Lucifer Smeraldina Cap. 7
Felipe Caprini
26 de Janeiro de 2020
I
Século primeiro, Província de Labraunda, Ásia Romana.
Entres as montanhas áridas de tom amarelado da terra castigada de Labraunda uma grande fila de mais de duzentas pessoas ia caminhando em silêncio, maltrapilhos, alguns com partes do corpo pretas de fuligem. Na dianteira ia um velho de corpo muito magro cujo a enorme barba branca caia até o peito, apoiado em seu cajado ele ia guiando o povo, subiam cada vez mais alto passando por íngremes desfiladeiros rumo ao monte sagrado. Foi uma caminhada de dois dias parando poucas horas a noite para descansar sem ter sequer o direito de acender uma fogueira com medo que os Romanos os vissem.
Assim que chegaram aos pés do monte fizeram oferendas a Hermes, então rumaram ao topo e chegando no cume se reuniram em volta de uma laje de pedra branca que ficava diante de uma grande estátua, sobre a pedra depositaram o jovem, um rapaz de não mais de dezesseis anos amarrado de mãos e pés. O velho ordenou o povo a se ajoelhar e rezar, assim fizeram até a noite cair, murmuravam rezas e súplicas, quando a lua cheia subiu ao centro do céu o velho ordenou o fim das ladainhas, foi para diante da estátua e começou um discurso.
— Meus irmãos... Hoje viemos implorar aos deuses por socorro, sim estamos no fio da navalha e não há como negar, Thanatos deus da morte nos rodeia. Mas vejam! Vejam a grandeza de Zeus! Zeus Labraundo! — ele apontou para a estátua.
Em coro o povo saudou:
— Rei do céu, pai do sol, o Raio do Etna, marido da lua!
O velho foi até a laje de pedra e sobre ela colocou uma velha faca cerimonial esculpida em osso aos pés do garoto amarrado.
— Sim... Zeus Labraundo, pai do nosso povo, ele é quem comanda os raios com um machado de duas cabeças! Só ele pode nós salvar dos romanos. Nós perdemos tudo, Roma prometeu ser nossa amiga, nossa aliada, prometeu que nos daria proteção se continuássemos a produzir comida para as tropas e pagar os impostos. Mas Roma mentiu, levaram nossas moças para serem prostitutas nos bordéis da capital e nossos rapazes para morrerem estraçalhados na infantaria dos exercitos... nossos meninos morrendo por uma guerra que não é deles, lutando até a morte por um ideal que não é o nosso. Ficamos a mercê dos romanos... e Zeus nos abandonou! Ele virou as costas para nós pois nós viramos as costas para ele! Sim, devemos admitir que nos encantamos pelo Júpiter de Roma, os romanos nos enganaram mais uma vez, disseram que Júpiter era o nosso Zeus em outra forma, com outro nome... mas isto também era mentira! Júpiter é um Deus maligno! Senhor dos cinturiões corruptos e sanguinários! Mas agora vamos abandonar Júpiter retornar a Zeus nosso pai, e para pedir a ele o devido perdão oferecemos esta noite um sacrifício de sangue.
O homem acariciou os cabelos do menino deitado sobre a pedra e rezou algo em uma língua antiga e desconhecida.
— Eu ofereço está noite a vida de meu filho caçula, o mais bonito entre os onze filhos que gerei sobre a terra e... o último que restou. Lacínio, o rapaz mais belo entre nós. Invocamos a presença de Zeus! Que venha se regozijar com o sangue deste jovem homem virgem.
Todo o povo se afastou, o velho apanhou a faca de osso com a mão direta enquanto cobria os olhos do rapaz com a mão esquerda e com toda a força cravou a faca no peito do rapaz. Um dos aldeões observou que Lacínio ainda respirava mesmo com a faca enterrada no peito e questionou se não deveriam cortar o pescoço, mas o velho foi irredutível:
— Não, este é o modo certo de se sacrificar a Zeus, meu filho não vai morrer agora, ainda demorará horas para o coração parar, eu atigi em um ponto fatal mas que só mata instantaneamente se a faca for removida. Nós devemos partir e deixar Zeus vir apreciar o sacrifício em paz, essa é a tradição.
O garoto tinha um olhar vago e triste fitando o céu escuro, o povo partiu e o deixou lá sozinho para a morte, a sensação da faca enfiada no peito a princípio foi extremamente dolorosa mas logo o ferimento ficou dormente. Lacínio mesmo sendo filho de um sacerdote nunca acreditou em deuses, era totalmente cético, este foi o motivo de ser o primero sacrifício humano de labraunda a ter de ser amarrado pois ele tentou fugir diversas vezes ao contrario das outras dezenas de rapazes que eram voluntários. A sensação de frio era intensa, o vento cantava ao passar por entre as rochas, mas de repente tudo cessou, ele sentiu calor emanar de um ponto próximo e quando virou a cabeça viu a figura reluzente de um homem enorme que estava nu, seus musculosos eram tão vigorosos que pareciam querer romper a pele bronzeada, a barba aparada e o cabelo longo eram grisalhos, os olhos de um tom azul frio como gelo, ele se aproximou de Lacínio e fez menção de agarrar o cabo da faca porém parou com a mão aberta no ar centímetros antes.
— Eu sou Zeus. Porque está aqui na pedra do sacrifício?
Lacínio olhou para o deus tão surpreso que quando ousou falar gaguejou.
— E-eu fu-ui dado como ofe-oferenda...
— Mas você não é virgem, sinto o cheiro da poluição no seu sangue, no seu corpo inteiro.
— E-eu avisei a eles, mas eles disseram que eu era.
— Oh... compreendendo. Eles acham que a virgindade se perde apenas com sexo entre um homem e uma mulher, mas como sempre estão equivocados. Virgindade não é hímem, é energia. Qualquer contato íntimo entre dois seres resulta na mistura das energias, você não é puro e por isso eu recuso essa oferenda. Espere tranquilo, a mort não tarda a vir apanhar sua alma.
