Lucifer Smeraldina Cap. 14
Lucifer Smeraldina
Capítulo 14
"Elis Regina"
Dizem que é doce sonhar. Bom, nem sempre.
Após um dia cheio de romance Tiago adormeceu nos braços de Lucifer, naquela cama tão macia ele caiu no em sono pesado que o transportou para um sonho, ele se viu criança, voltou a ser o garoto ranhento que foi quando tinha entre seis e sete anos de idade, ele e um Júlio gorducho com bochechas rosadas empurravam Danusa do balanço da pracinha do bairro, ela um tanto maior por ser mais velha ria enquanto a força combinada dos dois meninos a levava as alturas.
— Quando vai ser minha vez? — Júlio perguntou.
— Quando eu disser que é! Eu sou mais velha, mamãe disse que vocês tem de me obedecer!
— Deixa a gente balançar Danusa! — Tiago exigiu.
— Não! Ha!
— Isso não é justo! — Júlio reclamou.
— Eu não ligo! — Danusa gargalhou.
Tiago olhou para as costas da irmã com furia, o desejo que tinha era de retalhar a carne, rasgar a barriga dela e encher aos mãos com as vísceras quentes, ouvir ela berrar, saborear os espasmos de dor que o corpo de um torturado apresenta, sentir o cheiro do sangue, ah sim aquele cheiro de ferrugem, ver a areia daquele jardim se tingir de vermelho, ver a luz nos olhos dela se apagar quando a morte tomasse conta do corpo frio.
Mas então ele respirou fundo e se afastou do balanço.
— O que é isso? Eu nunca tive esses pensamentos... ainda mais com minha irmã.
Um leve zumbido atingiu seus ouvidos, quando olhou para Danusa novamente o balanço estava parado no ar, congelado, Júlio também imóvel ainda mantinha os bracinhos esticados no gesto que empurrar a cadeirinha do balanço.
— Você não gosta de sentir meus desejos dentro do seu coração? — uma outra voz infantil falou.
Tiago olhou em volta e próximo a ele sentada sozinha em uma gangorra estava uma menina loura de olhos verdes também aparentando ter seis ou sete anos, ela usava uma fantasia de anjo com asas de plumas artificiais penduradas nas costas e uma auréola de plástico sobre a cabeça.
— Eu to sonhando ou é você de verdade? — Tiago perguntou se aproximando.
— Você está sonhando sim, mas sou eu de verdade. Muito prazer Tiago, até que enfim nos conhecemos. Venha, vamos brincar juntos.
Tiago sentou na outra ponta da angorra, Smeralda deu impulso e eles começaram a balançar.
— Você é má.
— Tudo vai do ponto de vista, na verdade...
— Não perguntei, afirmei. Você é má.
— Está com medo?
— Medo de você?
— Sim.
— Sim e não.
— E de onde veio esse "não"?
— Você nunca se apresentou antes para nenhuma outra encarnação, eu não sei como explicar mas sei disso. O fato de você estar aqui na minha frente é sinal de que também tem medo de mim.
— Eu? ter medo de você? Você é minha face humana, só isso.
— Só isso não, eu sou a face humana, eu sou tudo isso. E não menospreze a humanidade, aqui dentro do meu corpo você e eu temos o mesmo nível de força, você não pode me fazer mal.
— E como chegou a essa conclusão?
— Simples, se pudesse me machucar já teria feito isso.
— Sim. Parabéns, você é mais esperto do que eu pensava.
— Que estranho. — ele a observou enquanto subiam e desciam no ar.
— Eu sou estranha?
— Também, mas me referia as sensações que estou tendo aqui na sua frente. Alguma coisa deu muito errado pra você, não era para nós coexistirmos aqui dentro, era para ser ou eu ou você. Nós já falamos disso antes, já conversamos intensamente sobre isso, só que eu não me lembro quando nem o conteúdo da conversa.
— Almas são sempre um mistério. Nós não temos muito tempo, me diga, está se sentindo diferente?
— Diferente? — ele inclinou a cabeça curioso.
— Sim, mais centrado e direto. Lá fora você é uma cadelinha abanando o rabo para o meu marido, mas aqui está normal. Você não tinha percebido que suas reações diante de Lucifer estão desajustadas?
