BÚFALO SANDARA - Capítulo 2

 


Capítulo II
"Ajawofon"

☆I
Janeiro de 2002

Monte D'avila era uma pequena cidade mais conhecida por ser a maior fornecedora de hortaliças para a capital de São Paulo, alguns paulistanos metidos a besta gostavam de chamar os avileses de "saladeiros", coisa que no geral irritava muito aquela boa gente.
Ser tratado como caipira ou como interiorano não tinha o menor sentido, Monte D'avila se localiza a meros vinte minutos da capital, inclusive era possivel ir a pé se a pessoa tivesse disposição e coragem de atravessar a rodovia Fernão Dias, coisa que não aconselho pois é demasiado perigoso.
Quase não havia asfalto, era um lugar realmente legado ao nada além do serviço braçal, o centro da cidade se resumia a dois quarteirões com lojas, mercado, correios, uma Central de caixas eletrônicos, hospital e delegacia, nem bombeiro aquele município tinha, se acaso houvesse fogo, que Deus o livre, era necessária passar um telefonema a capital e esperar os bombeiros de virem de lá, mas ainda assim com toda a dificuldade era e ainda é um bom lugar.
Em uma tarde quente de Janeiro, Edmundo na altura de seus doze anos de idade estava sentado na calçada em frente ao terreiro chupando um daqueles picolés caseiros de chocolate que Mãe Enobária fazia. Ao seu lado estavam a minúscula Meli com quatro ou cinco anos de idade e Jacqueline com quinze, os três olhando aqueles moleques paulistanos odiotas andando de bicicleta na rua.
Era assim, em janeiro o lugar ficava cheia de crianças da capital que vinham para Monte D'avila no veraneio e ficavam pelas ruas de nariz empinado desdenhando do povo local.
— Eu queria muito ter uma bicicleta... — Edmundo lançou um olhar cumprido para aquelas rodas de aro colorido pilotada por um dos riquinhos.
— Para quê? Para ficar todo suado? olha para eles, meninos imundos, aposto que estão fedendo. — Jacqueline criticou.
— Meli tumem qué bici... bici... bocitletla.
Os dois olharam para a pequena com cara de bolacha e riram.
— Vamos Meli, vou hidratar o meu cabelo, o seu também está precisando, vamos pro banheiro. — Jacqueline se levantou batendo a poeira do vestido com as mãos.
— Baboooosa. — Meli gritou e saiu correndo atrás da irmã.

Jacqueline era assim, a vaidade em pessoa, uns marotos da cidade até a haviam apeliado dondoquinha por essa qualidade. Edmundo continuou lá, mordendo o pálido do picolé já devorado e mirando os moleques cheio de inveja. "Ah se eu fosse rico como eles..."
Do nada sentiu uma mão quente pousar em seu ombro.

— Está calor aqui, porque não entra?

Edmundo olhou para o lado, lá estava ele, Sandara,  aquele queixo quadrado, a pele negra da cor de pó de café. É, era engraçado como a mente infantil fazia associações bobas mas Edmundo sempre associava a propria cor como de nescau e a de Sandara como de pó de café.
— Eu gosto de ficar vendo eles pedalando. — apontou com o nariz a molecada logo a diante.
— Eles? — Sandara olhou para os moleques, garotos brancos em suas bicicletas de vinte e sete marchas e freios a disco, riquinhos, gorduchos mimados — Você sabe andar de bicicleta Ed?
— Não... nunca tive uma bicicleta.
— Mas nem tentou andar na de um amigo ou coisa assim?
— Não, quando Sandrinho da rua de trás me oferece pra andar na dele eu digo que não gosto, tenho vergonha de dizer que não sei andar em uma.
— Mas não é vergonha nenhuma não saber de uma coisa.
— Mas é chato quando riem da nossa cara por conta disso.
— Hum... vem, vamos entrar, o sol forte vai te dar dor de cabeça, você pode ficar com meu picolé, eu não quero.

Dias depois na manhã de uma quinta feira quente de verão Edmundo foi acorado por Toni, outro de seus irmãos, este não era tão simpático quanto Jacqueline mas pelo fato dos dois dormirem na mesma beliche sempre sabiam muito um sobre o outro. 
— Acorda Ed, acorda! Eu fui no banheiro agora pouco e vi uma coisa lá no quintal quando olhei pelo vitrô, você tem de ver! Eu acho que é seu presente de aniversário!