Zeus tocou levemente o ombro do garoto, se afastou dando as costas, com um estrondoso trovão desapareceu. Lacínio ficou lá por horas, a faca cravada no peito e a visão cada vez mais turva, a sensação de fraqueza era como estar em inanição balançando em uma canoa, era enjoo, vertigem e fraqueza. Quando o dia estava amanhecendo a poça de sangue em volta do corpo ja era grande, ele sentia muito sono e estava prestes a fechar os olhos quando algo cruzou o céu, algo enorme, era como uma serpente ou um lagarto muito grande, se movia de modo sinuoso entre as nuvens e dançou no céu por algum tempo até que em uma guinada repentina desceu, a cabeça do tamanho de uma casa e os olhos brancos fitando Lacínio a menos de dez metros de distância. A voz potente ressoou nos ouvidos do garoto, o Dragão falava sem a necessidade de mover a boca.
— Lacínio de Tigris, você quer a minha ajuda?
Lacínio não teve medo, na verdade achava que aquilo nada mais era que uma alucinação causada pela perca de sangue, então respondeu tranquilamente.
— Sim por favor, a ideia de morrer aqui é de péssimo gosto.
O Dragão tremeluziu, suas escamas se levantaram, toda a extensão de seu corpo ondulou e então explodiu em uma nuvem de partículas brancas, pouco a pouco elas se juntaram, se condensaram em uma forma muito menor e então quem estava ao lado da pedra do sacrifício era nada além de um garoto pálido e muito parecido com o próprio Lacínio com a diferença do cabelo ser mais curto e o rosto mais redondo.
— Eu sou Urangan, o Zmej do vento.
— Zmej? Como nas histórias que meu pai contava? Os nove dragões arquitetos deste mundo?
— Sim.
— E porque você agora virou uma pessoa?
— Minha forma original é inconveniente para te ajudar, a melhor forma para ajudar um humano e ser um humano.
Uragan com um movimento rápido arrancou a faca do peito de Lacínio mas ao invés do sangue jorrar o que aconteceu foi o contrário, a poça vermelho escuro já coagulada sobre a pedra se tornou vivida novamente e filetes do liquido passaram a subir pelo peito do garoto entrando no buraco do ferimento, o sangue retornava ao corpo. Uragan apontou o dedo indicador para as cordas que amarravam as mãos e pés do outro e elas romperam imediatamente.
Lacínio se sentou e passou a mão sobre o peito, não havia nem sinal de ferimento.
— Eu já estou morto?
— Ah... não. Eu impedi sua morte, reverti o tempo na região do ferimento, então é como se nunca houvesse sido ferido. — Uragan falou frizando dizer o óbvio.
— Tá bom. Então eu estava esfaqueado, ai vi Zeus e depois uma cobra do tamanho de uma muralha e ela virou um rapaz que fechou minha ferida e... é isso.
— É... foi bem isso mesmo, porém eu não sou uma cobra.
Licínio olhou em volta como se estivesse perdido.
— O que busca? — Uragan perguntou.
— Não sei. Na verdade acho mesmo que morri. Você entende? No mundo de verdade cobras gigantes não voam e não se transformam em garotos.
— Eu já disse que não sou uma cobra, sou um Zmej, um Zmej é um Dragão, e os humanos so vêem o que é constituído por materia basica, os seres de energia, os imateriais não podem ser vistos por olhos feitos de carne.
— Se os humanos não podem ver, porque eu estou te vendo?
— Aquele deus, Zeus, quando ele veio e se deixou ser visto... ele tocou em você. O corpo humano é extremamente absorvente, você absorveu uma fagulha da energia divina ao ser tocado, e por isso agora pode ver o mundo imaterial, entre os seres da sua espécie você agora é considerado alguem com dons.
— Dons... o que eu faço agora? Pra onde vou? É muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Uragan se sentou na pedra e colocou a mão sobre a de Lacínio.
— É, é sim. Você quer que eu fique com você por um tempo? Para te ajudar?
Lacínio pareceu perturbado com a oferta.
— Porque? Afinal de contas porque me salvou? Porque quer me ajudar?
— ...Porque não tenho nada para fazer, literalmente eu não faço nada. Quero ser útil de alguma forma, sabe, ter significado.
— Mas você não é um grande Dragão espiritual?
— Você sabe o que é ser um Dragão espiritual? Pois e sou e isso agora me reduz a praticamente nada, e não gosto disso. Se posso ser útil para alguém... Então serei.
— Ser útil? Então não é por mim?
— Quer que eu minta para te fazer feliz? Sei que vocês humanos tem esse costume.
— Não, seja franco, você está aqui me ajudando por você mesmo, uma experiência? É isso? Um passa-tempo de um ser divindo que está... entediado?
— É exatamente isso. Estou entediado há pelo menos oito mil anos.
Lacínio encarou Uragan, analisou as opções que tinha e ao perceber que ou aceitava a ajuda ou ficaria sozinho, tomou a decisão.
— Certo... não vejo problema nisso. Então vamos lá, me ajude.
Nos primeiros seis mêses Lacínio a prendeu a usar seu dom de visão aberta para ganhar dinheiro, não era só enxergar espírito, ele tinha premonições, sonhos cheios de revelações e um tino certeiro para identificar as ervas que tinham propriedades curativas e usou todo o potencial para se tornar um místico, uma pessoa que cobrava para atendimentos espirituais. Uragan permaneceu durante este periodo ensinando todos os segredos que podia e até deu ao garoto mais poder, mas os ensinamentos acabaram no dia que conheceram aquela mulher.
Caminhavam juntos por uma estrada rumo a Eólia quando Uragan segurou o braço de Lacínio o fazendo parar de caminhar.
— Sente o cheiro? — Ele perguntou.
Lacínio farejou o ar e então sentiu o cheiro podre, uma mistura de carne putrefada com cinzas vulcânicas.
— O que é isso? Que cheiro é esse? — Lacínio tampou o nariz com ambas as mãos.
— É um transviado, está vindo para cá.
— Transviado? Como assim?
— Lembra que eu lhe contei que o grande Sé criou todas as coisas incluindo os seres? Pois então, alguns seres fogem de sua natureza e se pevertem, se transformam em criaturas hediondas, em Roma os sacerdotes de Plutão os chamam de... Demônios. São absolutamente inferiores a mim, como formigas a meus pés, mas você tem dons e isso fará com que queiram te tornar um deles, e para humanos os demônios são uma real ameaça.
— Então você pode esmagar ele? Usar seus poderes de Dragão e sumir com ele?
— Posso, mas não farei nada se ele não nos atacar.