— Desajustadas? Do que está falando?
— Disto. — Ela apontou um dedo gordinho para o céu.
Tiago ergueu a cabeça e o que viu não foram nuvens nem sol, acima deles estava um coração gigantesco acoplado a um domo de carne vermelha, o coração pulsando, as veias que saiam dele eram roxas como se carregassem tinta invés de sangue.
— É o meu coração? — Ele perguntou.
— Nosso, é o nosso coração.
— O que é isso roxo que esta misturado ao sangue?
— Isso são as poções que aquela vagabunda chamada Drusila Ucobach vem misturando a sua comida, na sua bebida e borrifado em suas roupas.
— O quê ? Eu estou sendo enfeitiçado?
— Obviamente, você tem sido "adoçado" para ceder a Lucifer.
— Eu... Então é por isso? Por isso eu fui tomado de uma paixão repentina por ele?
— Mas é claro, você não sabe do que ele é capaz.
— Sabe o que é estranho? Eu meio que ja sabia. — Tiago mostrou calma e conformidade.
— Quer que eu te ensine a quebrar o feitiço? Com a minha alma junta a sua você pode usar um pouco da minha magia.
— Minha alma junto da sua? Falou como se fossem duas almas separadas.
— E são, você carrega a minha alma, mas tem a sua, por isso nós estamos aqui falando de frente um para o outro, somos dois indivíduos Tiago e você e eu ja pelejamos muito antes do seu Nascimento por conta disso.
— E como isso aconteceu? Porque tem duas almas neste corpo? Porque meu cabelo está ficando loiro?
— São anomalias, não se preocupe com o que não pode resolver. Mas reponda a minha pergunta, quer que eu te ensine a quebrar o feitiço de Drusila?
— Sim.
— Pare de comer, beba só a agua do chuveiro quando tomar banho.
— A solução é passar fome?
— É.
— Mas eu vou morrer de inanição!
— Eu moro neste corpo assim como você, também vai doer em mim isso de passar fome mas é o único jeito, vou enviar meu poder para te manter vivo, não tenho interesse em morrer uma trigésima setima vez, você e eu vamos sobreviver ao inferno.
II
Karen espreguiçou esticando os braços, caminhou até o final do jardim e sentou no primeiro degrau da gigantesca escadaria de pedra, o céu estava lindo, aquele entardecer alaranjado com feixes de luz atravessando as folhagens das árvores,ela tirou o maço de cigarros do bolso, pobre derby azul todo amassado, bateu o maço na palma da mão até um cigarro torto cair, colocou entre os dedos lambeu a ponta fazendo acender tal qual um acendedor automotivo, girou o cigarro e colocou o filtro entre os labio, ela só fumava quando estava muito nervosa ou simplesmente feliz, e naquele momento ela estava exultante. Deu um trago no cigarro e então reparou na mão que o segurava, ela mantinha o cigarro entre os dedos indicador e médio, o que chamou sua atenção foi o fato dos dedos estarem vermelhos, totalmente cobertos de sangue. Ela olhou para o colo e viu que seu vestido cor de areia e suas pernas carecidas de depilação também estavam salpicados de vermelho.
— Por todos os santos... que loucura...
Sete meses morando com Ubabaya, sete meses no purgatório.
A velha era muito inteligente sim mas extremamente desagradável, as histórias que Karen ouvira na infância pareciam se tratar de outra pessoa, não daquela velhota arrogante.
Ubabaya passou todo o tempo xingando e menosprezando a origem Latina de Karen, frases como "não é porque você é brasileira que tem que agir feito uma vadia" ou "demora pra aprender pois gente da sua terra pensa com a vagina" eram ouvidas por Karen todos os dias.
Aprender com a velha foi difícil, principalmente porque ela não tinha intenção de ensinar tudo o que sabia, apenas passava noções superficiais sobre a magia antiga, era mais do que claro que a velha protelava ensinar para manter a companhia final durante todo aquele tempo ela não recebeu uma única visita, não havia ninguém no mundo que gostasse de Ubabaya.
Ficou claro para Karen que o declínio da grande feiticeira veio por simplesmente deixar de ser necessária.