Aniversário? Ah, de novo Edmundo havia esquecido do proprio aniversário, era dia trinta e um de janeiro, dia de seus anos. Ele levantou da cama sem entender muito bem as palavras do outro garoto, calçou os chinelos e foi sonolento ainda esfregando os olhos rumo ao quintal dos fundos, quando estava se aproximando ouviu a voz de mãe Enobária.
— Meu Deus Sandara, não acredito que gastou todo seu dinheiro reserva nisso... quanto custou?
— Não foi tudo, custou só cento e vinte, é usada... mas está em bom estado, e ele merece um presente.
— Eu fiz bolo e comprei um conjunto novo de roupas de sair pra ele, não o deixei sem nada.
— Eu sei mãe, mas criança não liga pra roupa, criança gosta é de brincar.

Edmundo saiu pela porta de madeira gasta que rangiu ofendida quando foi escancarada, ao entrar no quintal se deparou com a visão mais adorável de sua infância, uma bicicleta Caloi Ceci 1996 cor de rosa com cesto de palha na frente e armação de bagageiro atrás, as rodas grandes aro 29 e o guidão com uma campainha e espelhos retrovisores.
— Feliz aniversário! — gritou Sandara abrindo um sorriso.
— É... É pra mim? — Edmundo já sentia a água invadir os olhos.
— Sim, era de menina então é rosa, mas eu vou comprar umas latas de spray de outra cor e pinto ela pra você.
— Deixe de gastar mais dinheiro — Mãe enobaria pôs as mãos na cintura do jeito que fazia quando estava dividida entre ficar contente ou bronquiada — Edmundo é homem o suficiente pra pedalar com ela rosa assim mesmo, não é?
— Sim, sou sim! — Edmundo avançou na bicicleta ja passando a mão pelos canos do quadro com certo ar de incredulidade em ter algo tão precioso só para si.
— É grandona...
— É... é bicicleta de adulto, mas você consegue andar nela sim, é só pegar o jeito.
— E vai poder usar desde agora até quando grande. — Mãe Enobária comentou.
— Agora eu vou te ensinar a andar nela, vamos lá pra rua. — Sandara disse mas antes que pudesse se virar para sair foi interrompido pelos braços finos do menino que o abraçaram pela cintura.
— Obrigado Sandara, eu gostei muito.
— Vão logo, ensine ele a pedalar, logo mais ja sei quem vai no centro da cidade levar minhas cartas pro correio! — Mãe Enobária riu admirada da felicidade do filho.

☆II
— Ei! Ta me ouvindo? — Tanya bateu a mão na mesa com força.
— Hã? O que é? — Edmundo despertou do devaneio, tinha estado período em pensamentos por minutos inteiros.
— Tava sonhando acordado de novo? Qual foi?
— Desculpe, to com sono.