— Mas se você é infinitamente mais forte porque não resolve de uma vez?
— A violência surge deste tipo pensamento. Eu sou forte, isso significa que é de direito que eu mate qualquer ser do qual meramente desgoste? É isso que faria se tivesse poder?
— Pra dizer a verdade sim.
— Então que o destino não permita nunca que você seja forte. Agora atenção, fique do meu lado e eu o protegerei.
Ao longe a imagem escura de alguém usando túnica negra e encapuzado surgiu, era de estatura baixa e vinha caminhando de uma forma engraçada, movia os quadris como um gato, como a maioria dos humanos não enxerga demônios aquele ser só percebeu que era visível aos olhos do par quando se aproximou deles, então removeu o capuz e mostrou um rosto bonito com pele dourada e olhos cor de âmbar com a íris em um risco vertical como o dos felinos, era a mulher mais bela que Lacínio já vira.
— Olá... que maravilha... vejo que temos duas pessoas interessantes aqui. Um humano que pode ver o oculto e um... o que é você? Desculpe mas não consegui identificar. — Ela perguntou com a voz aguda mas ao mesmo tempo simpática.
— Não sou nada além de vento. E você quem é? — Uragan quis saber.
— Me chamo Ailin Luthera, sou uma Kemeth do Egito, e sou...
—Um demônio imundo, uma criatura podre desviada do projeto do grande Sé. — Uragan usou o máximo de frieza que pôde impor na voz.
— Eu ia dizer que sou boticária e curandeira, mas nenhuma palavra que disse eu nego. Sou o que sou. E o humano? Não tem língua?
— O que falta não é lingua e sim estômago para lhe dirigir a palavra. — Uragan puxou Lacínio para trás de si.
Ailin ergueu as sobrancelhas surpresa com a rudeza nas palavras, depois deu de ombros.
— Tudo bem, eu estou indo para a Lídia, pretendo ficar lá por algum tempo.
— E quem se importa com seu destino? — Uragan começou a caminhar puxando Lacínio pela mão.
— Se vocé é o que eu imagino sabe quem vai se importar, não finja que não sabe. O que está escrito está escrito, até um Zmej não pode discordar disso.
Ailin seguiu pela estrada rindo enquanto os outros dois trilhavam o caminho oposto.
— O que ela quis dizer? —Lacínio pergutou olhando para trás.
— Nada, demônios soltam palavras tolas como o gado solta excremento, não pense nisso.
— Mas ela sabia que você é um Zmej!
— Ja disse, não pense nisso.
Em Eólia compraram uma casa pequena, apenas dois cômodos, as coisas eram muito mais caras lá e mesmo tendo algum dinheiro não era o suficiente para luxo. Uma noite Lacínio decidiu que os dois iriam tomar banho juntos na mesma tina para não ter de esquentar água duas vezes, era proibido derrubar árvores ou colher gravetos, toda a lenha tinha de ser comprada no mercado oficial e eles cobravam dez denarios pelo fardo, era então mais barato comprar uma vaca em Labraunda do que lenha para uma noite em Eólia, isso fazia o simples ato de aquecer água algo luxuoso demais.
Encheram a tina, Lacínio tirou as roupas e entrou na água, com medo que ela ficasse fria muito rápido ele se lavou rapido, mas então notou Uragan parado o encarando com os olhos arregalados.
— Não vai tomar banho? A água vai gelar em dez minutos.
— Você é mais bonito que os outros homens. Porque? É natural ou é beleza adquirida por feitiçaria? — Uragan mantinha os olhos fixos no corpo do outro.
Lacínio olhou para seu próprio corpo dentro da água, não havia nada de especial nele, era magro e tinha poucos pelos, a pele era bronzeada de forma desigual fazendo as coxas serem muito claras e as panturrilhas muito escuras, os pés queimados de sol tinham a exata marca da tira de couro da sandália mostrando uma faixa de pede branca, e seus genitais era iguais aos que ele vira nos outros nomens, nem grande como um o pênis de um cartagines, nem pequeno como o de um celta, ou seja tudo em Lacínio era absolutamente comum.
— Quando me viu pela primeira vez na pedra do sacrifício você me achou bonito?
—Não. Daquele dia você não tinha nada de diferente dos outros que ja vi.
— Daquele dia para cá meu corpo não mudou.
— Mudou sim, mudou drasticamente.
Lacínio pensou naquilo e chegou a uma conclusão.
— Se me vê diferente foram seus olhos que mudaram.
Uragan ergueu as mãos diante do rosto e as examinou.
— Não, meus olhos estão normais.
— Não falei literalmente, digo questão de percepção. Eu acho que me vê mais bonito porque agora gosta de mim.
— Gosto? Gosto de um... humano? Não, vocês são efêmeros, nascem, crescem e morrem em um piscar de olhos, defecam, cheiram a suor e vomitam, como poderia ser?
— Essa é uma questão complexa, ninguém escolhe por quem se apaixona, é espontâneo.
— Espontâneo... eis ai uma coisa que realmente gosto, espontaneidade.
— Já percebi. Entre aqui na água a faça um teste para saber se é verdade sobre gostar de mim.
Uragan removeu a túnica, seu corpo era magro mas muito bonito, a pele em tom uniforme, era magro mas com músculos bem torneados. Entrou na água, ficaram sentados um de frente para o outro.
— E então?
— Sabe o que um beijo?
— Sim ja vi pessoas se beijando.
— Então me beije. — Lacínio pediu.
— O que? Porque?
— Porque o beijo é um ato de amor. Se você cultivar sentimentos por mim então o beijo vai ser bom, caso contrário não sentirá nada.
— Eu nunca beijei ninguém antes.
— Eu imaginei, a parte sobre ser um Dragão e viver com os oito irmãos meio que deixa claro que você não vivenciou isso.
— E você já vivenciou?
— Eu já fui beijado antes, mas não senti nada pelas pessoas que me beijaram.
— E acha que pode sentir algo de bom se eu te beijar? — Uragan tinha as orelhas muito vermelhas e parecia não saber o que fazer com as próprias mãos.
— Eu acredito que com você sim.
— Observei a humanidade desde que foi criada, mas é muito diferente ser um humano do que apenas assistir. Ser humano é surpreendente.