Karen é uma boa pessoa, mas até certo ponto. Bruxas são bruxas, e ninguém é chamada de bruxa por ser a Madre Teresa de Calcutá.
A maldita velha a fazia limpar a casa, cuidar dos animais, ir fazer compras na cidade, buscar agua no poço, acordar todos os dias as cinco da manhã e ir dormir após a meia noite... era praticamente uma escrava.
Sete meses, quase oito.
Naquela manhã ela acordou dolorida por ter passado mais uma noite em um colchão de palha no chão da lavanderia, fez o alongamento matinal e logo partiu pois tinha serviço a fazer, lavou o rosto com a água fria de um balde, apanhou a sacola de palha e desceu toda a escadaria de pedra até chegar ao torii, passou a trilha e foi para a cidade comprar os mantimentos da semana.
O povo a olhava torto, estrangeiros não eram comuns na região. Quando entrou na feira pública ela se encaminhou até a barraca de peixes mas antes que o odor dos frutos do mar pudessem alcançar seu nariz ela sentiu outro cheiro, não um cheiro putrido como o habitual da espécie mas ainda assim desagradável e característico de um demônio.
— Karen... — chamou Ferrabraz do outro lado da barraca trabalhando como se fosse um peixeiro.
Ela focalizou a figura dele, alto, magro, palido com a face encovada, olhos verdes acinzentados, o cabelo solto caindo cumprido sobre os ombros, vestia uma regata preta com o rosto de Frida Kahlo estampado, bermudas jeans e chinelos de Borracha, tinha uma escova de pregos na mão com a qual removia as escamas de um grande peixe em cima de uma mesa de madeira imunda.
— O que foi demônio? Aconteceu alguma coisa?
— Já fazem quase sete meses Karen, até agora nada? Não aprendeu o suficiente?
— Hum... Ubabaya é resistente em ensinar.
— Ahavael anda meio tenso com sua demora.
— Não é minha culpa, e eles não deviam ter te mandado aqui me apressar, eu não demoro por que quero.
— Ninguém me mandou aqui, eles não sabem que vim.
— Não sabem? Então o que você quer de mim?
— Quero ajudar.
— Demônios nunca ajudam.
— Mentira, não foi Asmodeus que ensinou a Salomão a magia? Não foi Samyaza que ensinou os segredos para as feiticeiras? Minha espécie tem um longo histórico em serviço social. — Ele zombou.
— Não estou para arruelas, se tem algo a dizer diga de uma só vez.
Ele parou de descamar o peixe e a encarou com os olhos semicerrados.
— Quero saber se tem coragem Karen, o tempo está passando e é hora de ter coragem.
— Onde quer chegar com esse papinho mole? Coragem? Está de brincadeira?
— Eu sei como fazer você aprender tudo o que Ubabaya sabe, absolutamente tudo, cada magia que ela já realizou, presenciou ou inventou.
— Tudo? Ela nunca abriria cem por cento de seus segredos, é impossível.
— Ela abrirá sim, mas não voluntariamente.
— Do que está falando?
Ferrabraz virou o peixe para descamar do outro lado e vou a atividade.
— Eu sou um demônio Karen, não esqueça disso. Você se lembra o que demônios fazem?
— Não ouse mencionar meu passado.
— Ouso, ouso Karen pois esse é o ponto, você tem de lembrar. Os demônios conseguiram fazer atrocidades contigo mesmo você sendo uma bruxa. Entende onde quero chegar?
— Não.
— Demônios do nível mais baixo barbarizaram você. Eu sou um demônio do nível mais alto, posso fazer o mesmo com a maldita velha, mas só se você me ajudar a te ajudar.
— Quer que eu te ajude a torturar Ubabaya? Está louco?
— Torturar não, seria divertido mas não temos tempo para brincar, o foco ainda é um só, você tem de aprender o que ela sabe.
— Continue.
— Leve esse peixe e faça para o almoço.
— Está envenenado?
Ferrabraz afundou o peixe em uma tina com água e gelo, o sacudiu e enrolou em jornal.
— Sim, mas não é veneno para matar, a barreira invisível que a velha firmou em torno da montanha repele qualquer arte demoníaca profunda.
— Então o que vai acontecer? — Karen apanhou o peixe e enfiou em sua sacola de palha.