Os três estavam sentados a mesa mesmo ja sendo quase três da madrugada, após o fim da festa comeram o Ajeun da casa de Zeniba mas ainda tinham fome portanto quando chegaram a rua de casa e ouviram o motoboy gritando "pizza de dez"  não tiveram dúvidas e compraram duas, agoram estavam a mesa totalmente empanzinados.
— É calne de cacholo. — Meli disse enquanto empurrava para longe uma fatia de pizza de carne moída com expressão de nojo e apanhava uma queijo.
— Pizza de carne moída... eu nunca tinha visto nisso na minha vida... mas pelo preço valhe a pena. — Edmundo apanhou um pedaço e deu uma mordida.
— Você ouviu o que eu disse? — Tanya perguntou.
— hum... Não, o quê? — a mente de Edmundo ainda estava na lembrança da bicicleta.
— Edmundo seu sei no que está pensando, mas pare já com isso. Lembre daquilo e ponha os pés no chão. — Tanya apontou para a parede da cozinha atrás de Meli, ali estavam pendurados na parede uma série de porta-retrados com fotos de toda a família que um dia habitou aquela casa.
Edmundo fitou principalmente as fotografias de Jacqueline e Toni, dois de seus irmãos os quais ele acabara de ver em seu pensamento, viu nas fotos os dois sorrindo, puxou na mente as lembranças, Toni encarapitado em uma escada de madeira pendurando bandeirinhas no teto do salão do terreiro, Jacqueline em seu quarto sentada no chão pintando as unhas do pé de esmalte vermelho, em seguida a outra lembrança o atingiu em cheio, ele no necrotério junto ao perito, as gavetas sendo abertas e o homem perguntando "reconhece essa mulher?", e Tiago vendo Jacqueline ali, a pele acinzentada, o rosto imóvel e a marca do golpe de facão no pescoço, em seguida a mesma pergunta e outra gaveta sendo aberta, Toni estava nela, os olhos abertos fitando o nada. Edmundo imediatamente limpou a mente de qualquer lembrança afetuosa a respeito de Sandara, ele era o responsável por tudo aquilo, não havia condição de oferecer a memória de Sandara qualquer amor, apenas ódio.
— Ah que horror, tinha mesmo de me fazer pensar nisso?
— Agora preste atenção em mim. — Tanya pediu.
— Sim, diga. — Edmundo piscou os olhos repetidas vezes.
— Meli não esta bem. Olhe pra ela.

Ele olhou para irmã sentada ao lado, Meli tinha grandes olheiras roxas se formando sob os olhos, os lábios um tanto esbranquiçados.
— Meli? — Edmundo se ergueu da cadeira e foi até ela pousando uma mão na testa da garota. — Você está se sentindo bem?
— Sim... só canchada. — Meli respondeu de boca cheia.
— Está com febre? — Tanya quis saber.
— Um pouco. — Edmundo respondeu.
— Ai ai, de novo... Meli seja sincera, você fez aquela coisa? — Tanya perguntou.
Meli deu de ombros.
— Fez? — Edmundo perguntou mas foi ignorado.
— Ah sim, ela fez. — Tanya se inclinou sobre a mesa encarando a menina.
— Amélia! Você sabe que não pode fazer aquilo, se alguém ver podem fazer mal a você, além do mas isso te deixa doente.
— Mais... É água, Meli só uso a água dela. — Meli respondeu despreocupada — E Ningué viu nada.
— É por isso que demorou tanto quando foi ao banheiro? Estava manipulando água do lavatório como fez aqui em casa outro dia? — Tanya perguntou.
— É. — Meli mentiu.

Meli tinha esse dom, manipulava a água como bem queria, na verdade todos os filhos de mãe Enobária tinham dons especiais, Edmundo diversas vezes havia se perguntando se a mãe adotava as crianças apenas por esse fato, por elas terem habilidades. Enobária explicava esses dons com uma história, contava que os Orixás, os grandes Deuses da Africa, haviam cometido um erro muito grave milênios atrás. O Deus maior criador dos Orixás era Olodumare, ele queria que todos os deuses de seu séquito fossem cuidadores da fatia da raça humana que ele havia criado, mas os Orixás não entendiam o ser humano, eles eram divinos e extremamente elevados e assim não tinham a capacidade de ter quaisquer empatia com os mortais. Para resolver isto Olodumare fez com todos eles descessem do mundo divino e encarnassem em corpos humanos por um período afim de servir de aprendizado, então se criava ali os chamados *Ibu* que são as encarnações humanas dos Deuses. Quando um Orixá era enviado para viver como gente de carne e osso ele sofria de todos os efeitos humanos, tinha sentimentos, defeitos, tinha tudo que uma pessoa normal tem. Mas Olodumare não havia previsto o que aconteceria a seguir, quando os Orixás estavam em forma humana eles se apaixonaram e coabitaram com outros humanos comuns gerando frutos, filhos. A princípio as crianças pareciam absolutamente normais, e realmente eram, mas após os Orixá voltarem para o *Orun*, alguns de seus descendentes manifestaram dons herdados deles. Era bem raro, para falar a verdade a manifestação dos dons pulava varias gerações dentro de uma mesma linhagem até que um dos descendentes fosse contemplado.
Com o advento da escravidão muitos dos descendentes dos Orixás vieram para o Brasil, aqui suas linhagens perderam  a identidade, os herdeiros do gene divino já não sabiam que eram desta ramificação, alguns nem sequer conheciam os nomes dos Orixás a quais descendiam, mas isso não impediu que os dons se manifestassem. Meli era uma senhora da Água, Enobária através do oráculo sagrado *Merindilogun* soube que o sangue que corria nas veias de Meli havia sido herdado de uma das encarnações antigas da Deusa Yemanjá, Meli era uma de suas herdeiras agraciada com aquele poder.
Mas não era bom usar isto se não houvesse prática, e Meli não tinha um mestre, não tinha mais Enobária para lhe ensinar como controlar o poder, nisso usar aquilo invés de ser benéfico se tornava perigoso e prejudicial para a própria Meli.