Lacínio se inclinou para frente os lábios dos dois se tocaram, quando voltou a posição original segurou as mãos de Uragan sob a água quente.
— O que achou?
— Acho que foi muito rapido.
Eles se beijaram novamente mas dessa vez não só encostaram lábios, cada um pôde sentir o sabor da boca do outro é só pararam quando Lacínio ficou sem fôlego.
— Você estava certo. — Uragan constatou.
— Sobre o que?
— Sobre eu gostar de você. Você também gosta de mim não é?
— Uragan eu amo você.
O sentimento de amar e ser amado era magnífico, era como se coração estivesse quente dentro do peito. Mas isso passou, um frio profundo tomou conta de Uragan, a escuridão veio e o engoliu quando ele lembrou que isso tudo era só um sonho, um sonho que mostrou a parte bonita da história, a parte doce de sua memória, mas ele sabia, lembrava do quão doloroso foi o fim.
Lacínio se inclinou para frente e falou com um tom de voz diferente, mais grave.
— Mumu! Mumu eu não acredito que você ainda está aqui! Mumu Acorde!
II
— Mumu? Mumu acorde, vamos!
Murilo abriu os olhos lentamente e viu Ferrabraz com o rosto bem acima do dele.
— Mumu porque não votou para o hotel? Já passa das três da manhã, eu voltei agora, te procurei no hotel e... Mumu? O que foi?
— Você disse para eu esperar aqui.
Murilo estava deitado sobre uma toalha no chão da clareira da floresta ao lado das sobras de um sanduíche de queijo agora tomado por formigas. Quando abriu os olhos totalmente não pode conter as lágrimas, não chorou com sons nem fez caretas, apenas tinha muita água escorrendo dos olhos encharcando as bochechas.
— O que? Você se machucou? O que aconteceu? — Ferrabraz perguntou aflito.
— Nada, não foi nada.
— Mas está chorando... — Ferrabraz tocou o rosto úmido dele.
— Tive um pesadelo, sonhei com uma lembrança do meu passado, não se preocupe com isso.
— Mas as lágrimas não param de cair, você tem certeza de que está bem?
— Tenho. Porque demorou tanto?
— Tive de me transformar, me tornar um demônio completo para resgatar Smeralda. Demora um pouco para que eu retome essa aparência normal, então esperei no inferno até que fosse homem novamente.
— Tudo bem.
— Você ficou aqui o dia todo?
— Não, sai para dar uma volta, mas fiquei aqui a maior parte do dia te esperando.
Ferrabraz o ajudou a sentar.
— Me desculpe, se eu soubesse que estava aqui sozinho...
— Eu estou sozinho faz muito tempo, estou acostumado.
— ...Você sonhou com o que? Como foi o pesadelo?
— Não quero falar disso. — Murilo saiu de cima da toalha, a dobrou e enfiou dentro da mochila.
— As vezes falar ajuda.
— Você acha? Eu sonhei com um rapaz que conheci dois mil anos atrás nas terras de Labraunda.
A boca de Ferrabraz abriu e fechou mas nenhuma palavra saiu dela, apenas seu rosto pálido ficou ainda mais sem cor. Murilo imediatamente se arrependeu de ter falado, para impedir que esse assunto prosseguisse mudou o rumo da conversa.
— Não comi nada o dia todo, só dei uma mordida naquele sanduíche, o que serviu para a descobrir que eu detesto cheddar. Pode me levar para comer alguma coisa?
Ferrabraz assentiu movendo acenando a cabeça, em um clarão luminoso desapareceram da floresta e apareceram dentro do banheiro de um Mcdonald's aberto vinte e quatro horas, Murilo ficou sentado em uma mesa em um canto isolado enquanto Ferrabraz fazia o pedido no balcão.
Sozinho olhando distraído pelo vidro cheio de marcas de dedos de uma das grandes janelas Murilo pensava em Lacínio, e em como seu proprio coração estava confuso em querer estar com aquele Lacínio humano do passado ou tentar recuperar este Lacínio do presente, este que era um demônio.
Ferrabraz colocou sobre a mesa duas bandejas de plástico cheias de hambúrgueres, batatas fritas, copos de suco de uva, dois potes de sorvete e se sentou parecendo um tanto desconfortável.
— A... a missão acabou, Smeralda está com Lucifer.
— É a missão acabou, me pediram para a encontrar e eu a encontrei, te pediram para a sequestrar e você assim fez. Acabou.
— É...
— Então agora eu posso ir embora, voltar para o vazio. — Murilo deu uma colherada no sorvete.
— Sim pode. Mas eu gostaria que ficasse um pouco mais.
— E porque eu faria isso? Sabe que por mais que eu esteja humano eu não sou humano.
— Eu sei mas quero que fique comigo um pouco mais. Eu... eu não sabia que tinha me reconhecido.
— Você não se parece em nada com quem já foi, sua pele está muito mais branca, o cabelo mais escuro, a altura mudou, o corpo está maior, os dentes mais alinhados, mas os olhos são os mesmos Ferrabraz. Você tem os olhos de um homem morto.
— Eu nunca morri, demônios são imortais.
— Lacínio morreu no dia em que você vendeu a sua alma. Agora você é Ferrabraz.
— Eu ainda sou Lacínio.
— Eu não tenho certeza ainda.
— Então vai embora? Vai me deixar de novo?
Murilo deu uma mordida em um hambúrguer e falou de boca cheia.
— Eu vou ficar.
Ferrabraz abriu um tímido sorriso.
—Acha que nós podemos...
— Não. Eu vou ficar porque tenho outros motivos. A minha missão com Lucifer acabou, mas eu tenho outras para cumprir.
— E quais são essas missões?
Murilo afastou o assunto balançando a cabeça.
— Ferrabraz quem é seu senhor? Quem é o detentor da sua alma?
— Você sabe, é Lucifer.
Murilo ergueu a mão direita e estendeu o dedo mínimo, imediatamente um fio prateado se ligou ao dedo da mão de Ferrabraz o fazendo mover a mão involuntariamente para frente e derrubar um dos sacos de batata no chão.
— O que significa isso? Como você invocou o elo de posse? Já era pra ter sido desfeito, e mesmo se estivesse ativo sou eu quem invoca. E porque está prata? Era dourado...
Murilo sorriu sem mostrar os dentes e não disse mais nada.
