Médium Diva Belladonna Episódio 6









Médium Diva Belladonna




Episódio VI
"Obrigada Por Tudo"



De volta a Abril de 1976

Era seis horas da manhã quando ela sentiu o mundo tremer como se fosse um terremoto. Quando abriu os olhos viu o rapaz loiro que a chacoalhava pelos ombros.
Ela gritou:
- Tá amarrado Demônio! O quer de mim essa hora da madrugada?

Uriel falou:
- Bella, Charlotte já está lá em baixo te esperando.

Belladonna bufou de raiva, inclinou a cabeça para olhar o radio-relógio no criado mudo e disse:
- São seis horas da manhã! Seis horas! Eu dormi as quatro e você está me acordando as seis! Seu desalmado! O rádio-relógio nem despertou ainda!

Uriel riu e disse:
- Não está interessada para saber o que sua tia tem pra mostrar?

Belladonna se espreguiçou esticando os braços, bocejou e disse:
- Estou curiosa sim. Mas so de saber que aquela velha vai me torrar a paciencia com as histórias sobre a bruxaria antiga eu ja fico desanimada.

Uriel foi até o banheiro que ficava dentro do quarto e ligou a água quente para encher a banheira. De lá ele falou:
- É tão custoso assim ouvir as histórias de uma anciã?

Belladonna se sentou na cama e esfregou os olhos. Disse:
- Sim, é custoso porque ela vem com aquele papo de existirem tres tipos de Bruxas e bla bla bla... Que eu posso escolher ser do bem e do amor e bla bla bla... Ela parece uma maldita testemunha de Jeová. Sabe as testemunhas de Jeová que vem aqui e dizem "você cre que o paraíso será nesta terra?", então, Tia Doralice é mais irritante que isso.

Uriel voltou para o quarto e falou:
- Mas pelo que sei ela é bem poderosa.

Belladonna falou:
- Tá, veja bem, quando Doralice foi lutar contra Sarana ela levou umas dez Pombagiras. Sarana levou uma. Se a luta tivesse ido a diante Doralice teria morrido. Ela é forte por natureza mas as questões éticas dela a deixam fraca, ela não faz tudo o que pode fazer porque teme desequilíbrar o cosmos. Veja só essa frase "desequilíbrar o cosmos"! Coisa de velha sem sal.

Uriel abriu a porta do guarda roupa e pegou lá toalhas limpas para Belladonna Usar, deu nas mãos dela e disse:
- Você sabe que Doralice é uma mulher boa, tenha paciência com ela. Agora vá tomar banho, eu vou esperar lá em baixo.

Belladonna foi para o banheiro, entrou na Banheira e ficou ali de molho por alguns minutos. A manhã gelada estava deixando aquela imersão em água quente extremamente relaxante, e ela pegou no sono novamente. Rapidamente após fechar os olhos ela começou a sonhar, no sonho via Betânia gravida, porém na barriga dela havia algo estranho, algo anormal. Belladonna acordou, vestiu o roupão saiu do seu quarto que era no terceiro piso e desceu os seis lances de escadas até o salão no térreo. Uriel e Charlotte estranharam muito ela descer assim com os cabelos molhados e vestida em um roupão de banho, mas Belladonna os ignorou, assim que chegou na base da escada foi até o telefone e discou o número de Eduardo.
Assim que atenderam quem disse "alô" foi a esposa dela, e Belladonna dona disse:
- Alô querida, aqui quem fala é aquela mulher por quem o seu marido é perdidamente apaixonado, você poderia chamar ele por favor para que eu informe o endereço do motel no qual ele e eu iremos fornicar?

Não houve resposta do outro lado da linha. Belladonna esperou alguns minutos até que Eduardo atendesse. Ele disse:
- Belladonna não fique irritando a minha esposa!

Belladonna falou:
- Eduardo deixe essa vaca magrela de lado, eu preciso falar algo.

Eduardo disse:
- Você nunca acordou tão cedo. Aliás aposto que nem dormiu não é? Diga o que foi.

Ela falou:
- Eu acabo de ter um sonho, um sonho curto com Betânia. Ela esta ai?

Eduardo disse:
- Não, ela foi em uma vigilha, uma coisa que os crentes fazem se reunindo de madrugada. Uriel te contou que ela agora é crente?

Belladonna falou:
- Sim. Olha, tenha atenção nela. O sonho que eu tive não era nada bom, eu via ela gravida com um símbolo desenhado na barriga, um símbolo de fertilidade.

Eduardo falou:
- Pelo tom da sua voz você está mesmo preocupada.

Belladonna disse:
- Sim, entenda bem o que eu vou te falar, Betânia nunca poderá engravidar, é proibido.

Eduardo pergunto:
- Você diz isso desde que ela era criança mas nunca disse o motivo. Porque ela não pode engravidar?

Belladonna falou:
- Porque... Eu não gosto de falar nessas coisas mas é necessário. Betânia nasceu de mim, era normal que ela tivesse dons como eu tenho. Porém ela não os manifesta.

Eduardo disse:
- Sim eu sei.

Belladonna falou:
- O fato dela não manifestar os dons não significa que ela não os tenha. Se ela ficar grávida, o criança na barriga dela sugará essa vitalidade incubada.

Eduardo perguntou:
- E o que isso significa?

Belladonna disse:
- Isso significa que a criança ao nascer terá o dobro de poderes, pois além dos próprios dons ela roubara os de Betânia. Roubar os dons de uma... de uma bruxa Eduardo... Causa a morte dela. Se Betânia engravidar ela morre no parto.

Eduardo ficou mudo.

Belladonna o chamou:
- Alô? Eduardo? Esta na linha?

Ele respondeu falando devagar, assustado:
- Sim, eu entendi. Eu vou conversar com ela. Tenha um bom dia.

Eduardo desligou o telefone, Belladonna também. Ela subiu novamente as escadas para se arrumar.

Enquanto ela se vestia a imagem de Betânia gravida não saia de sua cabeça. Para uma médium um sonho nunca é sem significado.

Após uma hora ela desceu, vestia calças muito justas de algodão grosso cor de vinho com a cintura bem alta e uma camisa branca de mangas curtas com decote canoa. Nas orelhas ela trazia um par de brincos que eram grandes argolas de ouro, seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto e surpreendente ela apareceu com um franja reta na testa que quase cobria os olhos. Nos pés ela calçava um par de sandálias de tiras pretas com salto plataforma e no ombro levava uma bolsa de couro pequena.

Assim que ela desceu a escada e chegou no salão Uriel perguntou:
- Você cortou essa franja sozinha? Agora?

Belladonna respondeu:
- Sim. Achei que combinava com meu visual. Além do mais meu cabelo está crescendo mais rápido agora, se eu enjoar é so esperar umas semanas que a franja desaparece.