Edmundo também tinha seus dons, dois dons para ser exato, dois poderes herdados de uma mulher que vivera a dois mil e seiscentos anos atrás na África, uma mulher humana que havia sido encarnação da deusa Oxum, mas ele já não recorria a esses poderes se pudesse evitar, só os usava quando era com a intenção de ajudar uma das poucas pessoas que amava.
— Meli vá escovar os dentes e vá para cama, você precisa dormir. — ele pediu com gentileza.
— No quelo, quelo vê televizon. — o tom de meli era estridente.
— Essa hora? Não tem nada passando na TV. — ele respondeu.
— No quelo! — Meli bateu as duas mãos na mesa fazendo os tres copos de refrigerante dispostos ali explodirem em uma chuva de vidro moido e liquido escuro para todos os lados.
Isso acontecia muito, Meli ficava estressada logo que usava seu dom, podia ficar instável após isso se não tivesse o devido repouso.
— Porra! Me sujou toda Meli! E quem vai limpar essa cozinha agora? — Tanya se revoltou.
— No quelo sabê. — Meli fez uma careta.
— Melhor controlar esse diabinho antes que faça a casa inundar de novo. — Tanya falou.
Edmundo inclinou o corpo até seus lábios ficarem tão próximos ao ouvido da irmã que roçaram na pele suave da orelha, sua voz assumiu um tom duplo como se duas pessoas falassem através de suas cordas vocais.

— Amélia, mo paṣẹ, gbọràn si mi.
(Amélia, lhe dei uma ordem, me obedeça.)

Meli imediatamente ficou em pé, saiu caminhando a passos robóticos pela cozinha e desapareceu no corredor, ele e Tanya ficaram em silêncio até ouvir ao longe a torneira da pia do banheiro ser ligada e o som de escovação de dentes.
Ali estava manifestado um dos dons de Edmundo, a voz de Oxum que podia manipular as pessoas.

☆III
Sábado de manhã era dia de faxina no terreiro Ilê Axé Omobirin Ejo, após a festa de Oxalá na noite passada Zeniba se ocupava de lavar uma pilha gigantesca de pratos na cozinha enquanto seus filhos de santo se ocupavam de outras limpezas, então uma dos rapazes da casa foi até ela.
— Oxi mãe, veja isso que doidice. — ele estendeu a mão com um pedaço de metal alaranjado e esfarelento na palma.
— Que é isso? — Zeniba olhou sem entender.
— Oxi, eu tava la fora levando os sacos de lixo pro reservado quando vi aquele quartinho dos fundos de porta aberta, fui até lá e a fechadura que a senhora mandou trocar mês passado tava toda escangalhada de ferrugem, estourada.

As mãos de Zeniba afrouxaram deixando um prato cair e se espatifar no chão.
— Você quer dizer... meu quartinho? Meu quartinho que uso de depósito?
— Sim, lá no fundo. — o rapaz olhou para o chão assustado com os cacos de vidro.