26 de Janeiro de 2020
Lucifer Smeraldina
Capítulo 7
"Você Agora Me Pertence"
Século primeiro, Província de Labraunda, Ásia Romana.
Entres as montanhas áridas de tom amarelado da terra castigada de Labraunda uma grande fila de mais de duzentas pessoas ia caminhando em silêncio, maltrapilhos, alguns com partes do corpo pretas de fuligem. Na dianteira ia um velho de corpo muito magro cujo a enorme barba branca caia até o peito, apoiado em seu cajado ele ia guiando o povo, subiam cada vez mais alto passando por íngremes desfiladeiros rumo ao monte sagrado. Foi uma caminhada de dois dias parando poucas horas a noite para descansar sem ter sequer o direito de acender uma fogueira com medo que os Romanos os vissem.
Assim que chegaram aos pés do monte fizeram oferendas a Hermes, então rumaram ao topo e chegando no cume se reuniram em volta de uma laje de pedra branca que ficava diante de uma grande estátua, sobre a pedra depositaram o jovem, um rapaz de não mais de dezesseis anos amarrado de mãos e pés. O velho ordenou o povo a se ajoelhar e rezar, assim fizeram até a noite cair, murmuravam rezas e súplicas, quando a lua cheia subiu ao centro do céu o velho ordenou o fim das ladainhas, foi para diante da estátua e começou um discurso.
— Meus irmãos... Hoje viemos implorar aos deuses por socorro, sim estamos no fio da navalha e não há como negar, Thanatos deus da morte nos rodeia. Mas vejam! Vejam a grandeza de Zeus! Zeus Labraundo! — ele apontou para a estátua.
Em coro o povo saudou:
— Rei do céu, pai do sol, o Raio do Etna, marido da lua!
O velho foi até a laje de pedra e sobre ela colocou uma velha faca cerimonial esculpida em osso aos pés do garoto amarrado.
— Sim... Zeus Labraundo, pai do nosso povo, ele é quem comanda os raios com um machado de duas cabeças! Só ele pode nós salvar dos romanos. Nós perdemos tudo, Roma prometeu ser nossa amiga, nossa aliada, prometeu que nos daria proteção se continuássemos a produzir comida para as tropas e pagar os impostos. Mas Roma mentiu, levaram nossas moças para serem prostitutas nos bordéis da capital e nossos rapazes para morrerem estraçalhados na infantaria dos exercitos... nossos meninos morrendo por uma guerra que não é deles, lutando até a morte por um ideal que não é o nosso. Ficamos a mercê dos romanos... e Zeus nos abandonou! Ele virou as costas para nós pois nós viramos as costas para ele! Sim, devemos admitir que nos encantamos pelo Júpiter de Roma, os romanos nos enganaram mais uma vez, disseram que Júpiter era o nosso Zeus em outra forma, com outro nome... mas isto também era mentira! Júpiter é um Deus maligno! Senhor dos cinturiões corruptos e sanguinários! Mas agora vamos abandonar Júpiter retornar a Zeus nosso pai, e para pedir a ele o devido perdão oferecemos esta noite um sacrifício de sangue.
O homem acariciou os cabelos do menino deitado sobre a pedra e rezou algo em uma língua antiga e desconhecida.
— Eu ofereço está noite a vida de meu filho caçula, o mais bonito entre os onze filhos que gerei sobre a terra e... o último que restou. Lacínio, o rapaz mais belo entre nós. Invocamos a presença de Zeus! Que venha se regozijar com o sangue deste jovem homem virgem.
Todo o povo se afastou, o velho apanhou a faca de osso com a mão direta enquanto cobria os olhos do rapaz com a mão esquerda e com toda a força cravou a faca no peito do rapaz. Um dos aldeões observou que Lacínio ainda respirava mesmo com a faca enterrada no peito e questionou se não deveriam cortar o pescoço, mas o velho foi irredutível:
— Não, este é o modo certo de se sacrificar a Zeus, meu filho não vai morrer agora, ainda demorará horas para o coração parar, eu atigi em um ponto fatal mas que só mata instantaneamente se a faca for removida. Nós devemos partir e deixar Zeus vir apreciar o sacrifício em paz, essa é a tradição.
O garoto tinha um olhar vago e triste fitando o céu escuro, o povo partiu e o deixou lá sozinho para a morte, a sensação da faca enfiada no peito a princípio foi extremamente dolorosa mas logo o ferimento ficou dormente. Lacínio mesmo sendo filho de um sacerdote nunca acreditou em deuses, era totalmente cético, este foi o motivo de ser o primero sacrifício humano de labraunda a ter de ser amarrado pois ele tentou fugir diversas vezes ao contrario das outras dezenas de rapazes que eram voluntários. A sensação de frio era intensa, o vento cantava ao passar por entre as rochas, mas de repente tudo cessou, ele sentiu calor emanar de um ponto próximo e quando virou a cabeça viu a figura reluzente de um homem enorme que estava nu, seus musculosos eram tão vigorosos que pareciam querer romper a pele bronzeada, a barba aparada e o cabelo longo eram grisalhos, os olhos de um tom azul frio como gelo, ele se aproximou de Lacínio e fez menção de agarrar o cabo da faca porém parou com a mão aberta no ar centímetros antes.
— Eu sou Zeus. Porque está aqui na pedra do sacrifício?
Lacínio olhou para o deus tão surpreso que quando ousou falar gaguejou.
— E-eu fu-ui dado como ofe-oferenda...
— Mas você não é virgem, sinto o cheiro da poluição no seu sangue, no seu corpo inteiro.
— E-eu avisei a eles, mas eles disseram que eu era.
— Oh... compreendendo. Eles acham que a virgindade se perde apenas com sexo entre um homem e uma mulher, mas como sempre estão equivocados. Virgindade não é hímem, é energia. Qualquer contato íntimo entre dois seres resulta na mistura das energias, você não é puro e por isso eu recuso essa oferenda. Espere tranquilo, a mort não tarda a vir apanhar sua alma.