Charlotte estava sentada de pernas cruzadas em um sofa antiquado que ficava próximo aos pés da escada. Ela estava vestida com uma grande bata roxa que tinha um degrade de tons, parecia muito hippie. Ela também usava uma peruca loira cacheada e um par de sandálias rasteiras em couro cru. Quando ela viu Belladonna arrumada falou:
- Bella está linda. agora vamos logo que já é sete e meia e até chegar na casa de Tia Doralice demora.

Belladonna respondeu:
- É só o tempo de eu falar com Isaura e nos vamos.

Ela entrou no corredor que ficava ali próximo a base da escada e foi até o quarto de Isaura que ficava bem perto da cozinha. Ao bater na porta ninguém atendeu, mas Belladonna ouviu a voz de Isaura cantarolando na cozinha e foi até lá. Quando entrou viu Isaura de turbante e vestindo um pijama cor de rosa com estampa de cabeças de gato, ela estava embalando um bolo de chocolate em uma vasilha tupperware. Quando ela viu Belladonna ela disse:
- Bom dia Belladonna. Esta radiante hoje.

Belladonna se aproximou e agarrou a camisa do pijama dela e disse:
- Pelo amor de Deus, onde você comprou isso? Eu quero um igual.

Isaura com delicadeza sorriu e entrou a ela o pote com o bolo dizendo:
- Não, não roube o meu look. Agora leve esse bolo.

Belladonna olhou para o bolo, ele ainda estava quente e por isso soltava vapor deixando o pote embaçado. Ela perguntou:
- Parece delicioso. Pra que o bolo?

Isaura respondeu:
- Você não vê sua tia faz anos, não pode chegar na casa dela sem levar um presente. Eu me lembro que ela gostava muito de bolos, acho que gostará desse.

Belladonna apertou a bochecha dela e disse:
- Obrigada, você é muito fofa! Se tem um anjo nessa casa com certeza é você e não aquele diabo loiro.

Ela saiu da cozinha e foi para o jardim dos fundos onde Uriel e Charlotte já esperavam sentados dentro do carro. O Mustang havia sido lavado e sua lataria negra reluzia como um espelho.

A viagem começou.

Belladonna sentada no banco de trás, Charlotte no banco do carona e Uriel dirigindo.
As árvores passava rápido pela janela, a estrada era margeada por densas matas.

Charlotte estava se olhando no espelho, ela trazia um pequeno espelho em forma de coração e se mirando retocava o batom vermelho bombeiro.
Belladonna se sentia enjoada com a viagem, ela estava distraída pensando no sonho que teve. Uma hora depois, no meio do caminho Uriel rompeu o silêncio. Pelo reflexo do retrovisor ele olhou para Charlotte e perguntou:
- Sua tia sabe que você é uma Travesti?

Charlotte respondeu:
- Não, claro que não. a última vez que eu vi ela eu tinha barba. Ela nem sonha com isso.

Belladonna falou:
- Charlotte... Ela nem sabe que você usa esse nome não é?

Charlotte respondeu:
- Sim ela ainda me chama de Henrique. Eu não soube como explicar pelo telefone, então ja vou montada pra ela ver e entender.

Uriel perguntou:
- Essa nova cidade que ela está morando fica mais perto?

Charlotte respondeu:
- Sim, ela agora mora em Mangaratiba, é muito mais próxima a São Paulo do que aquela casa na cidade do Rio de Janeiro. Mas você conhece ela Uriel?

Uriel respondeu:
- Dona Doralice? Vi ela pessoalmente uma vez só uns quinze anos atrás, mas ja falei com ela por telefone muitas vezes.

Belladonna falou:
- Mangaratiba? É uma região Tamoio não é?

Charlotte respondeu:
- Sim, é uma cidade erguida em território indígena Tamoio. Faz todo o sentido, Tia Doralice é envolvida com Caboclos.

Uriel perguntou:
- Eu nunca falei com um Caboclo. Ja vi espíritos assim mas nunca tive um diálogo. Me parece muito interessante.

Belladonna falou desanimada:
- Ah não, Caboclos são um horror, chatos de galocha. Eles quando falam comigo sempre vem com aquele papo furado de "tenha mais amor no coração" ou "tenha fé em Deus", e blá blá blá.

Charlotte completou:
- "A maldade não leva a nada".

Belladonna falou:
- Frases feitas, bordões.

Uriel abriu mais o vidro deixando o vento entrar, o zumbido da estrada era suave devido a alta velocidade. Ele falou:
- Mas isso não é um ponto negativo, Caboclos são espíritos muito evoluídos, muito positivos. E pelo que você tinha me dito o Caboclo da casa de Doralice é um antigo Deus indígena, então ele seria superior e diferente de todos os demais.

Belladonna falou:
- Sim sim, chamamos de Caboclo da Lua ou Caboclo Lua Branca mas na verdade ele é Rudá, um Deus muito antigo que perdeu seu status de divindade e virou entidade.

Uriel perguntou:
- Perdeu status?

Belladonna falou:
- Imagine um presidente que de repente é rebaixado a prefeito. É mais ou menos isso.

Charlotte falou:
- Rudá é de uma sensualidade absurda. Ele gosta de homens e mulheres, muito a minha cara.

Belladonna riu alto e disse:
- Pena que ele te despreza não é meu amor... Ele não aprova algumas atitudes suas.

Charlotte ficou calada, como se estivesse constrangida.

Uriel falou:
- Belladonna, desculpe a minha curiosidade mas mudando de assunto, o que foi aquele telefonema hoje cedo? Você parecia muito aflita.

Belladonna respondeu com a voz baixa:
- Coisas entre eu e Eduardo. Nada demais.

A viagem foi longa, eles foram papeando, jogando conversa fora até que chegaram a casa de Dona Doralice. A casa era grande, térrea de telhas de barro pintado de vermelho vivo com as paredes de fora pintadas de salmão. Havia um florido jardim na entrada, mas estranhamente a rua era absolutamente deserta, a casa era a única do lugar e todo o resto era matagal.

Uriel estacionou bem na frente, e então disse:
- Segundo as referencias, a casa é essa.

Belladonna olhou para fora e então abriu a porta, e sem perceber fincou o salto plataforma em uma poça de lama espirrando barro no pé e na panturrilha. Ela bufou de raiva e disse alto:
- Lugarzinho amaldiçoado!

Charlotte e Uriel desceram do carro com mais cuidado e não se sujaram. Os três caminharam pelo jardim até chegar na entrada na casa onde Belladonna bateu palmas próximo a uma pequena varanda. Logo Dona Doralice apareceu, abriu porta lentamente. Ela vestia um vestido de alças finas e comprido até metade das panturrilhas, era de um tecido florido, flores azuis em um fundo branco, nos pés ela calçava chinelos de borracha azuis também. Ela estava muito velha, se apoiava em uma bengala e andava com dificuldade. Assim que ela abriu a porta e viu os três ali disse:
- Ah... Achei que não vinham. Mas... onde está Henrique?