Zeniba saiu correndo enquanto limpava as mãos ensaboadas na saia, ao chegar no fundo da casa viu a cena, a porta aberta e a fechadura nova em folha corroída por ferrugem como se houvesse sido submersa em água salgada por uma década.
Alguns de seus filhos se aproximaram mas ela não quis saber de gente perto, mandou se afastarem e entrou no quarto. O coração acelerou quando viu o alçapão aberto, aquilo era impossível, ela bem se lembrava de ter lacrado a porta no chão com feitiço na língua das serpentes, e ela era a unica filha de *Yewá* da região que sabia falar a língua.
Se ajoelhou diante do alçapão e o examinou, dos varios itens preciosos guardados ali apenas um havia desaparecido, o maior dos embrulhos. Zeniba olhou para trás para ter certeza que não havia ninguém bisbilhotando e ao perceber que estava segura se baixou deixando o queixo rente a abertura do alçapão, fechou os olhos e pôs a língua para fora, porém a língua que saiu de sua boca não era a sua humana, uma língua fina e bifurcada de serpente se moveu sinuosa por entre os lábios. Serpentes eram naturalmente cegas, era através dos sensores da língua que enxergavam, bastou alguns segundos para Zeniba captar o que queria, um rastro.
Recolheu a língua para dentro da boca e abriu os olhos confusa, como podia ser? A magia usada para desfazer o feitiço que selava o alçapão partiu de uma energia similar a dela mesma. Mas... como ela poderia ter feito isso? Tinha certeza de não ter tocado naquela porta pelos últimos trinta dias.
Então seus olhos se arregalaram e ela murmurou para si mesma.
— Não pode ser...

☆IV
Meli acordou com o sol batendo no rosto, já acordou desgostosa pois sabia que para o sol chegar aquela altura era porque já passava das nove e ela como boa madrugadora que era odiava acordar tarde. Ficou me pé em um salto mas antes de dar um único passo no quarto sentiu enroscar no pé a alça da bolsa de pano.
— Ô mo deus... — Ela se inclinou cheia de remorso, apanhou a bolsa no chão e retirou de dentro a boneca.
Havia se esquecido dela lá, e imediatamente se sentiu rancorosa por Edmundo ter-lhe feito dormir contra vontade.
Colocou a boneca sentada sobre a cama e então percebeu o segundo volume dentro da bolsa, o apanhou e observou com cuidado, era um chifre de búfalo e isso ela tinha certeza, mas era um chifre diferente, tinha um metal na ponta mais fina como um canutilho e na ponta mais larga outra borda de metal, a cor era laranja e ela sabia bem que metal era aquele.
— Coble... — ela bateu a ponta da unha no cobre.
— Amélia, cuidado com isso.
Meli olhou para a boneca e perguntou:
— Que é isso?
A boneca fez silêncio por alguns segundos mas depois começou a explicar.
— Se lembra da lenda de Oyá ter se casado com Ogun?
Meli conhecia a lenda, ja havia ouvido Zeniba contar ela mais de uma vez, lembrava bem do início mas não do fim.
— Oyá se tlansfolma em búfalo e Ogun vê, e fala pa ela casa ou ele vai conta pá tooodo mundo.
— Sim, mas se lembra de todos os detalhes da lenda?
— No...
A boneca emitiu um som chiado de aborrecimento e então começou a contar:
— Ogun, o grande guerreiro, estava na mata caçando quando avistou ao longe um grande búfalo negro. Ao se aproximar viu algo fantástico, o búfalo murchar perdendo tamanho e em seu lugar surgir uma linda mulher vestida com uma capa de couro de búfalo. Ogun observa a mulher esconder o couro no tronco oco de uma arvore e sair de lá rumo a cidade, então ele vai até a árvore e apanha o couro do búfalo e esconde. Quando ela voltou e percebeu que seu couro havia desaparecido ficou furiosa, então Ogun se aproximou e revelou que ele havia escondido a peça e que só devolveria se ela aceitasse casar com ele. Oyá sem alternativa aceitou mas impôs a condição de que Ogun jamais revelasse a alguém o que ela era. Ogun era casado com outras mulheres e elas ficaram cheias de ciúmes quando Oyá se juntou a família pois ela teve muitos filhos. Todos os dias perguntavam a Ogun qual era a origem de Oyá mas ele nunca revelava, não dizia palavra. Uma noite as esposas deram bebidas para Ogun e ele logo ficou bêbado, no auge da embriaguez acabou por revelar que Oyá era uma mulher búfalo. As esposas de Ogun passaram a ofender Oyá a com insultos sobre a forma animal que ela podia assumir. Quando Ogun estava ausente Oyá vasculhou toda a casa e acabou por encontrar a pele de búfalo, a vestiu e assim se transformou novamente no grande animal. Com a forma de bufalo ela investiu contra as mulheres que lhe ofenderam as matando imediatamente. Como Ogun havia revelado o segredo, o casamento estava automaticamente desfeito, Oyá decidiu partir sozinha para a floresta, mas antes de ir entregou a seus filhos um chifre de búfalo. Se eles estivessem em perigo deveriam soprar o chifre como uma trompa e imediatamente seriam levados até a mãe.
— Bonita histolia... Meli respondeu sonhadora.
— Não é uma história qualquer, é um fato, algo que realmente aconteceu.
— De veldade?
— Sim, isso que você tem nas mãos é o Ajawofon.
— Aja... ofon?
— Sim, busque na mente o que significa. — a boneca pediu.
Meli fechou os olhos e seu cérebro juntou as peças traduzindo cada termo.
— Aja... Iwo... Efon... isso é colneta di chifle di búfalo.
— Isso Amélia, exatamente isso.
— Ah! É a da histolia? É o chifle dos filos de Oyá?
— Sim, é uma peça extremamente poderosa que pode levar as pessoas desse mundo para o outro. Eu preciso de algo que está no outro mundo, na terra dos Orixás.
— Plecisa? Poquê?
— Para ser restaurada a minha forma antiga.
— Volta a sê gente? — Meli sussurrou.
— Sim.  Amélia eu preciso que sopre o chifre.
— Agola?
— Espere, segure a minha mão.
Meli agarrou a mão dura da boneca.
— Agola?
— Sim, agora!