Zeus tocou levemente o ombro do garoto, se afastou dando as costas, com um estrondoso trovão desapareceu. Lacínio ficou lá por horas, a faca cravada no peito e a visão cada vez mais turva, a sensação de fraqueza era como estar em inanição balançando em uma canoa, era enjoo, vertigem e fraqueza. Quando o dia estava amanhecendo a poça de sangue em volta do corpo ja era grande, ele sentia muito sono e estava prestes a fechar os olhos quando algo cruzou o céu, algo enorme, era como uma serpente ou um lagarto muito grande, se movia de modo sinuoso entre as nuvens e dançou no céu por algum tempo até que em uma guinada repentina desceu, a cabeça do tamanho de uma casa e os olhos brancos fitando Lacínio a menos de dez metros de distância. A voz potente ressoou nos ouvidos do garoto, o Dragão falava sem a necessidade de mover a boca.
— Lacínio de Tigris, você quer a minha ajuda?
Lacínio não teve medo, na verdade achava que aquilo nada mais era que uma alucinação causada pela perca de sangue, então respondeu tranquilamente.
— Sim por favor, a ideia de morrer aqui é de péssimo gosto.
O Dragão tremeluziu, suas escamas se levantaram, toda a extensão de seu corpo ondulou e então explodiu em uma nuvem de partículas brancas, pouco a pouco elas se juntaram, se condensaram em uma forma muito menor e então quem estava ao lado da pedra do sacrifício era nada além de um garoto pálido e muito parecido com o próprio Lacínio com a diferença do cabelo ser mais curto e o rosto mais redondo.
— Eu sou Urangan, o Zmej do vento.
— Zmej? Como nas histórias que meu pai contava? Os nove dragões arquitetos deste mundo?
— Sim.
— E porque você agora virou uma pessoa?
— Minha forma original é inconveniente para te ajudar, a melhor forma para ajudar um humano e ser um humano.
Uragan com um movimento rápido arrancou a faca do peito de Lacínio mas ao invés do sangue jorrar o que aconteceu foi o contrário, a poça vermelho escuro já coagulada sobre a pedra se tornou vivida novamente e filetes do liquido passaram a subir pelo peito do garoto entrando no buraco do ferimento, o sangue retornava ao corpo. Uragan apontou o dedo indicador para as cordas que amarravam as mãos e pés do outro e elas romperam imediatamente.
Lacínio se sentou e passou a mão sobre o peito, não havia nem sinal de ferimento.
— Eu já estou morto?
— Ah... não. Eu impedi sua morte, reverti o tempo na região do ferimento, então é como se nunca houvesse sido ferido. — Uragan falou frizando dizer o óbvio.
— Tá bom. Então eu estava esfaqueado, ai vi Zeus e depois uma cobra do tamanho de uma muralha e ela virou um rapaz que fechou minha ferida e... é isso.
— É... foi bem isso mesmo, porém eu não sou uma cobra.
Licínio olhou em volta como se estivesse perdido.
— O que busca? — Uragan perguntou.
— Não sei. Na verdade acho mesmo que morri. Você entende? No mundo de verdade cobras gigantes não voam e não se transformam em garotos.
— Eu já disse que não sou uma cobra, sou um Zmej, um Zmej é um Dragão, e os humanos so vêem o que é constituído por materia basica, os seres de energia, os imateriais não podem ser vistos por olhos feitos de carne.
— Se os humanos não podem ver, porque eu estou te vendo?
— Aquele deus, Zeus, quando ele veio e se deixou ser visto... ele tocou em você. O corpo humano é extremamente absorvente, você absorveu uma fagulha da energia divina ao ser tocado, e por isso agora pode ver o mundo imaterial, entre os seres da sua espécie você agora é considerado alguem com dons.
— Dons... o que eu faço agora? Pra onde vou? É muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Uragan se sentou na pedra e colocou a mão sobre a de Lacínio.
— É, é sim. Você quer que eu fique com você por um tempo? Para te ajudar?
Lacínio pareceu perturbado com a oferta.
— Porque? Afinal de contas porque me salvou? Porque quer me ajudar?
— ...Porque não tenho nada para fazer, literalmente eu não faço nada. Quero ser útil de alguma forma, sabe, ter significado.
— Mas você não é um grande Dragão espiritual?
— Você sabe o que é ser um Dragão espiritual? Pois e sou e isso agora me reduz a praticamente nada, e não gosto disso. Se posso ser útil para alguém... Então serei.
— Ser útil? Então não é por mim?
— Quer que eu minta para te fazer feliz? Sei que vocês humanos tem esse costume.
— Não, seja franco, você está aqui me ajudando por você mesmo, uma experiência? É isso? Um passa-tempo de um ser divindo que está... entediado?
— É exatamente isso. Estou entediado há pelo menos oito mil anos.
Lacínio encarou Uragan, analisou as opções que tinha e ao perceber que ou aceitava a ajuda ou ficaria sozinho, tomou a decisão.
— Certo... não vejo problema nisso. Então vamos lá, me ajude.
Nos primeiros seis mêses Lacínio a prendeu a usar seu dom de visão aberta para ganhar dinheiro, não era só enxergar espírito, ele tinha premonições, sonhos cheios de revelações e um tino certeiro para identificar as ervas que tinham propriedades curativas e usou todo o potencial para se tornar um místico, uma pessoa que cobrava para atendimentos espirituais. Uragan permaneceu durante este periodo ensinando todos os segredos que podia e até deu ao garoto mais poder, mas os ensinamentos acabaram no dia que conheceram aquela mulher.
Caminhavam juntos por uma estrada rumo a Eólia quando Uragan segurou o braço de Lacínio o fazendo parar de caminhar.
— Sente o cheiro? — Ele perguntou.
Lacínio farejou o ar e então sentiu o cheiro podre, uma mistura de carne putrefada com cinzas vulcânicas.
— O que é isso? Que cheiro é esse? — Lacínio tampou o nariz com ambas as mãos.
— É um transviado, está vindo para cá.
— Transviado? Como assim?
— Lembra que eu lhe contei que o grande Sé criou todas as coisas incluindo os seres? Pois então, alguns seres fogem de sua natureza e se pevertem, se transformam em criaturas hediondas, em Roma os sacerdotes de Plutão os chamam de... Demônios. São absolutamente inferiores a mim, como formigas a meus pés, mas você tem dons e isso fará com que queiram te tornar um deles, e para humanos os demônios são uma real ameaça.
— Então você pode esmagar ele? Usar seus poderes de Dragão e sumir com ele?
— Posso, mas não farei nada se ele não nos atacar.