Charlotte deu um passo a frente e de modo tímido acenou dizendo:
- Estou aqui Tia.

Doralice o encarou por um instante, então disse:
- Henrique... Até que fim tomou coragem. Parabéns.

Charlotte sorriu e respondeu:
- Obrigado Tia.

Doralice sorriu franzindo todas as rugas do rosto e os convidou para entrar dizendo:
- Venham meninos, entrem, eu fiz bolo de aimpim e pudim de leite moça, venham comer antes que Kainana sinta o cheiro e venha devorar tudo.

Os tres subiram a escadinha de três degraus de madeira que rangia a cada passo. Foi então que Doralice disse:
- Belladonna de meia volta e va lavar esses pés na mangeira do jardim, não suje minha casa, eu limpei hoje.

Belladonna olhou para olha cerrando os olhos com odio e disse:
- Você realmente vai me fazer lavar os pés no jardim?

Doralice falou:
- Minha casa não é curral para você vir espalhando lama. Vá lavar.

Uriel pegou Belladonna pela mão e disse:
- Eu vou com você, eu te ajudo.

Belladonna sorriu para ele e disse:
- O que seria de mim sem você? Vamos.

Eles foram ate o meio do jardim onde havia uma torneira com uma mangueira laranja rosqueada, Uriel se abaixou, abriu a mangeira, desfivelou os fechos das sandálias dela e as removeu dos pés, então as lavou. Em seguida ele lavou os pés de Belladonna com toda a delicadeza possível. Após isso ele retirou a própria camisa e com ela secou as sandálias e os pés dela.

Belladonna olhando o gesto se sentiu muito comovida, mas tentou disfarçar. Ela disse:
- Sujou sua camisa, e agora?

Uriel respondeu:
- Não se preocupe, eu sempre deixo uma troca de roupa minha e sua no porta malas, para o caso de alguma coisa acontecer nos nossos... "atendimentos" e precisarmos trocar de roupa ou até mesmo nos disfacar. Tenho até um par de perucas lá. Eu vou lá pegar a camisa, você pode entrar na casa, eu aproveito e pego o bolo que Isaura fez e levo pra sua tia.

Belladonna concordou acenando com cabeça, após estar calçada ela entrou na casa.

A casa era simples, pequena. Ela entrou na sala principal onde havia um sofa encapado com um tecido rosa com estampa de margaridas, e ver aquele sofá deixou Belladona admirada de como Tia Doralice tinha a capacidade de se superar em suas breguices. Ela passou por um corredor até chegar na cozinha onde Doralice e Charlotte conversavam sentadas mesma comendo pudim. Elas pareciam muito animadas, mas quando Belladonna entrou o clima mudou, ficou tenso.

Belladonna suspirou aborrecida, puxou uma cadeira e se sentou.

Doralice pegou um prato de sobremesa e cortou um pedaço do pudim, serviu para Belladonna e disse fria:
- Coma.

Belladonna olhou para o pudim e falou:
- Isso engorda.

Doralice respondeu:
- Não você. Eu sinto cheiro de magia em você, eu nunca te vi tão bonita. Sua beleza não está natural, você ja tem mais de quarenta anos...

Charlotte completou:
- Quase cinqüenta!

Doralice continuou:
- Sim quase cinqüenta anos, mas eu olho pra você e vejo uma moça de vinte. Você não está matando crianças está?

Belladonna deu uma garfada no pudim, e antes de levar a boca respondeu:
- Sabe quantas vezes na vida você ja me fez essa pergunta? umas mil. Eu não sou a minha mãe, eu não mato crianças em prol de juventude.

Doralice falou:
- Bom, seja lá o que você fez, não me parece nada certo. Mas eu não chamei vocês aqui para falar de beleza, tenho um assunto importante para tratar.

Charlotte perguntou:
- O que é?

Doralice respondeu:
- A colher de pau que sua mãe usava, ela está comigo. Eu pretendo entregar ela a um de vocês dois, afinal são os verdadeiros herdeiros de Sarana.

Belladonna se ajeitou na cadeira e falou:
- A colher de pau que pertenceu a matriarca da nossa família e que minha mãe roubou? Ela esta com você desde quando?

Doralice falou:
- Mais de vinte anos, desde o dia em que ela morreu.

Charlotte falou:
- O dia da Roda das Princesas?

Doralice disse:
- Isso.

Belladonna perguntou:
- Porque so agora está contando isso? Se essa colher de pau é nossa, então deveria ter dado ela para nos vinte anos atrás.

Doralice falou:
- Não, vocês não tinham competência para proteger a colher. E até agora eu penso que não tem. Mas eu não tenho escolha.

Charlotte tocou o ombro de Doralice e disse:
- Tia explique melhor, nós ainda não conseguimos entender.

Doralice se levantou e saiu da cozinha por um momento, quando voltou ela trazia nas mãos um canudo de couro. Ela se sentou e tirou de dentro do canudo uma folha de papel que estava enrolada, guardada dentro dele, a folha já estava amarelada, parecia muito velha. Ela esticou a folha sobre a mesma mostrando que se tratava de uma árvore genealógica, os nomes de toda a família estavam ali incluindo Belladonna, Henrique, Betânia e o dela própria.



Belladonna analisou a folha e disse:
- Essa é a árvore genealógica da nossa família?

Doralice respondeu:
- Sim. É antiga, datilografada há muito tempo. Porém eu tomei a liberdade de incluir esses últimos nomes a mão.

Henrique olhou para a folha e após ler ele perguntou:
- Porque os nomes Beatrix e Helena estão escritos em vermelho?

Doralice falou:
- Nesta época houve uma guerra dentro da família e ela se separou. A guerra foi encabeçada por estas duas mulheres, e então a dependência de ambas ficou dividida, nos somos descendência de Helena. A guerra tornou nossos próprios parentes... Inimigos. Estão vendo aqui estes nomes que eu escrevi a mão, Cassandra, Vivian e Fabrizio, eles estão atrás da colher de pau, e eles não devem por a mão nela.

Belladonna perguntou:
- Eu sei que existe todo um mistério com esse negócio de colher de pau e que isso era uma espécie de varinha de condão da matriarca Aiyra, mas eu ainda não compreendo a real importância dela. Pode explicar um pouco?

Doralice suspirou fundo e então falou:
- Essa "varinha de condão" como você diz... Essa ferramenta é amaldiçoada. Ela tem grande poder de fazer tudo o que é ruim. Ela perverte, macula. Eu não sei como destruir ela, e acredite, se eu soubesse como destruir essa colher de pau eu faria.

Belladonna disse:
- Então você irá me dar a colher?