Meli aproximou o chifre dos lábios, encheu os pulmões de ar e estava pronta para soprar mas parou quando ouviu o berro.
— Não! Não faça isso!

Meli olhou para a porta do quarto e viu Zeniba ali parada ofegando com as mãos estendidas para o chifre.
— Assopre! Assopre Amélia! — a voz da boneca ordenou.
Mas não houve como, Zeniba arrancou o chifre da mão da garota com uma velocidade sobre humana.

— O que está acontecendo aqui?! — Tanya entrou no quarto — Como você? Quem abriu a porta pra você Zeniba?
— Não interessa! Eu vim pegar isso de volta, Meli roubou de minha casa ontem a noite. — ela mostrou o chifre.
— Roubou? Edmundo corre aqui! — Tanya colocou a cabeça na janela e gritou, em segundos o rapaz entrou no quarto.
— Eu só quero o que é meu. — Zeniba falou entre os dentes.
— Vamos resolver isso já. — Tanya avisou.
— Que gritaria é essa... Zeniba? O quê ? O quê ta acontecendo aqui?
— Nada. Eu apenas vim pegar de volta esse chifre que Meli pegou da minha casa ontem.
— Pegou? — ele ergueu as sobrancelhas.
— Não,  ela disse que Meli roubou. — Tanya completou.
— Meli é verdade isso? — Edmundo olhou para a irmã.
— Sim, mais...
— Sim? Você roubou a casa de Zeniba Meli? Porque fez isso?
— No é cupa mia! — Meli cruzou os braços.
— Explique. — Tanya ordenou.
— A bonitia mandou eu pega, enton peguei...
— Bonitinha? Quem é essa? — Zeniba perguntou.
— É a boneca dela. — disse Tanya.
— A voz... ouvi uma voz quando entrei no quarto... Eu posso ver essa boneca? — Zeniba pediu.
Meli apanhou a boneca sobre a cama e a escondeu nas costas.
— Tem algo de errado com essa boneca. — Zeniba afirmou.
— Errado? Que bobagem, é só uma boneca. — Edmundo retrucou.
— Não, eu ja disse várias vezes que ela é estranha — Tanya interveio — Deixe Zeniba examinar, não custa nada.
— No! No! Ela vai machuca a bonitia! — Meli berrou dando um passo para trás.
— Que besteirada! — Edmundo avançou e arrancou a boneca das mãos de Meli que começou a berrar e chorar imediatamente — Tome aqui e tire logo suas duvidas, mas não a quebre, Meli gosta muito dela.