— O veneno deste peixe é sangue de que ainda está nele, é um dos peixes do mar do Deus Varuna.
— Mas não é veneno, isso ai faz bruxas perderem os poderes por um unico dia, acredito que vai fazer Ubabaya perder os poderes por meia hora no máximo.
— Meia hora basta. — Ele moveu os lábios cochichando para tudo o que deveria fazer depois.
Karen arregalou os olhos ao ouvir mas não recusou o peixe, recuou de um modo desordenado e se foi, ficou pensativa em todo o caminho de volta para a casa, sua mente que já não era totalmente sã entrou em parafuso na negativa constante em fazer aquilo que Ferrabraz havia proposto e a cada passo ia falando sozinh, soltava frases como se estivesse dialogando consigo mesma.
— Ele falou para fazer... Mas ele não... isso é maldade, é sujo... mas ela merece, ela não é um cordeirinho inocente... mas você vai fazer? Eu nao sei... e agora? Faça! Vai ser a primeira vez... você consegue, consegue sim! Mas vão saber? Não ninguém vai saber... nunca vão saber.
Chegando lá a velha estava sentada no meio do jardim tomando sol enquanto gingava na cadeira de balanço fazendo o maldito tricô do qual nunca abria mão.
— Demorou porque? Levantou a saia pra algum feirante e se esqueceu da hora do almoço? Preguiçosa.
Karen suspirou fundo, olhou para a velha com tanto nojo que a decisão foi firmada em sua mente, ela entrou na casa enquanto a velha ria.
Sobre uma taboa de madeira ela cortou o peixe, abriu, limpou, removeu os espinhos e cortou em postas, colocou mais lenha no fogão e preparou tudo com todo o cuidado.
Quando o almoço ficou pronto Ubabaya foi para a cozinha, se sentou, abriu a panela de barro que estava no centro da mesa e se deparou com o caldo vermelho.
— Ensopado de tambaqui! Até que enfim fez algo que preste heim, eu amo esse peixe.
Karen sentou ao lado dela e também serviu ensopado no proprio prato, porém não comeu nada.
Ubabaya levou aos labios a primeira colherada e sorveu o líquido grosso misto as lascas de peixe, engoliu tudo muito satisfeita com o gosto. Na terceira colherada ela se impertigou.
— Ora essa, vou comer sozinha? Porque não está comendo? Está querendo perder peso para ganhar mais dinheiro na rua?
— Não, eu não como porque a comida está cheia de veneno. — Karen disse sorrindo.
Ubabaya riu e engoliu mais uma colherada cheia.
— Veneno aqui? Quem seria poderoso o suficiente para conseguir ultrapassar meus feitiços de proteção trazendo qualquer substância venenosa? Você? Uma putinha do Brasil? Tem magia defensiva em cada centímetro desta casa sua tola. — Ubabaya levou mais uma colherada até os labios.
— Eu não poderia burlar seus feitiços, mas o Deus Varuna pode.
Ubabaya deixou a colher escapar da mão a deixando cair na mesa.
— O quê? Um peixe de Varuna? Não existem mais peixes de Varuna no mar da Índia sua estúpida.
— Então use seus poderes sua puta escrota, use se acha que pode.
— Você me chamou do quê? — Ubabaya arregalou os olhos indignada e totalmente surpresa.
Karen se levantou e foi até o fogão a lenha, na parede ao lado estava o velho machado usado para cortar a lenha que não cabia no dispensorio do forno, ela fechou a mão sobre o cabo e o ergueu.
— Eu, Ubabaya Padmavathi, eu te chamei de puta escrota e te desafiei a usar os seus poderes, realmente não ouviu ou se acovardou diante do desafio?
Ubabaya ficou em pé revoltada fazendo a cadeira cair para trás, apontou um dedo ossudo para Karen franziu a testa, o que aconteceu foi uma leve faísca sair da ponta da unha e desaparecer no ar totalmente inofensiva.
— É só isso? — Karen debochou.
Ubabaya deu um passo para o lado e murmurou algumas palavras de encantamento, mas não surtiu efeito algum.
— Não pode ser... era mesmo um peixe Varuna... — Ela disse baixinho.