Doralice acariciou as costas das mãos de Charlotte e falou:
- Henrique você pode ir la fora ver porquê o alemãozinho está demorando tanto?

Charlotte fez uma cara de confusa e disse:
- Que alemãozinho?

Belladonna falou:
- Ela chama o Uriel assim.

Charlotte se levantou e foi até o lado de fora ver se Uriel estava bem.

Doralice olhou para Belladonna e falou:
- Eu sei que você quer a colher, você é gananciosa como sua mãe.

Belladonna deu um tapa na mesa fazendo um ruído alto e disse:
- De novo me comparando com minha mãe! Pare com isso!

Doralice falou séria:
- Escute com atenção. Eu darei a colher para Henrique.

Belladonna falou:
- Então porque me chamou aqui? Porque não chamou ele sozinho? Queria por acaso me causar aborrecimento?

Doralice falou:
- Eu vou dar a colher a ele, mas de todo modo ela será sua.

Belladonna falou:
- Como assim? Eu duvido que ele vá me dar, não é da índole dele abrir mão das coisas.

Doralice falou séria novamente:
- Ele vai morrer. Ele já está morrendo.

Belladonna ficou muda.

Doralice continuou:
- Você é uma bruxa poderosa, mas seu excesso de vaidade, seu enorme narcisismo não te deixar perceber as coisas. Ele está morrendo, esta exalando cheiro de morte. Eu vou dar a colher para ele guardar, mas ela seria sua assim que ele se for.

Belladonna perguntou:
- Você não pode curar ele?

Doralice respondeu:
- Por mais que eu seja herbalista, doenças novas surgem todos os dias e eu já estou muito defazada para poder ajudar.

Uriel e Charlotte entraram na cozinha, Uriel trazia o pote de bolo nas mãos e gentilmente entregou para Doralice dizendo:
- Aqui está, esse bolo Isaura fez especialmente para a senhora.

Doralice abriu um sorriso largo e pegou o pote, o abriu e aproximou do rosto cheirando, então disse:
- aquela velha sabe mesmo como fazer um bolo! Da pra sentir o cheiro de cada ingrediente, e ela teve o cuidado de por chocolate meio amargo não foi? Ela com certeza se lembra que eu não sou fã de chocolate ao leite.

Uriel respondeu:
- Isaura gosta muito da senhora, ela pediu para convida-la para uma visita, ela ficaria muito feliz.

Doralice sorriu e falou:
- Diga a ela que com certeza irei.

Belladonna interrompeu o momento dizendo:
- Ta tudo muito bom, mas temos que pegar a estrada. Cade a colher?

Doralice se levantou e foi buscar, quando voltou trazia uma caixa comprida em madeira vermelha com o simbolo da suástica invertida de Lakshmi desenhada em preto. Deu a caixa para Charlotte dizendo:
- Proteja bem essa caixa.

Charlotte pegou o pacote e então se despediu. Os três entraram sairam da casa, entraram no carro e foram embora.

A vida andou novamente. É, a vida não para. Charlotte caiu no mundo em suas viagens sem destino, México, Canadá, Budapest... Belladonna e Uriel atenderam centenas de clientes e até algumas missões pesadas foram executadas. Betânia foi para a África, ela agora era missionária da igreja Assembléia, ela havia se tornado uma evangélica fervorosa. Muita coisa aconteceu. Doze anos se passaram. Mas o que se pode dizer é que muita coisa ainda iria acontecer.
Os divisores de água finalmente chegaram.

Janeiro de 1988
Uriel e Belladonna viajaram para a Bahia, havia uma celebração em um terreiro de Candomblé histórico e a sacerdotisa da casa era Gimena de Ogun, uma grande amiga de Belladonna. As pessoas do Candomblé tem hábitos muito festivos e isso sempre levava Belladonna de um canto a outro do país, mesmo que ela em si não fosse Candomblecista ela era muito envolvida neste meio.
Ja passava das dez da noite, a festa aconteceu lindamente, mas no meio do rito religioso ela se sentiu muito mal. Por um momento pensou que estava indigesta por ter comido muito azeite de dendê, mas não era isso. Havia um mal estar muito forte que vinha de dentro. Ela sentiu a necessidade de ligar para casa.
Ela pediu permissão em usar o telefone, obviamente permitiram. Ela ligou para a mansão mas ninguém atendeu. Ela tentou várias vezes mas ninguém atendeu aos telefonemas. Ela então saiu do terreiro, foi para a rua tomar um ar. Brotas era um lugar lindo.

Belladonna andou um pouco na noite quente, então sentiu vindo da esquina aquele costumeiro cheiro de perfume. Ela foi até lá e viu duas moças com suntuosos vestidos rindo alto. Uma era de pele morena, a outra de pele branca, as duas com longas cabeleireiras negras.

Belladonna se aproximou e as comprimentou:
- Dama da Noite, boa noite. Sete Saias, como está?

As duas gesticularam com as mãos respondendo o cumprimento.
Sete Saias disse:
- Filha desnaturada... Sua mãe morrendo e você ai em festa de macumba... Que coisa feia.

Belladonna respondeu confusa:
- Minha mãe? Minha morreu à décadas, do que está falando?

Sete Saias disse:
- Mãe é quem cria.

Belladonna sentiu um peso enorme no coração e murmurou:
- Isaura...

Sete Saias disse:
- Corre, corre que ainda dá tempo de dizer adeus.

Belladonna virou com tudo, correu até o terreiro, Uriel estava na porta esperando por ela.
Assim que ele a viu disse:
- Bella, onde estava? Eu procurei muito por você.

Belladonna respondeu:
- Você tem o número de telefone daquela vizinha da frente?

Uriel disse:
- A dona Célia? Sim claro. Aconteceu alguma coisa?

Belladonna falou:
- Eu acho que aconteceu algo com Isaura! Ligue pra ela rápido!

Uriel entrou no terreiro e foi até uma sala nos fundos onde estava o aparelho telefônico, ele telefonou para a vizinha, na ligação ele disse:
- Alô dona Célia? Sou eu, Uriel, o vizinho do casarão da frente. Bem... A senhora pode me fazer um grande favor? Eu estou fora da cidade e Isaura não atende o telefone, seria possível a senhora ir lá ver se ela esta bem? Sim ela ja tem setenta e seis anos, eu fico preocupado. Se a senhora puder dê a volta pelos fundos, ha uma chave extra dentro de um vazo na entrada. Eu vou ligar lá em casa daqui a cinco minutos ok? Obrigado.

Ele e Belladonna esperaram os cinco minutos e então ligaram na casa, mas o telefone estava ocupado. Eles esperaram mais cinco minutos e ligaram novamente, dona Célia atendeu, Uriel perguntou:
- Dona Célia está tudo bem ai?