Zeniba estendeu a mão livre para apanhar a boneca mas recuou quando ouviu a voz berra estridente:
— Amelia ela é má! Ela vai me matar! Não deixe Amélia! Não deixe ela me machucar!

Todos olharam atonitos para a boneca, a voz tinha vindo de dentro dela.
— O que é isso!? — Edmundo soltou a boneca que caiu no chão.
— Sabia, eu sabia que era você sua desgraçada, deu um jeito de se enfiar ai não é? Deu um jeito de esconder sua alma na boneca não foi? Não foi?
— O quê? Você conhecê a boneca? — Tanya perguntou assombrada.
— Claro que conheço, só existe no universo uma única pessoa com a energia idêntica a minha, a minha irmã gêmea! É você Abifoluwa! É você!
— Abifoluwa? — Edmundo estranhou o nome.
— Sim, eu e ela temos nomes antigos, nomes pelos quais eramos conhecidas muito tempo atrás na África, mas quando viemos para esse país mudamos de nome, eu me tornei Zeniba e Abifoluwa se tornou... Enobária! — ela começou a se abaixar para apanhar a boneca do chão.

Meli arregalou os olhos e berrou:
— Dexa mia mãe em PAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAZ!

Enobaria se ergueu rapidamente ouvindo estalos, havia algo se movendo dentro da parede, não houve tempo de se proteger, um cano de agua de mais de dois metros se moveu estourando o concreto e abrindo um rombo na parede, Tanya se abaixou a tempo para se esquivar dos destroços mas o cano se rompeu e um jato de água Grosso e tão potente quanto uma mangueira de bombeiro atingiu Zeniba bem no peito a arremessando para trás, o corpo da mulher bateu contra a parede a fazendo cair sentada desacordada.
— Meli! Meli o que você fez! — Tanya agarrou o calcanhar de Meli que ja se esticava pelo chão para agarrar o chifre que agora jazia caido a menos de um metro e meio.
— Amélia! Pare já com essa água! — Edmundo foi até ela e a segurou pelos ombros.
Meli se desvencilhou, agora tinha o chifre em uma mão e ja havia recuperado a boneca com a outra.
— Meli se acalme! — Edmundo pediu, a agua estava a inundar o cômodo.
— É a boneca que a está deixando assim! — Tanya gritou.
Meli sentiu as mãos do irmão tocando seu braço tentando arrancar a boneca e em seguida as mãos de Tanya a puxando para trás pelas pernas.
— Agora Amélia! Assopre! — a boneca ordenou.
Meli puxou uma quantidade grande de ar para os pulmões e levou o chifre a boca.

FOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOON!

O som da trompa de chifre soou como se fosse ligada a um amplificador, a vibração e o volume foram tão grandes que todo o que quarto chacoalhou por alguns instantes, o que se seguiu após isso foi um silêncio absoluto.

Zeniba abriu os olhos, havia já um palmo de água cobrindo suas pernas, ela olhou em volta a procura dos três residentes daquela casa mas não encontrou nada, os três haviam desaparecido.
— Ha não... em nomes dos quatrocentos *imolés*... não pode ser! — ela bateu os punhos na água furiosa ao perceber o que havia acontecido, os três já não estavam mais neste mundo  e sim em outro.



📚Glossário:
1. Ibú: significa "profundo" ou "submerso" em Yoruba.
2. Orun: nome dados aos mundos celestes onde os Orixás habitam.
3. Merindilogun: significado "dezesseis" em Yoruba, é um dos nomes antigos do jogo de Búzios.
4. Yewá: Orixá das serpentes e da beleza feminina, deusa de um rio africano do mesmo nome.
5. Imolé: outra maneira de se referir a orixás, significa literalmente "ser de luz".

Comentários

  1. Eu imagino a Meli toda bonitinha de franjinha da vontade de apertar! ❤

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  2. Como eu amo! Eu fico até impressionada com sua sabedoria sobre os orixas, fico assim pensando como você sabe tanto das histórias.. pronto agora búfalo sandara é meu favorito. ��

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    1. Muito obrigado, nessa historia no meio da ficção trarei varias informações relevantes sobre os Orixás, fique ligada.

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  3. Eu não consigo parar de ler, socorro... Vc tem livros lançados?

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