— Mas se você é infinitamente mais forte porque não resolve de uma vez?
— A violência surge deste tipo pensamento. Eu sou forte, isso significa que é de direito que eu mate qualquer ser do qual meramente desgoste? É isso que faria se tivesse poder?
— Pra dizer a verdade sim.
— Então que o destino não permita nunca que você seja forte. Agora atenção, fique do meu lado e eu o protegerei.
Ao longe a imagem escura de alguém usando túnica negra e encapuzado surgiu, era de estatura baixa e vinha caminhando de uma forma engraçada, movia os quadris como um gato, como a maioria dos humanos não enxerga demônios aquele ser só percebeu que era visível aos olhos do par quando se aproximou deles, então removeu o capuz e mostrou um rosto bonito com pele dourada e olhos cor de âmbar com a íris em um risco vertical como o dos felinos, era a mulher mais bela que Lacínio já vira.
— Olá... que maravilha... vejo que temos duas pessoas interessantes aqui. Um humano que pode ver o oculto e um... o que é você? Desculpe mas não consegui identificar. — Ela perguntou com a voz aguda mas ao mesmo tempo simpática.
— Não sou nada além de vento. E você quem é? — Uragan quis saber.
— Me chamo Ailin Luthera, sou uma Kemeth do Egito, e sou...
—Um demônio imundo, uma criatura podre desviada do projeto do grande Sé. — Uragan usou o máximo de frieza que pôde impor na voz.
— Eu ia dizer que sou boticária e curandeira, mas nenhuma palavra que disse eu nego. Sou o que sou. E o humano? Não tem língua?
— O que falta não é lingua e sim estômago para lhe dirigir a palavra. — Uragan puxou Lacínio para trás de si.
Ailin ergueu as sobrancelhas surpresa com a rudeza nas palavras, depois deu de ombros.
— Tudo bem, eu estou indo para a Lídia, pretendo ficar lá por algum tempo.
— E quem se importa com seu destino? — Uragan começou a caminhar puxando Lacínio pela mão.
— Se vocé é o que eu imagino sabe quem vai se importar, não finja que não sabe. O que está escrito está escrito, até um Zmej não pode discordar disso.
Ailin seguiu pela estrada rindo enquanto os outros dois trilhavam o caminho oposto.
— O que ela quis dizer? —Lacínio pergutou olhando para trás.
— Nada, demônios soltam palavras tolas como o gado solta excremento, não pense nisso.
— Mas ela sabia que você é um Zmej!
— Ja disse, não pense nisso.
Em Eólia compraram uma casa pequena, apenas dois cômodos, as coisas eram muito mais caras lá e mesmo tendo algum dinheiro não era o suficiente para luxo. Uma noite Lacínio decidiu que os dois iriam tomar banho juntos na mesma tina para não ter de esquentar água duas vezes, era proibido derrubar árvores ou colher gravetos, toda a lenha tinha de ser comprada no mercado oficial e eles cobravam dez denarios pelo fardo, era então mais barato comprar uma vaca em Labraunda do que lenha para uma noite em Eólia, isso fazia o simples ato de aquecer água algo luxuoso demais.
Encheram a tina, Lacínio tirou as roupas e entrou na água, com medo que ela ficasse fria muito rápido ele se lavou rapido, mas então notou Uragan parado o encarando com os olhos arregalados.
— Não vai tomar banho? A água vai gelar em dez minutos.
— Você é mais bonito que os outros homens. Porque? É natural ou é beleza adquirida por feitiçaria? — Uragan mantinha os olhos fixos no corpo do outro.
Lacínio olhou para seu próprio corpo dentro da água, não havia nada de especial nele, era magro e tinha poucos pelos, a pele era bronzeada de forma desigual fazendo as coxas serem muito claras e as panturrilhas muito escuras, os pés queimados de sol tinham a exata marca da tira de couro da sandália mostrando uma faixa de pede branca, e seus genitais era iguais aos que ele vira nos outros nomens, nem grande como um o pênis de um cartagines, nem pequeno como o de um celta, ou seja tudo em Lacínio era absolutamente comum.
— Quando me viu pela primeira vez na pedra do sacrifício você me achou bonito?
—Não. Daquele dia você não tinha nada de diferente dos outros que ja vi.
— Daquele dia para cá meu corpo não mudou.
— Mudou sim, mudou drasticamente.
Lacínio pensou naquilo e chegou a uma conclusão.
— Se me vê diferente foram seus olhos que mudaram.
Uragan ergueu as mãos diante do rosto e as examinou.
— Não, meus olhos estão normais.
— Não falei literalmente, digo questão de percepção. Eu acho que me vê mais bonito porque agora gosta de mim.
— Gosto? Gosto de um... humano? Não, vocês são efêmeros, nascem, crescem e morrem em um piscar de olhos, defecam, cheiram a suor e vomitam, como poderia ser?
— Essa é uma questão complexa, ninguém escolhe por quem se apaixona, é espontâneo.
— Espontâneo... eis ai uma coisa que realmente gosto, espontaneidade.
— Já percebi. Entre aqui na água a faça um teste para saber se é verdade sobre gostar de mim.
Uragan removeu a túnica, seu corpo era magro mas muito bonito, a pele em tom uniforme, era magro mas com músculos bem torneados. Entrou na água, ficaram sentados um de frente para o outro.
— E então?
— Sabe o que um beijo?
— Sim ja vi pessoas se beijando.
— Então me beije. — Lacínio pediu.
— O que? Porque?
— Porque o beijo é um ato de amor. Se você cultivar sentimentos por mim então o beijo vai ser bom, caso contrário não sentirá nada.
— Eu nunca beijei ninguém antes.
— Eu imaginei, a parte sobre ser um Dragão e viver com os oito irmãos meio que deixa claro que você não vivenciou isso.
— E você já vivenciou?
— Eu já fui beijado antes, mas não senti nada pelas pessoas que me beijaram.
— E acha que pode sentir algo de bom se eu te beijar? — Uragan tinha as orelhas muito vermelhas e parecia não saber o que fazer com as próprias mãos.
— Eu acredito que com você sim.
— Observei a humanidade desde que foi criada, mas é muito diferente ser um humano do que apenas assistir. Ser humano é surpreendente.