Dona Célia respondeu:
- Meu filho, não. Eu acabei de ligar para a ambulância, entrei na casa e encontrei Isaura desmaiada na cozinha, eu estou aqui sozinha com ela esperando a ambulância mas... Ela nao acorda de jeito nenhum.

Uriel falou:
- Nossa... Tem como a senhora acompanhar ela ao hospital? Eu estou indo imediatamente pra casa. Apenas por favor pergunte aos paramédicos para qual hospital vão e deixe anotado no bloquinho de papel que estava no armário.

Uriel desligou, Belladonna perguntou:
- O que aconteceu?

Ele respondeu:
- Dona Célia encontrou Isaura desmaiada, ela chamou a ambulância.

Belladonna falou:
- Vamos embora agora!

Uriel falou:
- de carro demora vinte e três horas dirigindo direito. Eu vou de carro, você vai de avião, eu te deixo no aeroporto internacional de Salvador em vinte minutos, vamos!

Eles dirigiram até o aeroporto onde Belladonna comprou uma passagem para São paulo, teve sorte de ter um vôo da Transbrasil com assentos disponíveis, esperou até a meia noite e meia, depois duas e horas e vinte minutos de vôo até o aeroporto internacional de Guarulhos, de lá mais quarentena minutos ate em casa onde viu o nome do hospital anotado por dona Célia no bloquinho de recados do armário, e então foi para lá de táxi. Eram quase cinco horas da manhã quando ela chegou no hospital, correu para a recepção e perguntou sobre Isaura, e a recepcionista questionou:
- Quem você veio ver?

Belladonna disse:
- Isaura! Ah sim, é Isaura Rosa de Campos, ela tem setenta e nove anos e deu entrada antes da meia noite.

A recepcionista folheou o livro de entradas e viu ali o nome, então perguntou:
- Qual seu parentesco com ela?

Belladonna falou:
- É minha amiga.

A recepcionista disse:
- Desculpe mas so parentes tem permissão de entrar.

Belladonna falou impaciente:
- Escute moça, eu moro com Isaura a mais de quarenta anos, eu sou a única família que ela tem?

A recepcionista olhou para Belladonna e disse:
- Você não parece ter mais que vinte e cinco anos de idade meu bem, pelo menos pense antes de contar mentiras.

Belladonna então respirou fundo e falou com um tom de voz sério:
- Me diga em que quarto ela esta.

A recepcionista respondeu:
- Não. E se insistir eu serei obrigada chamar a segurança.

Belladonna então se debruçou sobre o balcão da recepção e falou:
- Olhe nos meus olhos.

A recepcionista olhou nos olhos dela e algo fora do comum aconteceu, os olhos de Belladonna estavam avermelhados, eram como se estivessem em chamas.
Belladonna disse:
- Quando a carne de Adão, quando sangue de Adão uma feiticeira confrontar, tudo o que se é acabará.

A recepcionista ficou atônita, parada como se estivesse congelada.

Belladonna falou:
- Me diga o quarto em que Isaura Rosa de Campos está.

A recepcionista falou pausadamente como se não controlasse a própria boca:
- Terceiro andar, quarto comunitário de observação número dezesseis.

Belladonna subiu as escadas para o terceiro andar enquanto a recepcionista ficou lá sentada na recepção como se estivesse dormindo de olhos abertos.

Quando chegou na porta do quarto Belladonna viu a vizinha Dona Célia que estava sentada nos bancos de madeira. Ela agradeceu a mulher e deu a ela uma bonificação em dinheiro, que obviamente foi prontamente aceita. Logo ela entrou no quarto e viu Isaura ali. Eram cerca de doze macas, o quarto era enorme, so haviam mulheres de idade ali, a maca de Isaura era a última perto de um grande vitrô. Ela se aproximou e se sentou em um banco ao lado da cama. Isaura estava cheia de fios, eletrodos que mediam os sinais vitais, havia também uma mangueira de oxigênio próxima as narinas. Ela estava muito pálida. Assim que Belladonna se sentou Isaura abriu os olhos. Foi um longo tempo, as duas olhando uma para a outra, um aparelho ao lado fazia um compassado som de beep-beep, batidas do coração.
Então Belladonna quebrou o silêncio:
- Isaura o que aconteceu?

Isaura disse:
- Ah... O médico disse muitas coisas... Infarto parece... problema nas coronárias. Mas a verdade é que estou velha, o meu mal é a velhice.

Belladonna falou:
- Eu vou dar um jeito nisso, olhei pra mim, eu tenho cinqüenta e nove anos e pareço ter menos de trinta, eu vou falar com Samyaza e ela vai ajudar você também.

Isaura tossiu algumas vezes, depois respondeu:
- Não, eu não quero isso. Eu quero seguir o curso natural das coisas. Viver e morrer como todo mundo.

Belladonna pegou a mão de Isaura e falou:
- Mas se você morrer eu vou ficar sozinha.

Isaura apertou a mão dela firmemente e falou:
- Eu trabalhei para o seu pai desde menina, e então quando ele se foi eu cuidei de você como uma filha. Foram mais de quarenta anos com você, mas de dez anos com ele, a minha vida toda com vocês. Eu amo você Bella, amo muito. Mas eu estou cansada de viver.

Belladonna ia responder mas sentiu um arrepio no braço esquerdo e então olhou para trás, ela viu o que já esperava ver, havia um anjo muito parecido com Uriel mas que tinha os cabelos pretos bem cacheados, a pele era clara mas as bochechas bem avermelhadas. As asas eram negras e ele vestia apenas uma saia purpura com alguns símbolos dourados bordados. Belladonna olhou para ele e perguntou:
- Servo de Thanatael?

Ele olhou para ela surpreso por estar sendo visto, lentamente balançou a cabeça para baixo e para cima em afirmação.

Belladonna falou:
- Preciso de mais tempo, eu vou falar com Samyaza e ela vai impedir isso. Isaura não morrer hoje.

Isaura com a voz fraca falou:
- Não. Você não falará de nada com ninguém. Eu não consigo ver direito, mas sei que tem um vulto bem atrás de você, e eu sei o que é... É um anjo da morte. Eu estou pronta.

Belladonna falou:
- Não Isaura, você não precisa ir, você não precisa morrer!

Isaura disse:
- Mas eu quero. Bella eu estou feliz que você conseguiu chegar, estou feliz que você pôde se despedir de mim. Mas eu ja vou.

O anjo ali em pé falou:
- Eu vou levar ela agora. Se tiver algo que queira dizer... Este é o momento.

Belladonna olhou para Isaura e disse:
- Muito obrigada, muito obrigada por tudo o que fez por mim, eu não tenho como expressar a gratidão e o amor que eu tenho por você. Eu vou sentir muito a sua falta.