— Sim era. — Karen riu e deu um passo a diante.
Ubabaya se virou para a porta e correu, mas sua vitalidade vinha pela magia e agora sem os poderes ela mancou, suas pernas eram lentas e fracas, ela apoiou a mão no batente da porta para se manter em pé, então veio o som da batida e o grito de horror, Karen bateu a lâmina do machado sobre os dedos nodosos da velha os decepando os quatro de imediato.
— Minha mão! Minha mão! Sua desgraçada! Vai me pagar! Vai me pagar!
Com um ar lunático Karen, sabe-se-lá porque, começou a cantar Elis Regina.
— Não quero lhe falar meu graaaande amor... das coisas que aprendi nos discos...
— Pare! Pare com isso! — Ubabaya gritou desesperada enquanto mancava pela varanda com a louca em seu encalço.
— Quero lhe contar como eu vivi e tudo o que aconteceu comiiiigoooo! Viver é melhor que sonhar... — Karen bateu nas costas da velha com o lado sem corte do Machado a derrubando no chão.
Ubabaya começou a se arrastar deixando um rastro vermelho no piso.
— Por favor! Por favor! Eu... por favor!
— Eu sei que o amor é uma coisa boaaaa... Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida... De qualquer pessoaaaaaa! — Ela ergueu o machado acima da cabeça e o desceu com toda a força cravando a lamina no meio das costas de Ubabaya.
A velha gemeu de dor e terror, Karen apoiou o pé no pescoço da velha e puxou o machado de volta fazendo um jato de sangue espirrar para cima através do corte.
— Por iiiiiissssso cuidado, meu bem! Há perigo na esquinaaaa... Eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos joooooovens... — Ela chutou a cabeça da velha com toda a forca.
Ubabaya implorou com a boca ensanguentada:
— Eu te ensino, eu te ensino tudo! Dou minha palavra, faço um voto de honestidade, te ensino tudo o que quiser! Se você me matar... como vai prender o que precisa para salvar seu filho? Ele vai apodrecer no inferno sem os meus conhecimentos!
Karen ignorou totalmente a súplica e continuou a cantar.
— Paaaaaaara abraçar seu irmão e beijar sua menina... na rua... É que se fez o seu braço, o seu lábio, e a sua voz... — o machado desceu novamente, o corte limpo no pescoço fez a cabeça de Ubabaya rolar mais de um metro a frente.
Karen espreguiçou esticando os braços, desceu da varanda e caminhou até o final do jardim, sentou no primeiro degrau da gigantesca escadaria de pedra, tirou o maço de cigarros do bolso e acendeu um, ela só fumava quando estava muito nervosa ou simplesmente feliz, e naquele momento ela estava exultante. Deu um trago no cigarro e então reparou na mão que o segurava, ela mantinha o cigarro entre os dedos indicador e médio, o que chamou sua atenção foi o fato dos dedos estarem vermelhos, totalmente cobertos de sangue. Ela olhou para o colo e viu que seu vestido cor de areia e suas pernas carecidas de depilação também estavam salpicados de vermelho, então terminou a música.
— Você me peeergunta pela minha paixão, digo que estou encantada como uma nova invenção, eu vou ficar nesta cidade não vou voltar pro sertão, pois vejo vir vindo no vento o cheiro de nova estação, eu sei de tudo na ferida viva do meu coraçaaaaaaão...
Alguns degraus abaixo um clarão irrompeu e Ferrabraz se materializou, ergueu a cabeça e sorriu animado.
— Não tem mais barreiras, eu posso passar agora, a magia de Ubabaya... sumiu. Onde está a velha?
— Esta na varanda cochilando.
— Cochilando?
— Pelo menos a cabeça dela parecia estar sonolenta, o resto eu não sei.
Farrabraz gargalhou crente de que era uma piada, mas sua risada minguou quando olhou para Karen, ela mantinha os olhos fixos, vidrados em algum ponto do horizonte cantarolando a música com os lábios fechados.
— Karen? Está tudo bem?
— Bem? Bem? Quer saber se estou... bem?
— Sim.
— Eu degolei ela enquanto cantava Elis Regina. Porque eu fiz isso?
— Porque... gosta de MPB?
