exus mas que ao mesmo tempo somos partes de um único orixá.
— Má o Exu do potlão é *Onã*, num é? — Meli quis saber.
— Não deste, este portão é o principal entre todos, por isso eu fico aqui de vigia. Mas me digam, o que fazem tão longe do Ayê?
— Meu senhor — Edmundo se ergueu ainda com reverência — Nós estamos em uma missão.
— Missão? Ah sim, vejo que não são três pessoas, são quatro. A missão tem haver com a mulher presa dentro da boneca não tem?
— Sim. — Edmundo confirmou.
— Certo. Me deixem pensar um pouco. — Exú Onibode encostou no batente do portão e fitou o longe perdido em pensamentos por mais de dez minutos.
— Ta legal, eu deixo vocês passarem, mas primeiro tenho de saber se realmente querem.
— Queremos sim, senhor. — Edmundo respondeu.
— Não acho que entenderam muito bem como funciona esse lugar. Quando as almas vem até mim eu as encaminho diretamente para o destino que merecem, elas desaparecem aqui e reaparecem em segurança no local indicado. Vocês não são almas desencarnadas, não posso envia-los a lugar algum, significa que terão de atravessar os nove oruns a pé e por conta própria.
— Nós entendemos senhor, e queremos ir mesmo assim. — Edmundo falou.
— Você sabe que o motivo de eu enviar as almas diretamente para os locais devidos é porque é extremamente perigoso andar por ai sozinho? — Exu falou em tom sério.
— Peligoso? — Meli perguntou.
— Existem muitos perigos rondando esse lugar, os espíritos confusos, os trevosos, as feiticeiras, e principalmente alguns orixás irritadiços.
— Orixás perigosos? Como assim? — Edmundo se surpreendeu.
— Sim, as almas entram nos territórios dos Orixás já com autorização prévia, elas são aguardadas lá. Vocês não, vocês serão vistos como intrusos, forasteiros, e nem todo orixá pergunta, alguns deve primeiro atacam e depois falam. Ainda assim querem entrar?
— Mas e a tal lei de ajudar o forasteiro, Kikelomo disse que essa lei voga aqui.
— E de fato voga, mas a questão é que a primeiro olhar é difícil definir se a pessoa em questão é um forasteiro ou inimigo. Pense comigo, se alguém achar que são inimigos e então meter-lhes umas facadas na barriga... bem, não vai adiantar muito que após isso perceba que são apenas singelos forasteiros e lhes ofereçam hospitalidade, é ou não é? Do que vai servir eles lhe darem uma cama, comida e roupas limpas se vocês estiverem pondo as tripas pra fora?
— Mas que horror... — Edmundo respondeu.
— Para atravessar esse portão do modo que pretendem fazer é necessário muita coragem. — Exu balançava a cabeça animado.
Edmundo olhou para Tanya:
— O quê acha?
— Ah eu não sei... se bem que vocês dois não são exatamente indefesos, você e Meli tem seus dons para ajudar.
— E você também tem. — Exu olhou para Tanya.
— E-eu? Eu não senhor, sou só uma pessoa sem dom nenhum.
— Podia até ser lá em baixo, mas todo aquele que pisa no Orun antes da hora tem suas potencialidades afloradas. Espere e verá. Agora me digam, querem mesmo entrar?
— Sim — os três responderam em uníssono.
— E tu senhor Kikelomo? — Perguntou Exu ao Macaco.
— Ora Pai de todos os bisbilhoteiros, me deixe curiar essa aventura. — O macaco disse cheio de ousadia.
— Mas sua mãe, a grande rainha dos Kolobô? Ela não gostará nada nada de saber que tu, macaquinho safado, deixou o campo dos sonolentos e partiu junto a três forasteiros.
— Se eles não me quiserem, então não vou, mas se me quiserem, então irei com ou sem palavra de mãe.
— Digam vocês, querem a companhia deste diabrete? — Exu quis saber.
— Eu acho que seria muito bom se ele viesse conosco, parece saber muito dessa terra e destes mundos. — Disse Tanya.
— Então que partam para sua jornada, e eu lhes desejo boa sorte. — Exu deu um passo para o lado dando permissão para o grupo atravessar o portão.
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📚Glossário:
1. Omilaye: se traduz como "casa das águas".
2. Onibode: significa "senhor do portão", é um dos nomes tradicionais do Orixá Exú.
3. Ihuwasi: Comportamento, bons modos em Yoruba.
4. Idariji: "perdão" em Yorubá.
5. Mogbójúri:́ em Yoruba "alguém que vi com meus olhos".
6. Ogede: Bananas
7. Opotó: Figos
8. Ayê: nome que se dá ao planeta terra na língua Yoruba, se refere estritamente ao mundo físico a qual a humanidade habita.
9. Ebi idile: se traduz como "nascido nesta família".
10. Irunmole: se traduz como "Os quatrocentos seres de luz"
11. Abiku: criança que nasce predestinada a morrer cedo.
12. Foribalé: ato de se abaixar e por a testa no chão diante de alguém importante, expressão máxima de respeito.
13. Onã/Oná: caminho, rua ou estrada em Yoruba.
Oxi então os filhos da enobaria deviam ser filhos de Yewa não? :/ buguei total agora
ResponderExcluirOs filhos de Enobaria são adotivos, nenhum tem parentesco sanguíneo com ela. Enobaria e Zeniba nunca geraram filhos biológicos.
ExcluirQue maravilhosa essa novela, aliança algo que apresenta e da a importância da grandiosidade dos orixás! Super compraria esse livro, melhor que as aqueles lixo de livro de exu e pomba gira da editora aruanda ❤
ResponderExcluirGente eu amo essas palavras em yoruba do glossário, minha mãe de Santo e o preto velho até elogiou meu vocabulário yoruba, graças as histórias!
ResponderExcluirFico feliz que goste
Excluir❤
ResponderExcluirMuito interessante, estou amando...
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