Belladonna apertou a mão de Isaura e não conseguiu dizer mais nada, apenas deixava as lágrimas rolarem pelo rosto. O anjo se aproximou e ficou bem ao lado da maca, então ele se debruçou sobre Isaura e a beijou na testa.
O som do aparelho que media o batimento cardíaco mudou para um tom agudo.
Estava confirmado o Óbito.

Uriel chegou por volta de duas da tarde, ele correu o máximo que pode e assim economizou algumas horas de viagem.
Belladonna estavam sentada no banco de madeira do corredor do hospital, o corpo e Isaura já havia sido levado ao subsolo para ser preparado para o enterro.
Uriel chegou e deu para Belladonna um lenço dizendo:
- Sua máquiagem esta borrada, tem manchas pretas escorrendo dos seis olhos.

Ela olhava fixamente para baixo, respondeu:
- Ligue para todo mundo. Principalmente para Tia Doralice e para Henriq... Charlotte. Eduardo, Rebecca, e todos os demais. Se puder ligue para as primas dela. Avise todo mundo. Meu pai foi interrado aqui em São Paulo, o jazigo dele fica no cemitério do Tremembé, eu gostaria que ela fosse enterrada lá.

Uriel organizou o velório para a manhã do dia seguinte, o corpo de Isaura foi velado no casarão. Encheu de gente.
A vizinhança toda, todo aquele povo do bairro que detestava Belladonna e amava Isaura. As primas de São Caetano do Sul. As Iyalorixas que por respeito somente naquele dia se vestiram de preto. As irmãs do centro espírita também vieram. Amigos de fora da cidade eram muitos.
Doralice não falou.
Eduardo também veio.
Charlotte não conseguiu chegar a tempo, o vôo atrasou.
Belladonna não ficou perto do caixão, parecia ter medo de olhar pra ele e confirmar que Isaura realmente tinha morrido.
As quatro da tarde o rabecão veio buscar o caixão, mais de vinte carros sairam de carreata atrás até o cemitério do tremembé.
Dia nublado, todos de luto.
Isaura era amiga de todo mundo.
Pelo caminho as Iyalorixas começaram a cantar uma cantiga que dizia assim:

"Quem é esta que avança como a aurora,
temível como exército em ordem de batalha,
brilhante como o sol e como a lua,
mostrando o caminho aos filhos seus"

O caixão foi colocado dentro do mausoléu enfeitado com estátuas de anjinhos gorduchos. Eram tantas flores que muitas não couberam lá dentro.

Antes que o mausoléu fosse fechado o coveiro perguntou se alguém queria falar algo, imediatamente todos olharam para Belladonna. Ela estava ali vestida com um vestido preto simples até os joelhos, meia-calça escura e sapatos de salto alto de veludo preto. ela usava um chapéu de aba larga e muitas joias, parecia uma estrela de Hollywood. Talvez por ser a última vez diante da grande amiga ela tenha se arrumado daquela forma, ela queria prestigiar Isaura.

Belladonna foi até a entrada do mausoléu e olhou para o caixão agora fechado. Ela engoliu seco, tentou parecer estar bem. Com a voz alta para que todos ouvissem ela disse:
- Isaura. Ela veio para a minha vida como alguem que vem só de passagem. Eu não tinha mãe, como vocês sabem eu vivia com meu pai adotivo, e ele estava muito preocupado comigo ja que ele era muito sábio em diversos assuntos, mas não sabia nada quando se tratava de meninas jovens. Eu me lembro o dia que Isaura chegou, ela veio tão bonita, veio para trabalhar em casa como minha babá. Papai a contratou justamente porque ela tinha similaridades conosco e nisso não iria nos julgar. Isaura cumpriu o seu contrato de seis meses, mas eu pedi pra ela ficar. Ela me tratava de um jeito muito bom, um jeito que eu nunca pensei ser tratada. Isaura me amava. Muitas vezes eu fui rude com ela, e ela relevava. Eu pedi pra ela ficar e ela foi ficando. Quando papai morreu ela ficou do meu lado. Quando eu me casei e tive a minha filha ela me ajudou. Quando eu sai do país ela foi comigo. Quando eu não tive dinheiro para pagar o salário dela... Ela não se aborreceu, e me emprestou dinheiro na minha maioria dificuldade. Ela cozinhava em casa, cozinhou até antes de ontem. Ela não precisava mais, o Uriel sabe cozinhar muito bem, mas ela cozinhava porque sabia que eu amava a comida dela. Ela me deixava dormir no quarto dela quando eu estava triste. Nós discutíamos sobre as novelas como quem discute a paz mundial. Eu não sei bem o que fazer sem Isaura, eu sempre tive ela como meu norte, e não importava a loucura que eu fizesse eu tinha a certeza que ela não me abandonaria. Muitos de vocês podem pensar que ela morava na minha casa de favor, ja que não tinha mais idade para trabalhar, mas não, na verdade ela quis se mudar muitos anos atrás, ela viver da pensão que tinha e das economias, que segundo ela eram um bom montante, porém eu a impedi. Eu implorei para ela não ir. Eu sou rodeada de pessoas, minhas agendas telefonicas tem centenas de numeros, talvez milhares, mas sem Isaura eu estou realmente sozinha. Não existe alguém que vá substitui-la. Um pedaço de mim morreu junto com ela. Doce Isaura, muito obrigada. De tudo nessa vida, de você eu posso dizer com toda a sinceridade... Sentirei todos os dias a sua falta.

O mausoléu foi fechado ao som das palmas de todos os presentes.

Isaura acabou.

Uriel levou Belladonna de volta para o casarão, foi com ela para o quarto, era visível que ela não estava bem. Eles dormiram juntos, abraçados. O travesseiro ficou encharcado. No escuro do quarto ela podia chorar sem medo.

No dia seguinte as dez da manhã a campainha tocou, Uriel foi abrir a porta. Charlotte chegou. Quando Belladonna desceu as escadas ela tomou um susto, Charlotte estava magra, muito magra, debilitada. O corpo atlético de homenzarrão havia sumido e no lugar ficou apenas um frangalho.

Belladonna foi até ela e sem nem mesmo cumprimentar ou perguntar se havia feito boa viagem ela ja foi perguntando:
- Você está doente?

Charlotte vestia roupas masculinas, estava de Henrique. Até um pouco de barba tinha no rosto. Respondeu:
- Desculpe não ter vindo para o enterro de Isaura.

Belladonna falou novamente:
- Charlotte você está doente?

Charlotte baixou a cabeça e num sussurro respondeu:
- AIDS.

Belladonna sabia o que era AIDS, era a doença do vírus da "Síndrome da imunodeficiência humana", ela ja tinha visto no noticiário. Ela sentiu vontade de fazer mil perguntas mas não teve coragem, apenas abraçou Charlotte.