— Não, eu não sei porque, eu apenas entrei em piloto automático, completamente alucinada.
— Bom... Você é diferente Karen, só isso.
— Eu sou defeituosa. Todo mundo ri, diz que sou excêntrica, diferentona... acham graça... mas eu não gosto de ser assim.
— Eu te entendo.
—Não, não entende. Antes da sua espécie fazer o que fez comigo eu estava me preparando para começar a trabalhar na editora abril, sou formada em jornalismo pela faculdade Cásper Libero, mas não tive como excercer minha profissão pois depois da tortura fiquei assim. Eu podia ter matado Ubabaya com um golpe limpo e indolor, uma divisão na jugular e pronto, mas não, fiz um espetáculo. Porque eu sou assim? Se eu fizer o que tenho de fazer com o corpo dela... eu vou ficar curada?
Ferrabraz ficou calado por um momento mas achou melhor falar a verdade.
— Não. Eu vou fazer com que você absorva informações, aliás toda informação de Ubabaya, mas isso não vai alterar as suas características Karen.
— Vou ser desequilibrada pra sempre?
— Vai.
— Sua espécie é maldita.
— Não mais que a sua. Toda a maldade que os demônios fizeram com você é idêntica a que homens humanos fazem mulheres de sua própria espécie. Seus presídios são abarrotadas de assassinos, estupradores, pedofilos e sádicos, então pare de erguer o queixo para mim me julgando por ser o que sou, você também vem de uma casta imunda, além de ser humana ainda é bruxa, e sabemos que as maiores assassinas de crianças são justamente suas iguais Karen, não seja hipócrita. Eu não vou te tratar feito retardada nem ficar cheio de paciência, não estou aqui para ser paciente como sua filha é com você, eu estou aqui para ajudar Murilo, e você invés de estar sentada ai se lamentando por ser louca devia estar pronta para fazer o que deve ser feito e sair logo desse lugar.
— Você não é ninguém para falar comigo neste tom.
— Meça seu tom primeiro. Sabe o que está acontecendo neste exato momento? Seu filho está no inferno fazendo sexo com Lucifer, ele foi enfeitiçado para seder aos desejos dele.
— Você está mentindo! — Karen ficou em pé furiosa.
— Sabe como é se sentir sozinha no meio da crueldade? Tiago está sozinho. Ele precisa de uma mãe, e se a unica mãe que ele tem é uma mulher louca, então essa vai ter que servir.
Karen faz menção de retrucar mas preferiu apenas dar de ombros e seguir Ferrabraz até a varanda.
— É... você deixou a velha toda bagunçada. — ele apanhou a cabeça de Ubabaya e alcançou o machado.
— Ela realmente era lendária? Porque sendo sincera ela parecia só uma velha ranzinza.
— Até o mais hábil guerreiro desvanece se não tiver propósito. Ubabaya estava viva, se movendo e respirando porém já não tinha mais motivo de viver. Se fosse nos tempos em que ela estava no auge da glória você jamais a teria enganado, mas tudo neste universo tem fim, até os gigantes tropeçam no final. Vou precisar de dois pratos. — ele pediu.
Karen foi apanhar os pratos, Ferrabraz apoiou a cabeça decepada da velha no piso e deu um leve e preciso golpe na nuca, soltou o machado e inseriu os dois polegares na fissura feita, colocou pressão e o crânio estalou e se abriu tal qual a casca de um cocô, Karen colocou o prato de vidro queimado ao lado e nele foi depositado toda a massa encefálica, sim o cérebro. O mesmo processo concorreu no corpo da velha, com uma incisão certeira ele abriu o peito e removeu o coração e o depositou no segundo prato.
— Agora vamos lá pra dentro dar prosseguimento enquanto está tudo fresco.
Karen sentou a mesa com os dois órgãos dispostos diante de si.
— Eu não acredito que você vai me fazer comer isso...
— É o jeito, e infelizmente vai piorar um pouco. — Ele tirou do bolso um frasco de vidro com líquido transparente.
— O que é?
— Terebintina.
— Você vai por solvente de tinta? Vou comer carne humana com solvente de tinta! Isso está passando dos limites cara.
— Ser bruxa não é para amadores. — Ferrabraz colocou o frasco na mesa.