Lacínio se inclinou para frente os lábios dos dois se tocaram, quando voltou a posição original segurou as mãos de Uragan sob a água quente.
— O que achou?
— Acho que foi muito rapido.
Eles se beijaram novamente mas dessa vez não só encostaram lábios, cada um pôde sentir o sabor da boca do outro é só pararam quando Lacínio ficou sem fôlego.
— Você estava certo. — Uragan constatou.
— Sobre o que?
— Sobre eu gostar de você. Você também gosta de mim não é?
— Uragan eu amo você.
O sentimento de amar e ser amado era magnífico, era como se coração estivesse quente dentro do peito. Mas isso passou, um frio profundo tomou conta de Uragan, a escuridão veio e o engoliu quando ele lembrou que isso tudo era só um sonho, um sonho que mostrou a parte bonita da história, a parte doce de sua memória, mas ele sabia, lembrava do quão doloroso foi o fim.
Lacínio se inclinou para frente e falou com um tom de voz diferente, mais grave.
— Mumu! Mumu eu não acredito que você ainda está aqui! Mumu Acorde!
II
— Mumu? Mumu acorde, vamos!
Murilo abriu os olhos lentamente e viu Ferrabraz com o rosto bem acima do dele.
— Mumu porque não votou para o hotel? Já passa das três da manhã, eu voltei agora, te procurei no hotel e... Mumu? O que foi?
— Você disse para eu esperar aqui.
Murilo estava deitado sobre uma toalha no chão da clareira da floresta ao lado das sobras de um sanduíche de queijo agora tomado por formigas. Quando abriu os olhos totalmente não pode conter as lágrimas, não chorou com sons nem fez caretas, apenas tinha muita água escorrendo dos olhos encharcando as bochechas.
— O que? Você se machucou? O que aconteceu? — Ferrabraz perguntou aflito.
— Nada, não foi nada.
— Mas está chorando... — Ferrabraz tocou o rosto úmido dele.
— Tive um pesadelo, sonhei com uma lembrança do meu passado, não se preocupe com isso.
— Mas as lágrimas não param de cair, você tem certeza de que está bem?
— Tenho. Porque demorou tanto?
— Tive de me transformar, me tornar um demônio completo para resgatar Smeralda. Demora um pouco para que eu retome essa aparência normal, então esperei no inferno até que fosse homem novamente.
— Tudo bem.
— Você ficou aqui o dia todo?
— Não, sai para dar uma volta, mas fiquei aqui a maior parte do dia te esperando.
Ferrabraz o ajudou a sentar.
— Me desculpe, se eu soubesse que estava aqui sozinho...
— Eu estou sozinho faz muito tempo, estou acostumado.
— ...Você sonhou com o que? Como foi o pesadelo?
— Não quero falar disso. — Murilo saiu de cima da toalha, a dobrou e enfiou dentro da mochila.
— As vezes falar ajuda.
— Você acha? Eu sonhei com um rapaz que conheci dois mil anos atrás nas terras de Labraunda.
A boca de Ferrabraz abriu e fechou mas nenhuma palavra saiu dela, apenas seu rosto pálido ficou ainda mais sem cor. Murilo imediatamente se arrependeu de ter falado, para impedir que esse assunto prosseguisse mudou o rumo da conversa.
— Não comi nada o dia todo, só dei uma mordida naquele sanduíche, o que serviu para a descobrir que eu detesto cheddar. Pode me levar para comer alguma coisa?
Ferrabraz assentiu movendo acenando a cabeça, em um clarão luminoso desapareceram da floresta e apareceram dentro do banheiro de um Mcdonald's aberto vinte e quatro horas, Murilo ficou sentado em uma mesa em um canto isolado enquanto Ferrabraz fazia o pedido no balcão.
Sozinho olhando distraído pelo vidro cheio de marcas de dedos de uma das grandes janelas Murilo pensava em Lacínio, e em como seu proprio coração estava confuso em querer estar com aquele Lacínio humano do passado ou tentar recuperar este Lacínio do presente, este que era um demônio.
Ferrabraz colocou sobre a mesa duas bandejas de plástico cheias de hambúrgueres, batatas fritas, copos de suco de uva, dois potes de sorvete e se sentou parecendo um tanto desconfortável.
— A... a missão acabou, Smeralda está com Lucifer.
— É a missão acabou, me pediram para a encontrar e eu a encontrei, te pediram para a sequestrar e você assim fez. Acabou.
— É...
— Então agora eu posso ir embora, voltar para o vazio. — Murilo deu uma colherada no sorvete.
— Sim pode. Mas eu gostaria que ficasse um pouco mais.
— E porque eu faria isso? Sabe que por mais que eu esteja humano eu não sou humano.
— Eu sei mas quero que fique comigo um pouco mais. Eu... eu não sabia que tinha me reconhecido.
— Você não se parece em nada com quem já foi, sua pele está muito mais branca, o cabelo mais escuro, a altura mudou, o corpo está maior, os dentes mais alinhados, mas os olhos são os mesmos Ferrabraz. Você tem os olhos de um homem morto.
— Eu nunca morri, demônios são imortais.
— Lacínio morreu no dia em que você vendeu a sua alma. Agora você é Ferrabraz.
— Eu ainda sou Lacínio.
— Eu não tenho certeza ainda.
— Então vai embora? Vai me deixar de novo?
Murilo deu uma mordida em um hambúrguer e falou de boca cheia.
— Eu vou ficar.
Ferrabraz abriu um tímido sorriso.
—Acha que nós podemos...
— Não. Eu vou ficar porque tenho outros motivos. A minha missão com Lucifer acabou, mas eu tenho outras para cumprir.
— E quais são essas missões?
Murilo afastou o assunto balançando a cabeça.
— Ferrabraz quem é seu senhor? Quem é o detentor da sua alma?
— Você sabe, é Lucifer.
Murilo ergueu a mão direita e estendeu o dedo mínimo, imediatamente um fio prateado se ligou ao dedo da mão de Ferrabraz o fazendo mover a mão involuntariamente para frente e derrubar um dos sacos de batata no chão.
— O que significa isso? Como você invocou o elo de posse? Já era pra ter sido desfeito, e mesmo se estivesse ativo sou eu quem invoca. E porque está prata? Era dourado...
Murilo sorriu sem mostrar os dentes e não disse mais nada.
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