Foram três meses muito difíceis, ver o irmão definhar foi algo muito ruim. Charlotte sofria com diarréias constantes, as opções e banhos que Doralice enviavam faziam mascarar os sintomas mas não amenizava a realidade.
A magia é algo que pode fazer quase tudo, mas esse "quase" vem sempre naqueles pontos onde mais precisamos e ela não pode ajudar.

No final dos três meses Charlotte faleceu.

Que ano terrível.

Sem herdeiros, tudo que era dela ficou para Belladonna, incluindo uma boa soma em dinheiro, alguns livros muito úteis e a colher de pau tão desejada.

Após a morte do irmão Belladonna entrou em uma fase depressiva, durante muito tempo não saiu de casa e não atendeu a nenhum cliente, passou a beber até se embriagar todos os dias.
Uriel fez o que pôde para cuidar dela, mas existem feridas que só o tempo cura.

Dezembro.
O natal estava próximo, Uriel montou a árvore e comprou as coisas para a ceia. Esse seria o primeiro natal sem Isaura. Agora eram só os dois.
Dia vinte e três logo cedo a campainha tocou, Uriel havia saído para comprar mais champagne. Belladonna estavam dormindo, mas a campainha era insistente, a pessoa na porta tocou muitas vezes e Belladonna acordou. De mal humor ela desceu as escadas para atender a porta, estava pronta para xingar o visitante de todos os palavrões possíveis mas quando abriu ficou sem reação. Era Betânia.

Betânia estava usando um vestido azul claro muito largo e o cabelo que antes era colorido agora era castanho natural comprido até o meio das costas. Ela não usava máquiagem, estava pálida. Mas o que fez Belladonna ficar chocada foi ver a enorme barriga dela, Betânia estava gravida.

Belladonna olhou para ela com uma expressão de incredulidade e perguntou:
- Menina o que aconteceu? Co-como aconteceu isso?

Betânia falou:
- Está frio aqui fora, eu posso entrar?

Belladonna deu alguns passos para trás dando espaço para a filha entrar dentro de casa. Betânia olhou para o salão vendo que tudo estava meio desarrumado, então disse:
- Isaura realmente faz falta não é?

Belladonna falou:
- Com certeza, mas não pela arrumação da casa. Faz muito tempo que eu já não permitia ela fazer esforço, era Uriel quem limpava e organizava tudo.

Betânia caminhou até um pequeno sofa de veludo vermelho que estava entulhado com uma pilha de roupas tinham chego da lavanderia. Ela leu o cartão em cima das roupas e viu que a data de entrega havia sido de uma semana antes, ou seja já fazia uma semana que aquelas roupas estavam lá. Ela falou:
- Eu presumo que Uriel não está arrumando a casa porque está perdendo todo o tempo que tem como você não é? Está fazendo drama de novo?

Belladonna fechou a porta e respondeu:
- Perdi Isaura, perdi Henrique, você acha que eu não tenho nenhum motivo para estar triste?

Betânia falou:
- Sim claro, eu também gostava muito de Isaura, sempre me tratou com muito carinho. Tio Henrique pra mim não passava de um estranho, mas eu jamais desejei mal a ele, não queria que aquilo tivesse acontecido. Porém... "Mamãe"... Todas estas coisas tristes e impactantes acontecem recentemente, já eu estou fora do país há mais de treze anos e não recebi sequer uma carta ou uma ligação sua.

Belladonna falou irônica:
- E porque eu ligaria? Seria impossível, eu me esqueci que você existia.

Betânia riu e respondeu:
- Eu já imaginava.

Belladonna se sentou no braço no sofá e disse:
- Seu pai te deu o meu recado?

Betânia passou a mão na barriga carinhosamente e disse:
- Ah o recado... aquele recado que dizia que se eu ficasse gravida eu iria morrer? Sim recebi.

Belladonna apontou para a barriga da filha e perguntou:
- Então isso é um suicídio? Porque se quiser eu dou jeito de você perder essa criança e então provavelmente você sobreviverá.

Betânia respondeu:
- Na verdade eu queria sim, queria abortar. Mas será que é possível?

Belladonna falou:
- Claro que sim.
Ela inclinou o corpo e esticou a mão para tocar na barriga da filha mas quando estava a poucos centímetros sentiu um baque como um choque elétrico a afastando.

Betânia disse:
- Sentiu? Isso acontece com todos os... Com todas as pessoas como você que tentam tocar a minha barriga.

Belladonna olhou para a barriga de Betânia e se concentrou, cerrou os olhos quando os fechando e então murmurou "Revele seus segredos", mas assim que disse essas palavras ela sentiu uma onde de choque a empurrando com força, e esse choque foi tão forte que a fez cair deitada no chão. Ela se levantou com rapidez e berrou assustada:
- Que demônio é esse?!

Betânia falou:
- É coisa do pai.

Belladonna perguntou:
- Quem é o pai?

Betânia disse:
- Eu não sei. Só o que sei é que não é humano.

Belladonna perguntou:
- Não é Humano? Como assim?

Betânia contou:
- Eu estava na África, passei por vários países fazendo trabalho voluntário com o grupo de missionários da igreja. Então eu cheguei em um pais chamado Benin, e fiquei em uma região chamada Sabé. Lá eu fiquei por um ano, e no fim do período houve uma festa de despedida dos missionários, uma grande festa.

Belladonna falou:
- Uma festa em uma aldeia de aborígenes? Isso nunca acaba bem.

Betânia falou:
- Aldeia? Sabé é um distrito, um bairro normal. Pare com essa idéia de que a África é um continente cheio de aldeias habitadas por indígenas desprovidos de inteligência, isso é racismo. O Benim em particular é um lugar razoavelmente bom, a maioria dos nativos dão bilingues e alguns até poliglotas, falam os dialetos antigos mas também francês, inglês e alguns português. Mas voltando ao assunto, nessa festa eu conheci um homem, um homem muito bonito que usava terno e uma cartola, estava muito bem vestido. A pele negra dele era um tom diferente, era opaca como se ele fosse feito de cera. Ele me chamou para ir com ele para a floresta e eu... Eu fui. Foi como se eu estivesse fora de mim. Foi automático. Na floresta nos mantivemos relações sexuais. Mas eu não me lembro dos órgãos sexuais dele, era como se ele não tivesse e ao mesmo tempo tivesse. Era tudo muito estranho. Eu acordei sozinha no mato no dia seguinte. Perguntei para todos os que estavam presentes na festa sobre o homem mas ninguém o viu, inclusive disseram que me viram indo para a floresta sozinha.

Belladonna se sentou novamente no braço do sofá e disse:
- Vamos fazer uma coisa, vamos para o porão consultar pêndulo.