— De fato não é mesmo... mas e se o solvente me envenenar?
— É terebintina de casca de nogueira, dará auxílio a magia e não vai te fazer mal.
— Ai... que seja então, bora lá.
Ferrabraz entregou o garfo e a faca a ela, se sentou na cadeira da extremidade oposta, apoiou os cotovelos sobre a mesa e com as mãos fechadas diante do rosto ele berrou:
— Crveno!
Karen piscou e tudo ficou vermelho, toda a cozinha era vermelha agora, cada móvel, eletrodomésticos e utensílios pareciam ter sido tingidos, mas dessa vez ela não era vermelha, olhando para seus braços viu que sua pele era púrpura e a de Ferrabraz azul índigo.
— Porque só nós dois somos de cores diferentes? — ela perguntou.
— Essa magia é uma variação do "horror do demônio", ela serve para isolar e reconhecer o sobrenatural, como eu e você somos de uma categoria não natural para este mundo nossa cor é diferente. Agora observe os pratos.
Karen olhou para os dois pratos e ficou admirada com a cor dos órgãos, não eram na verdade de uma cor exata mas sim furta-cor, a cada segundo mudando a tonalidade cheios de luminescência.
— Incrível... o poder dela era tão massivo assim? — Karen se admirou.
— Maior do que você pode calcular.
— Posso começar?
— Sim. — Ferrabraz indicou e começou a rezar — Glavata i gradite cuvaat tajni sto ostanuvaat po smrtta, deka vo niv dominira liceto sto gi apsorbira, deka liceto sto gi apsorbira e apsolutno sreka da znae sto ne bilo dozvoleno porano, Glavata i gradite cuvaat tajni sto ostanuvaat po smrtta, deka vo niv dominira liceto sto gi apsorbira, deka liceto sto gi apsorbira e apsolutno sreka da znae sto ne bilo dozvoleno porano...
Karen abriu o frasco de terebintina, o cheiro de álcool de limpeza se espalhou no ar imediatamente, ela ensopou os dois órgãos e comecou a fatiar primeiramente o cérebro, levou um grande pedaço até a boca e mastigou brevemente.
— Tem gosto de moela de frango com vinagre.
Ferrabraz assentiu mas sem parar a reza que repetia incessantemente.
III
Murilo entrou na casa, sobre a mesa apenas os pratos vazios, ele caminhou até o quarto de Ubabaya e lá deitada sobre a cama estava Karen desacordada. Ferrabraz sentado em uma cadeira ao lado lia um livro enorme e desgastado apoiado no colo com ar de interesse.
— A leitura é boa? — Murilo perguntou.
— Sim, é uma versão escrita a mão por um monge da uma das primeiras eras, é o texto Vishnu-Sahasranama, muito bom, no mercado negro deve valer uns bons milhões do dólares. Ubabaya não tem herdeiros, a família toda morreu, quem vai ficar com todas essas preciosidades?
— Karen a matou, pela lei das bruxas ela herda, quem mata fica com as posses do morto.
— Caralho... ela ta feita na vida.
— Ela está dormindo desde a hora que comeu?
— Desmaiou assim que engoliu o último pedaço do coração. Consegue sentir o poder dela aumentando?
— Sim. Ela acreditou que a idéia foi sua?
— Claro, Karen acha que ninguém sabe que eu estou aqui e que a idéia saiu da minha mente demoníaca, mas não entendi, porque mentir? Porque ela não pode saber que a idéia foi sua?
— Porque aos olhos dela eu ainda sou um puro espírito da natureza, é melhor que fique assim.
— Mas você é de fato um puro espírito da natureza.
— Sim, mas não imparcial ou santo como se espera.
— Sabe Mumu, ainda não compreendo onde você esperar chegar ou o que vai ganhar se metendo nesta história.
— Você confia em mim?
— Sim.
— Então fique comigo, no fim entenderá, além de estar muito animado com toda essa aventura eu terei uma boa recompensa no final.
— Vai realmente valer a pena.
— Se você estiver comigo, sim.
Quando sai o próximo capítulo?
ResponderExcluirNão consigo acessar o primeiro capítulo. 😢
ResponderExcluirNão consigo acessar o primeiro capítulo. 😢
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