As duas desceram para o porão, era um lugar baixo onde as vigas de sustentação estavam a mostra. Belladonna foi até um pequeno armário no fundo do lugar e pegou um grande prato de alumínio, um jarro de barro e uma pequena caixa de madeira. Ela abriu a caixa e tirou de dentro um cristal que estava amarrado por uma linha de nylon comprida. Ela amarrou o nylon em uma das viga do teto do porão deixando o cristal pendurado a poucos centímetros do chão. Em baixo dele ela pôs o prato de alumínio e dentro dele despejou uma areia branca fina que estava dentro do jarro. Ela pediu para Betânia se sentar no chão em frente o prato e ela mesma sentou do outro lado.

As duas sentadas ali, Belladonna falou:
- Betânia pegue o cristal e empurre.

Betânia não estava entendo o que estava acontecendo, mas ela ja estavam acostumada com as coisas incomuns que a mãe fazia então ela apenas não contrariava. Ela empurrou o Cristal Pendulo e ele girou em volta do prato.

Então Belladonna falou novamente:
- Pergunte ao Pêndulo sobre o pai do seu filho:

Betânia falou:
- Ok. Hum... Quem é o pai do meu filho?

O cristal deu uma volta completa no prato e em seguida veio em linha reta fazendo a ponta riscar a areia, o movimento se repetiu varias vezes em linhas alternadas até formar um Desenho. Belladonna olhou atentamente até identificar o que a imagem significava. Após pensar um pouco ela lembrou o que era e falou:
- Isso parece um Veve.



Betânia perguntou:
- Veve? O que seria isso?

Belladonna falou:
- Ué, você não virou crente? Acho que esse tipo de assunto não combina com gente crente.

Betânia revirou os olhos e disse:
- Se eu bati na sua porta é porque o que o Evangelho tem não é o suficiente para me ajudar. Pare de fazer graça e me diga logo o que é um Veve.

Belladonna respondeu:
- Veve são símbolos que invocam a presença de divindades Voodoo, aqui no Brasil chamados de voduns mas no haiti de Lowas. Esse Veve no caso me parece... Legba.

Ao ouvir este nome Betânia tocou com as mãos na barriga e deu um gemido de dor.
Belladonna vendo isso falou:
- Ai meu Deus...

Betânia estava um pouco sem ar, arfando ela perguntou:
- Eu senti uma pontada. O que foi? Descobriu algo?

Belladonna falou:
- Suspeito que você engravidou de Legba.

Betânia falou:
- Mas esse Legba não é uma divindade? Como seria possível?

Belladonna disse:
- Não existem coisas impossíveis para Legba, ele faz coisas muito interessantes.

Betânia falou:
- Mas e agora? Eu não estou entendendo, porque ele se interessou por mim?

Belladonna falou:
- É isso que eu quero saber. Você está na casa do seu pai?

Betânia disse:
- Sim.

Belladonna falou:
- É melhor você vir passar uns dias aqui, eu posso tentar te ajudar. Eu vou pedir para Uriel ir buscar umas roupas suas e vou arrumar um quarto no segundo andar pra você.

Betânia falou:
- Eu vou aceitar sim. Infelizmente eu não tenho outra opção.

Quando Uriel chegou ele entrou na casa e sentiu o corpo inteiro gelar, era uma sensação que ele não tinha há muito tempo, desde que perdera as asas ele nunca mais havia sentido. Era uma sensação que alarmava, avisava de perigo eminente. Ele entrou carregando uma caixa com seis garrafas de champagne e uma sacola com dois chocotones, silenciosamente ele deixou tudo no salão e seguiu para onde a sensação dizia estar o perigo. Ele foi andando devagar até a cozinha e encontrou Betânia em pé na frente da porta da geleira aberta comendo carne moída crua direto de um pote.
Uriel viu a rosto dela sujo com a carne, em seguida viu a barriga grande de gestante e disse:
- Betânia? O que... Você está bem?

Ela olhou para ele e falou seca:
- Sim.

Ele foi até ela e disse:
- Carne crua faz mal a saúde, dá vermes.

Betânia respondeu:
- Eu sei, e não dou a mínima.

Belladonna chegou vindo da direção oposta, ela vinha da area de serviço. Uriel perguntou para ela:
- Betânia vai passar o natal aqui?

Belladonna falou:
- Ela vai ficar aqui algum tempo, vai ficar até ganhar a criança.

Uriel assentiu balançando a cabeça, buscou a sacola com os chocotones e deu um para Betânia dizendo:
- Coma isso, tem bastante chocolate, acho que vai gostar.

Ela agradeceu, se sentou a mesa e em um segundo abriu a embalagem e atacou a guloseima.

Belladonna olhou para Uriel e disse:
- Você pode vir comigo no segundo andar? Quero que me ajude a arrumar um dos quartos para ela dormir.

Os dois subiram as escadas mas não pararam no segundo andar, foram para o terceiro, ao lado do quarto de Belladonna havia um segundo aposento que funcionava como biblioteca, haviam algumas estantes cheias de livros e cadernos. Lá dentro Belladonna e Uriel conversaram.

Ele perguntou:
- O que há de errado com Betânia?

Belladonna falou:
- Ao que tudo indica ela está grávida de uma divindade.

Uriel disse:
- Como assim?

Belladonna explicou:
- Algo como um semideus ou sei lá o que. Eu só preciso confirmar isso, e eu preciso visitar um Oráculo. Vou ter que visitar Samyaza essa noite.

Uriel falou:
- Você não consegue saber disso usando seus próprios métodos?

Belladonna falou:
- Não, em casa de ferreiro o espeto é de pau, eu sou vidente mas nesse tipo de coisa, em um caso tão profundo no qual eu mesma estou envolvida o melhor é ir buscar esclarecimentos com outra pessoa, alguém de fora que poderá falar sem estar interessado na questão.

Uriel falou:
- Entendo. Faça o que achar melhor.

Belladonna pegou um dos livros, um grosso de capa azul com as bordas das páginas douradas. Neste livro haviam lendas sobre a magia antiga. Uriel reconheceu o livro, ele mesmo ja havia lido, e sabia que ali tinham informações muito ruins, sobretudo uma em especial. Ele não disse nada, mas sentiu que precisava tirar Betânia daquela casa o quanto antes.

Uriel desceu para o segundo andar e começou a arrumar o quarto perto da escada, montou a cama, passou aspirador de pó em um dos colchões velhos até ele ficar limpo, passou borrifadas de desinfetante nele e em seguida forrou a cama com tecidos limpos. Assim que acabou foi para a cozinha onde estava Betânia, e ela estava dormindo debruçada sobre a mesa. Olhando para ela Uriel soube de imediato o plano de Belladonna para a filha e para o neto.

Olhando a jovem ali dormindo tão tranquila ele murmurou:
- Deus tenha piedade de ti Betânia, porque sua mãe não há de ter.








Comentários

Postagens mais visitadas